Não tem cura

Mitomania, a doença de quem cria um mundo paralelo e fabuloso

Especialistas explicam como funciona o transtorno mental

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Eram 9h de um sábado na Asa Norte de Brasília, uma estudante de jornalismo e um deputado federal conversam, ele a seduz e tenta abusar sexualmente da jovem de 22 anos. Sua roupa é rasgada, ela grita e uma vizinha bate na porta do apartamento funcional para ver se está tudo bem. Nesse momento a jovem se veste e sai do local, após também ser agredida. O caso daria manchetes de jornais, tempos longos na TV e o deputado provavelmente seria investigado e preso, se não fosse tudo inventado por uma jovem que sofre de mitomania, o transtorno de personalidade que faz com que minta compulsivamente.

O laudo de uma psicóloga da Polícia Civil de São Paulo detalhou como a doença se fez na vida da jovem que criou todo o enredo. Ela foi indiciada por falsa comunicação de crime e extorsão e ao fim do inquérito deve ter a prisão preventiva decretada. De acusadora, virou acusada.

O caso da moça, no entanto, não é uma raridade. Tratada como doença, a Organização Mundial da Saúde (OMS) não tem dados oficiais de quantas pessoas tenham mitomania no mundo e no Brasil, mas estima-se que pelo menos 1 milhão sofram desse mal.

De acordo com o psiquiatra Alfredo José Minervino, a mitomania é uma necessidade em que a pessoa tem de contar mentiras em proveito próprio. “Pacientes com transtorno de personalidade podem ter traços de mitomania, usando mentiras para proveito, como armações, e para manipular pessoas", explica.

Foi o caso de Maria*. Jovem do interior de São Paulo, cresceu contando mentiras para os poucos amigos que tinha e se afundou em dívidas quando foi morar na capital. Em um depoimento na internet, diz que queria acompanhar a vida dos colegas que saiam muito para baladas e que queria mostrar que também tinha aquela vida. Ledo engano. Com tanto gasto, não conseguiu mais pagar a faculdade e o aluguel do apartamento.

Maria foi morar em república e mentiu para a mãe, novamente. Assim como fez para explicar o desligamento da faculdade. Sofreu longos anos até descobrir que a mitomania fazia parte de sua vida. O primeiro passo para sair da sua rede de mentiras foi pesquisar sobre a doença e se isolar, pois sua mania de mentir aumentava quando estava rodeada de pessoas. O silêncio era a arma para não mentir.

A estudante encontrou ajuda na internet, em blogs de autoajuda e, hoje, uma vez por semana visita um psicólogo. Até o fim do ano ela quer frequentar uma terapia. Atualmente mora com o namorado e não é mais compulsiva por compra. Está bem mais calada e tem quatro (contadas) amigas. E só. Afirma que está em paz – de verdade.

Não tem cura

O mais importante que o indivíduo consiga reconhecer os prejuízos que seu comportamento pode trazer para si e para terceiros e que queira mudá-lo. A mitomania não tem cura, mas pode ser tratada.

O tratamento envolve acompanhamento psicológico e, no caso de pessoas que também apresentem outros quadros psiquiátricos (como depressão e ansiedade), tratamento medicamentoso pode ser recomendado. Psicoterapia parece ser um dos poucos métodos para tratar uma pessoa que sofre de mentira patológica, pois ajuda o indivíduo a desenvolver novos repertórios, reforçando relatos verdadeiros e ignorando relatos falsos.

“Eu sofro”

Gustavo* mente. E sofre por isso. “Comecei com uns 9 anos, com mentiras pequenas, até começar a crescer e as mentiras ficarem mais complexas e as fábulas umas verdadeiras histórias de livros”, conta o empresário de 28 anos. "Quando criança, eu pedia dinheiro para minha mãe para comprar laranja (eu disse que era minha fruta preferida), mas eu comprava sorvete e chocolate. Eu achava inocência, mas aquelas mentiras se tornaram comuns em minha vida e foram aumentando", relembra.

Na adolescência, Gustavo diz que já mentiu para a primeira namorada sobre quem era. "Eu dizia que meu pai era rico, que eu estudava em colégio caro. Tudo para impressioná-la. Mas um dia tudo foi descoberto e tudo acabou". 

O adolescente foi crescendo e as mentiras também, até que teve um destino cruel. "Eu me arrependo muito. Menti sobre minha própria mãe porque ela era doméstica e um dia ela apareceu na frente dos meus amigos uniformizada. Fiquei sem reação quando ela me chamou de filho e eu disse que ela era 'doida' ao me chamar assim e que não a conhecia. Ela saiu em prantos. Meus 'amigos', claro, perceberam e logo depois descobriram a verdade. Eu tive que mudar de colégio – de novo", conta, emocionado.

Para os especialistas, a ajuda da família é fundamental no tratamento de um mitômano. "Eu pedi mil perdões à minha mãe e expliquei toda a situação para ela. Choramos lado a lado. Juntamente com meu irmão e meu pai consegui melhorar. Não ficava mais sozinho e fui me tratando com a ajuda de uma psicóloga. Hoje abri minha empresa e continuo na companhia de todos. Posso dizer com toda certeza que hoje sou quem sou graças a eles", declara.

Como identificar?

O provérbio “a mentira, só aos mentirosos prejudica” é ainda mais significativo ao se lidar com um mitômano. Essa pessoa pode não estar completamente presa à realidade, acreditando nas mentiras que ela conta, geralmente num esforço para curar a baixa autoestima. O mitômano não conta umas mentirinhas de vez em quando, ou exagera um pouco a verdade às vezes; ele mente sobre literalmente todos os aspectos da vida dele.

O neurologista Leandro Teles dá dicas de como identificar um mitômano:

1. Desvio de olhar: quem mente, costuma ter dificuldade em fixar o olhar e, até mesmo, olhar nos olhos, de forma natural.

2. Olhar fixo: para evitar ser pego na mentira porque não consegue “olhar nos olhos”, há mentiroso que exagera no “olho no olho”. Isso acontece com o propósito de tentar convencer o outro a acreditar em sua história.

3. Piscar: ao mentir, a pessoa tende a dar piscadas mais longas. Afinal o cérebro em uma atitude de recusa ao que a pessoa está dizendo, provoca piscadas em que os olhos permanecem fechados por mais tempo do que o habitual.

4. Voz: pode ficar trêmula, cortada e sem fluidez, além disso, o tom pode ficar baixo e projetado para dentro.

5. Mãos: ao mentir, a pessoa fica nervosa e ansiosa e, quando isso acontece, o organismo entra em estado de alerta, pois a temperatura periférica tende a cair. Por isso, é natural as mãos ficarem geladas, trêmulas e agitadas.

6. Pele: o nervosismo também pode alterar a cor e a aparência da pele, deixando a pessoa mais vermelha ou mais pálida.

7. Fala: rodeios, justificativas e fala em excesso podem denunciar a mentira. Em especial, quando a pessoa não tem o costume de ser prolixo e começa a demorar demais para chegar ao objetivo da conversa.

8. Pausas: os intervalos durante a fala podem indicar que o cérebro do ‘mentiroso’ precisa processar as informações, por isso a pessoa pode quebrar a fluidez do bate-papo com pausas aleatórias.

9. Mãos nos bolsos: sinal de que a pessoa está escondendo algo, de que está fechada a dar ou receber informações.

10. Olhar para o lado esquerdo: este é o lado da criação de quem é destro, portanto, quando uma pessoa é indagada e move os olhos para a esquerda, pode estar com a intenção de inventar uma resposta.

11. Saliva: quando o corpo entra em alerta, por uma situação de estresse, é natural cessar a produção de saliva e a pessoa começa a “engolir seco”. Geralmente, durante a fala, o mentiroso fica com a boca seca.

12. Coceiras: este é outro sintoma que denuncia a mentira, pois o cérebro recusa a história falada e provoca estímulos que podem levar a mão à boca, ouvidos e aquela coceirinha na cabeça.

13. Face: a estratégia de análise da face é muita usada para identificar mentirosos. Isso porque é fundamental que fala e estejam congruentes, quando isso não ocorre, existe algo errado.

Para José María Martínez Selva, psicólogo espanhol autor do livro A Grande Mentira, os políticos são os que mais mentem. “O político tem necessidade de conquistar pessoas, de seduzir para que o apoiem, votem nele. Tem de dizer que sua mensagem é melhor que a do adversário, fazer promessas, falar de um futuro que é imprevisível. Nesse processo, é difícil que não mintam – e muitos aprendem a mentir bem, confirmando o ditado de que a prática leva à perfeição”.

*Os nomes foram alterados para preservar os pacientes.

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