Hidrogênio: por que o Brasil tem vocação de exportar subsídios?

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Acaba de ser divulgado projeto de lei denominado “Rehidro: Política para Hidrogênio de Baixo Carbono” preparado pela comissão especial de transição energética e produção de hidrogênio da Câmara de Deputados. Este projeto trata, entre outros assuntos, dos incentivos a serem concedidos aos projetos de hidrogênio (H2) de baixo carbono no brasil. O projeto é extremamente generoso na concessão de subsídios das mais diversas fontes. Há um risco de que o país se torne um exportador de subsídios para fomentar o uso de H2 de baixo carbono para países ricos.  Este artigo tece algumas considerações qualitativas quanto aos riscos associados ao desenvolvimento de uma indústria de hidrogênio, quais os reais benefícios e custos para o Brasil se tornar um grande player neste segmento, e até que ponto volumes de subsídios tal como propostos se justificam.

Acerta o legislador em ampliar as rotas tecnológicas, referindo-se ao hidrogênio de baixo carbono em um sentido genérico e não simplesmente H2v (hidrogênio verde). Pode-se supor que a maioria do hidrogênio a se beneficiar de tal projeto legislativo seja de fato o H2v assim como todas as atividades para geração de energia, e bem como toda uma estrutura de transporte, estocagem, portos, dessalinização e outros ativos associados.  Entretanto, é preocupante verificar a postura do legislador em conceder uma série de isenções e subsídios fiscais, além de outros que vão onerar diretamente os consumidores do setor elétrico brasileiro.  Várias preocupações surgem da leitura da minuta do referido documento.

A primeira delas é o custo (e riscos) desta iniciativa. Questionamos se o legislador chegou a quantificar, ainda que de forma preliminar, quanto custaria ao Brasil a concessão de tais isenções e subsídios? Quanto custaria, por exemplo, a instalação de 5, 10 ou mesmo 20 GW de eletrolisadores? Quanto seria pago pelo contribuinte e quanto pelo consumidor de energia?

Dos subsídios propostos, há alguns que seriam pagos diretamente pelo consumidor de eletricidade, tais como descontos nas tarifas de uso de transmissão, uso dos recursos de pesquisa e desenvolvimento (P&D), reserva de mercado nos leilões de capacidade, e até uso dos recursos de Itaipu (recursos estes que deveriam se reverter ao consumidor de eletricidade, que já pagou no passado por toda a dívida desta usina).  O legislador se comporta de forma pródiga, como se os consumidores de eletricidade brasileiros já não estivessem pagando um elevado preço pela energia. Em breve, muito provavelmente, o BNDES sofrerá pressões enormes para prover empréstimos concessionais para a produção de H2. Diz-se, com propriedade, que o Brasil é o país da energia barata e da conta cara. A diferença fica por conta da árvore de natal de subsídios que nos últimos 20 anos vem sido concedidas pelo poder legislativo. Uma vez concedidos, a prática ilustra, que se tornam permanentes. A ANEEL pouco pode fazer para reverter esta situação.

Além dos subsídios já citados acima, há uma série de outros que são pouco discutidos, mas que estão escondidos nos custos do Setor Elétrico, e que, portanto, serão também pagos pelo consumidor.  Um exemplo são os elevados investimentos em transmissão, a necessidade de complementar a intermitência e sazonalidade das fontes renováveis com outras formas de geração (incluindo termeletricidade).  Ainda mais sutil é o uso dos reservatórios das hidrelétricas em períodos de entressafra dos ventos para poder manter a produção de H2v a níveis elevados de capacidade. O Brasil tem orgulho de dizer que a complementação entre a geração hidráulica e renováveis é um casamento perfeito para a produção de H2v a baixo custo. Tecnicamente sim, mas estas usinas hidrelétricas já existem (não tem adicionalidade), a água armazenada nos reservatórios é um recurso escasso, mal precificado e acima de tudo “já tem dono” – ou seja, os investimentos foram pagos pelos consumidores atuais. Novas mega cargas como eletrolisadores estarão pegando um “free ride” no uso do recurso escasso, sem pagar devidamente por este. Não existe hoje no Brasil um estudo analítico que quantifique, de maneira incremental, quais os custos reais que serão imputados ao setor elétrico, para diversos níveis de instalação de eletrolisadores. As análises existentes são realizadas como se estas cargas fossem um consumidor qualquer, cujos custos de atendimento são socializados entre toda a base de consumidores. Metodologicamente, cargas deste porte não podem ser tratadas com esta simplicidade, e ao fazê-lo o custo incremental é diluído entre todos os consumidores brasileiros.

O preâmbulo do projeto de lei se refere à necessidade dos incentivos para a produção de H2 visando ajudar o Brasil em seu processo de descarbonização, para que o país possa assim cumprir suas metas climáticas. Esta afirmação tem que ser analisada com muito cuidado. Recente estudo sobre a curva de mitigação no Brasil mostra de forma clara que a contribuição do H2 em nosso país é diminuta, e nos setores que ela ocorre, está associada a usos não energéticos do H2, como matéria prima na produção de aço, fertilizantes e petroquímicos.

Se pudéssemos ajudar o legislador a priorizar seus esforços e recursos, faria mais sentido usar o H2 de baixo carbono para substituir o H2 sujo de que hoje o Brasil necessita, ao invés de conceder incentivos para exportação. Ao exportar o H2 (ou seus produtos imediatamente derivados) o Brasil estará concedendo vultosos subsídios retirados do consumidor de energia elétrica e do contribuinte para a descarbonização de outros países, principalmente na comunidade européia. Nada errado em ajudar o planeta, sempre e quando os beneficiários destes beneficiários de H2 estejam dispostos a pagar por seus custos de descarbonização e independência energética. Não há ainda evidências concretas desta disposição em pagar. Contratos de longo prazo para aquisição de H2v não estão sendo celebrados. A única iniciativa da comunidade europeia é o banco de hidrogênio, um sinal modesto, mas na direção correta.

Alguns estudos apresentados sugerem que o Brasil seria o país com menor custo de produção de H2v, haja vista os custos decrescentes de renováveis, chegando ao sonho de US $1/kg em um futuro próximo.  Esses estudos deixaram a todos nós brasileiros orgulhosos e desejosos de aproveitar esta oportunidade.  No entanto, são estudos simplistas, que não levam em conta o custo para a sociedade. Esses mesmos estudos têm sido usados com frequência como embasamento para justificar a expansão da indústria de H2 no Brasil. A pergunta retórica que não quer calar é a seguinte: diante desta alegada vantagem estratégica, porque deveria então o Brasil criar tantos subsídios para exportação de um produto que já seria extremamente competitivo a nível global?

Um possível argumento seria o fato que outros países, principalmente os EUA estão concedendo subsídios generosos e a Europa deve seguir este caminho.  Alguns incentivos do programa “inflation reduction act (ira)” de 2022 nos EUA chegam a quase US$ 3/kg de H2. A alegação é que sem subsídios equivalentes o Brasil não seria competitivo. Há que examinar esses fatos com muita atenção. Em primeiro lugar, os Estados Unidos estão alocando estes subsídios para seu próprio mercado consumidor através do desenvolvimento de tecnologia em projetos de H2v propriamente ditos, e uma parte substancial para a produção de H2 azul, onde o objetivo adicional é o de desenvolver uma tecnologia de captura e armazenagem de carbono, diversificando os riscos tecnológicos. São subsídios vultosos que inclusive tem gerado queixas da comunidade europeia, dos quais quase não se beneficia. O segundo aspecto estratégico, crucial para o Brasil, é definir se como política pública o país estaria realmente disposto a entrar em uma guerra de subsídios com atores deste porte. Valeria a pena? Com que objetivo? Quanto custaria esta aventura em termos de subsídios? Quais os benefícios econômico-sociais que podem ser vislumbrados com uma boa dose de realismo?

O assunto H2v tem sido tratado nos últimos anos como um hype. É muito importante ao formador de políticas entender este processo para que possa tomar decisões coerentes. Os protagonistas deste hype afirmam que o H2v é um elemento indispensável para a Transição Energética. Que é a esperança para substituir combustíveis fósseis em uma gama de aplicações, e no caso particular do Brasil, uma oportunidade de ouro para aproveitar nossas vantagens competitivas, promover nossa neo-industrialização e mudar a economia do país. São todos argumentos que têm um forte apelo político e são alimentados por uma gama de segmentos de industriais e consumidores que podem se beneficiar. Os defensores do hype-H2v asseguram que os elevados custos atuais de US$ 5-6/kg de H2v cairão para US$ 1/ kg ao final da década, podendo assim competir com o H2 “sujo” hoje produzido a partir do metano a um custo de US$ 1/kg. Com esta forte crença, a profecia se autorrealiza.

Os defensores destas ideias parecem viver em uma câmara de eco, ignorando opiniões divergentes de renomados especialistas e focalizando exclusivamente naquelas que corroboram suas visões. Parece que a comissão do congresso não conseguiu se distanciar desta câmara de eco, amplificada em vários decibéis pelas redes sociais e por interesses paroquiais daqueles que têm claramente um forte interesse comercial nestas discussões. Durante as múltiplas audiências realizadas, não houve espaço para discutir visões dissidentes, mas apenas para confirmar as hipóteses pré-estabelecidas. O problema não foi analisado com a objetividade necessária, mas sim com um forte viés confirmatório.

Apenas nos últimos dois anos, várias hipóteses iniciais sobre H2v tem sido gradualmente revistas.  A comunidade europeia recentemente afirmou que não conseguirá produzir H2v por menos que US$ 5 por kg, mesmo em 2030. Em várias partes do mundo, o preço da energia renovável não tem caído como esperado. Um dos maiores investidores em projetos de H2v afirmou recentemente que cortaria os subsídios cruzados e que os projetos de H2v deveriam se viabilizar por seus próprios méritos. Os alegados ganhos de eficiência em futuros de eletrolisadores ainda são promessas, sendo que a produção de eletrolisadores terá enormes dificuldade para atender os níveis de demanda almejados para os anos à frente. Dificuldade de suprimento de algum recurso (como materiais) poderão desafiar as desejadas reduções de custo. Projetar custos somente levando em conta o fator escala parece ser uma simplificação da dinâmica dos mercados envolvidos.

Não se pode ignorar que o H2v sofrerá concorrência acirrada tanto da produção do H2 azul quanto da própria eletricidade no uso final. H2 azul é produzido a partir do gás natural e captura de carbono. Os produtores deste H2 são, em sua maioria, produtores de gás natural, que podem administrar o preço da matéria prima para manter sua vantagem competitiva. No tocante à concorrência com a energia elétrica, os fatos não são muito animadores. A Inglaterra concluiu que existem formas mais eficientes e baratas de promover o aquecimento residencial, como bombas de calor alimentadas por energia elétrica. Não esqueçamos que o H2 não é uma fonte de energia, mas um “sumidouro” – ou seja o H2v consome muito mais energia para sua produção do que libera quando de seu uso.

Há restrições químicas e termodinâmicas em todo o processo: na fabricação do H2, no transporte, armazenamento e no uso final. Por exemplo, a eficiência atual do ciclo completo na produção de energia usando H2v como energético incluindo produção do H2v, armazenagem, transporte e geração de eletricidade é da ordem de apenas 15%.  A alegada competitividade futura entre veículos leves a H2 versus energia elétrica ainda parece um sonho. Não há legislação que consiga alterar alguns princípios físicos e termodinâmicos básicos. Tampouco os esperados ganhos de eficiência dos eletrolisadores podem cumprir este papel. É verdade que o legislador não tem condições de prever o futuro, mas deve reconhecer que o país está diante de uma oportunidade de altíssimos riscos técnicos e comerciais.

O setor de energia (no Brasil e fora) já vivenciou muitos hypes no passado. Há motivos para questionamentos quando da presença de um ufanismo exagerado nas discussões sobre H2v. Dentre estes hypes se incluem a energia nuclear “to cheap to meter”, o acordo Brasil-Alemanha na área nuclear, a fraude nos projetos piloto sobre fusão nuclear e a bancarrota da empresa ENRON, que mudaria o conceito de comercialização de energia no mundo.  E não devemos esquecer os vários ciclos no passado de exaltação do poder transformativo do H2, sempre o combustível do futuro. Na própria questão climática, há cerca de dez anos, a esperança do planeta era depositada na eficiência energética e em fontes renováveis. Presumia-se que cada uma dessas iniciativas fosse responsável por 40% da descarbonização. A realidade se mostrou bem diferente. Obviamente que a história não necessariamente se repete, mas a lição do ocorrido é que não havia espaço para visões críticas dissidentes.

Pouco se fala sobre visões estratégicas dissidentes sobre o papel e competitividade do H2. Há vários riscos, não desprezíveis e que não podem ser ignorados. Qual o risco, por exemplo, de que nem todas estas oportunidades hoje vislumbradas para o H2 se materializem? Que os custos não caiam como previsto? E que, portanto, a demanda pelo produto não seja a esperada, resultando em instalações ociosas, em parte construídas e financiadas com subsídios providos pelo Brasil? A despeito do ufanismo e da necessidade de o planeta encontrar uma solução para a questão climática, uma redução pelo interesse e atratividade pelo H2v é um cenário plausível que não pode ser ignorado.

Os legisladores e formuladores de políticas públicas devem tentar distanciar-se desta câmara de eco e começar a analisar com objetividade a real atratividade de um programa da magnitude que o Brasil pretende desenvolver. A consideração de subsidiar a produção de H2 de baixo carbono, principalmente para exportação, carece de uma análise mais aprofundada dos custos dos subsídios, das possibilidades de mercado e do balanço real do valor agregado com as exportações.

Apenas com a análise de posições divergentes e discussão com objetividade, o Brasil pode sofisticar o debate e sopesar os alegados benefícios estratégicos, econômicos e sociais, com uma visão mais realista dos custos e competitividade do H2, identificando as áreas mais promissoras, que são realmente de interesse do país, e daí aquelas que justifiquem ser fomentadas.

Em caso contrário, corremos um sério risco de exportar subsídios aos países ricos.

Luiz Maurer é Engenheiro Eletricista com 45 anos de experiência na área de energia e estratégia empresarial tendo Mestrado pela UCLA, foi Principal Industry Specialist no Banco Mundial trabalhando no setor de energia onde gerenciou projeto de reforma do setor elétrico brasileiro.
Armando Ribeiro de Araujo é Engenheiro Eletricista com Mestrado e Doutorado, foi Diretor de Procurement Policy do Banco Mundial, Secretario Nacional de Energia do Ministério de Infraestrutura, Presidente da Eletronorte, Membro do Conselho de Administração de Itaipu, Furnas, Chesf e Eletronorte.

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