Duro de matar

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Esse texto não trata do famoso filme protagonizado pelo celebrado ator Bruce Willis. Naquela conhecida película cinematográfica, o policial John McClane visita a esposa Holly Gennero em Los Angeles. Durante as festividades de natal da empresa da companheira, localizada no imponente edifício Nakatomi Plaza, um grupo de terroristas alemães, conduzidos por Hans Gruber, invade o prédio e sequestra todos os convidados. O objetivo da ação era roubar 640 milhões de dólares na forma de ações. McClane, em uma sucessão eletrizante de escaramuças, enfrenta sozinho o grupo de Gruber.

Quem é “duro de matar” nestas singelas linhas é o execrável “orçamento secreto”, gestado no âmbito do Congresso Nacional pelo clientelismo mais repulsivo. O clientelismo é uma prática na qual políticos oferecem bens, serviços, favores ou vantagens a indivíduos ou grupos em troca de apoio, normalmente na forma de votos. É uma troca baseada em uma relação de reciprocidade onde o eleitor recebe algo em troca do seu apoio. Questões de natureza ideológica, programáticas ou de formatação de políticas públicas são irrelevantes na tomada de decisão. Parece fora de qualquer dúvida razoável que a maioria dos atuais parlamentares pautam suas atuações político-eleitorais majoritariamente pelo clientelismo e, também, pelo fisiologismo.

O “orçamento secreto é o maior esquema de corrupção institucionalizada da história”, como afirmou a Transparência Internacional (fonte: congressoemfoco.uol.com.br). As emendas do relator ao orçamento da União, conhecidas como RP9, formaram o princípio ativo do chamado “orçamento secreto”.

Existiam, até 2020, três tipos de emendas ao projeto de lei orçamentária: a) individuais; b) de bancada e c) de comissão. Com a edição de várias leis orçamentárias surgiram, no ano mencionado, as emendas de relator. Essas proposições, se limitadas a ajustes finais de mera adequação, não seriam preocupantes. Mas no Brasil do Centrão …

Segundo dados do sistema de informações sobre orçamento público federal mantido pelo Senado Federal (SIGA BRASIL), não foram registrados valores relacionados com as emendas de relator (RP9) até 2019. Em 2020, entretanto, foram alocados 20,1 bilhões de reais nessas emendas. Em 2021, os valores de emendas do relator alcançaram cerca de 18,5 bilhões de reais.

Em dezembro de 2022, o Supremo Tribunal Federal afirmou, no âmbito da ADPF n. 854: “As emendas do relator (classificadas sob o indicador orçamentário RP9) são incompatíveis com a Constituição Federal em virtude de seu caráter anônimo, sem identificação do proponente. Isso porque operam com base na lógica da ocultação dos efetivos requerentes, por meio da qual todas as despesas nela previstas são atribuídas, indiscriminadamente, à pessoa do relator-geral do orçamento, entre parlamentares incógnitos e o orçamento público federal”.

Aparentemente, o STF decretou o fim do “orçamento secreto”. No entanto, a “morte” desse expediente detestável, porta aberta para vários tipos de corrupção, não ocorreu efetivamente. Apesar da declaração de inconstitucionalidade do “orçamento secreto” gestado no governo Bolsonaro, a distribuição de recursos orçamentários entre parlamentares e a ausência de transparência persistiram no governo Lula 3, conforme inúmeras matérias jornalísticas.

A ex-Ministra Rosa Weber, na condição de relatora da ADPF n. 854/DF, fez a seguinte e relevantíssima ponderação: “41. Põe-se em questão a facilidade com que esquemas de corrupção de tamanha abrangência surgem, propagam-se e, mesmo após seu declínio, reestruturam-se; envolvem servidores e autoridades públicas de diversas unidades da Federação; e, ainda assim, conseguem subsistir mesmo diante da atuação fiscalizatória dos sistemas de controle e acompanhamento orçamentário. (…) 51. Na era dos esquemas tipo PC Farias, falava-se em fantasmas, alusão à ocultação da presença por meio de empresas imateriais, identidades incorpóreas e operações espectrais. Na época da operação sanguessuga, evidenciava-se o caráter parasitário das condutas. Os envolvidos aderiam ao orçamento absorvendo recursos por meio de engenharia burocrática sem revelar a própria existência. Atualmente, a política patrimonialista, reinventando-se, instrumentaliza formas e fórmulas jurídico-contábeis para conferir ares de oficialidade a conteúdo inoficioso, aparência de institucionalidade ao que não encontra amparo na ordem constitucional. Como se sabe, a liturgia, por si só, não torna sacro o que é secular na essência”.

A relatora da ADPF n. 854/DF acertou “na mosca”. Os procedimentos escusos podem mudar de forma ao longo do tempo e em função das descobertas e desarticulações institucionais. O que antes tomava a forma de A pode ser mantido assumindo a forma de B. Tancredi, personagem do famoso romance “O Leopardo”, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, alertou: “Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”.

Assim, não é se estranhar a realização, pelo Ministro do STF Flávio Dino, no início de agosto de 2024, de uma audiência de conciliação acerca do “orçamento secreto”. A rigor, tratou-se de um evento voltado para analisar o descumprimento da aludida decisão que determinou o fim dos procedimentos repugnantes.

“Dino foi enfático, para não dizer duro, com os representantes do Congresso, do Tribunal de Contas da União (TCU), da Advocacia-Geral da União (AGU), da Controladoria-Geral da União (CGU) e da Procuradoria-Geral da República (PGR) ao manifestar sua insatisfação diante da fragilidade das explicações, chamemos assim, que lhe foram dadas sobre os supostos mecanismos de transparência que teriam sido adotados para novos repasses de emendas parlamentares. ‘Onde estão as informações?’, indagou o ministro. ‘Não é minha cognição que está em pauta, mas não consegui entender. Imagine o cidadão, que é dono do dinheiro’, concluiu” (fonte: estadao.com.br).

Segundo várias análises especializadas, as emendas de relator deixaram de ser utilizadas de forma indevida, ressalvada a parte dos “restos a pagar” com essa origem. Depois da mencionada decisão do STF, as RP9 retornaram à finalidade original de correção pontual da lei orçamentária. Entretanto, outros expedientes nebulosos entraram em cena. O Centrão e adjacências, agora com a luxuosa ajuda do governo Lula 3, passaram a usar: a) emendas discricionárias (RP-2), relacionadas com recursos geridos por Ministérios. b) emendas de bancada e c) “emendas Pix”, particularmente obscuras.

Decisão liminar do Ministro Flávio Dino definiu um conjunto de medidas para disciplinar a utilização de recursos públicos por intermédio de emendas parlamentares. Entre as principais determinação estão: a) vinculação federativa (o que impede o parlamentar de direcionar recursos para Estado distinto daquele pelo qual foi eleito; b) vinculação a políticas públicas e c) auditoria pelos órgão de controle (fonte: stf.jus.br).

Como foi destacado, na raiz do “orçamento secreto” está a eleição de um grande número de parlamentares por intermédio dos mais deletérios expedientes fisiológicos e clientelistas. Assim, imagina-se a construção de um desses dois cenários: a) a farra com emendas orçamentárias assumirá novos formatos ou b) os objetivos indevidos buscarão caminhos novos e distantes das emendas orçamentárias.

Segundo as mais recentes notícias da imprensa, o primeiro dos caminhos cogitados já começou a ser tratado no Parlamento. “Para não perder o poder sobre a verba bilionária, integrantes do Legislativo discutem a possibilidade de fortalecer e incrementar as emendas individuais, com pagamento obrigatório, e até mesmo a criação de um novo tipo de emenda, que seria definida e alocada por líderes de partidos” (fonte: oglobo.globo.com).

Existe uma preocupante questão de fundo. Os investimentos federais estruturais recuam continuamente. Paralelamente, as emendas parlamentares avançam. Assim, o desenvolvimento socioeconômico fica irremediavelmente prejudicado.  Ações de baixa repercussão e eficiência, contempladas pelos congressistas, são privilegiadas em detrimento de projetos fundamentais para a sociedade brasileira.

O “orçamento secreto”, suas variantes e decorrências integram uma série de poderosas mazelas presentes na vida nacional. Esses procedimentos deploráveis  somente serão superadas com a inserção dos interesses populares no centro da ação política. Conscientização, organização e mobilização dos interesses da maioria da sociedade precisam efetivamente animar a ocupação dos principais espaços de poder. Infelizmente, estamos muito longe desse desejável quadro.

Ademais, é relativamente fácil perceber a importância estratégica do saneamento da representação política como medida preventiva (talvez, a mais importante das ações preventivas) contra a corrupção e malfeitos congêneres. Enquanto o eleitor escolher majoritariamente parlamentares que falam as línguas do clientelismo e do fisiologismo, o exercício da ação política, na sua maior parte, em especial nas relações entre os Executivos e os Legislativos, alimentarão em larga escala os caminhos da corrupção e malversações de toda ordem.

Aldemario Araujo Castro é advogado, mestre em  Direito e procurador da Fazenda  Nacional.

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