Assédios moral e sexual: marcas do atraso civilizatório

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Os últimos dias da semana passada foram marcados por uma forte repercussão jornalística em relação às acusações de assédio sexual atribuídas ao então Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania. O episódio culminou na demissão do titular da pasta ministerial referida.

“Silvio é acusado por um grupo de mulheres de assédio sexual, por meio da organização Me Too Brasil. Entre as vítimas, segundo o jornalista Guilherme Amado, do portal Metrópoles, está a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, que ainda não se pronunciou oficialmente” (fonte: congressoemfoco.uol.com.br).

Vários veículos de imprensa também destacaram a quantidade de denúncias de assédios realizadas nos últimos meses e em apuração perante inúmeros órgãos públicos diferentes. “Governo federal recebeu 2 denúncias de assédio sexual por dia neste ano/Ao todo, 557 casos foram registrados em ouvidorias e estão sendo apurados pela CGU; ministro dos Direitos Humanos foi demitido ontem após ser alvo de acusações” (fonte: oglobo.globo.com). “Processos internos por atos sexuais aumentam sob Lula e somam 764 na gestão, sendo 75 em ministérios/Com apenas dois anos de gestão, Lula 3 se aproxima dos maiores patamares da série histórica, iniciada em 2004, de processos instaurados pela Controladoria-Geral da União para apurar denúncias de atos sexuais impróprios no governo federal; CGU e Ministério das Mulheres não se manifestaram” (fonte: estadao.com.br). “Macaé Evaristo herdará 7 mil denúncias de assédio sexual feitas em 2024/Ex-ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida foi exonerado após ser acusado de assédio sexual contra mulheres” (fonte: metropoles.com).

Ao longo da minha trajetória profissional atuei em dezenas de casos de assédios sexual e moral. Merecem destaque: a) um caso de assédio sexual que se transformou, diante da resistência da vítima, em assédio moral e b) vários casos de assédio sexual praticados por professores da rede pública do Distrito Federal em relação a alunas. Na primeira situação mencionada, cheguei a receber, como autoridade administrativa, um pedido de proibição de aproximação física do ofensor em função da ofendida.

Existe um intenso movimento de teorização dos diversos tipos de assédios (moral, sexual, institucional e abusos coletivos contra uma pessoa – “mobbing”). São reconhecidas, nessa seara, as ocorrências verticais e horizontais, ascendentes e descendentes, individuais e coletivas e outras tantas. O claro objetivo desse processo é identificar todos os casos possíveis em que o constrangimento ou ofensa à dignidade da pessoa humana esteja presente.

Como uma nítida decorrência das formulações teóricas cada vez mais precisas e densas em torno da temática dos assédios, constata-se um importante avanço no campo da legislação. Nesse sentido, podem ser destacados, entre outros: a) a Lei n. 14.612, de 3 de julho de 2023, que altera a Lei n. 8.906, de 4 de julho de 1994, para incluir o assédio moral, o assédio sexual e a discriminação entre as infrações ético-disciplinares no âmbito do exercício da advocacia e b) o art. 216-A do Código Penal, introduzido pela Lei n. 10.224, de 15 de maio de 2001 (crime de assédio sexual).

Os mais variados órgãos públicos e privados desenvolvem programas específicos de combate aos assédios moral e sexual. A título de ilustração, recentemente o Distrito Federal adotou iniciativa nesse sentido. O Decreto n. 46.174, de 22 de agosto de 2024, instituiu a Política de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Moral e Sexual no âmbito da administração direta e indireta. Também no final de agosto de 2024, a Procuradoria-Geral Federal, no âmbito da Advocacia-Geral da União, lançou uma cartilha voltada para a prevenção e enfrentamento do assédio sexual no Serviço Público Federal.

Embora seja um tema complexo e multifacetado, exigindo estudos, pesquisas e reflexões de considerável profundidade, importa destacar, em singelas linhas, algumas das principais motivações ou causas para a contabilização de uma quantidade enorme (e aparentemente crescente) de casos de assédios moral e sexual.

Especificamente em relação ao assédio sexual, do qual as mulheres são as vítimas na grande maioria dos casos, devem ser reconhecidas como amplamente disseminadas concepções e práticas machistas, misóginas e patriarcais. Infelizmente, para largas parcelas da sociedade a mulher é vista e tratada com desprezo e preconceito. O tratamento igualitário e o respeito à liberdade sexual são desconsiderados com inaceitável frequência.

Um traço da sociedade que alimenta os dois tipos principais de  assédio (moral e sexual) é o autoritarismo, em grande parte herdado de séculos de escravidão. O autoritarismo cria um ambiente de controle excessivo. Decorrem do autoritarismo as posturas opressivas, avessas à liberdade, ao diálogo e ao respeito à individualidade e dignidade própria de cada pessoa.

O egoísmo, na forma da busca de satisfação de interesses pessoais, de prazer e de poder, é uma das causas centrais dos casos de assédios moral e sexual. Quando indivíduos colocam seus próprios desejos e ambições acima do respeito pelos outros, eles tendem a desconsiderar os limites e a dignidade alheia, utilizando sua posição de poder para obter benefícios à custa das vítimas, tratadas como objetos de uma vontade deturpada. Infelizmente, as altas doses de egoísmo presentes no comportamento humano na atualidade alimentam  uma infinidade de problemas sociais de enorme gravidade.

O avanço da democracia e a crescente conscientização sobre o combate aos assédios contribuem para um aumento significativo dos registros de casos. Um ambiente mais inclusivo, onde os direitos individuais são protegidos e a impunidade dos agressores é progressivamente desafiada, permite: a) o reconhecimento como abuso do que antes era normalizado e b) a maior disposição de denunciar, ante a efetiva possibilidade de punição dos infratores.

As três primeiras motivações destacadas atestam o nosso imenso atraso civilizatório. Em termos de organização social, ainda temos um longo caminho a percorrer para concretizar o desafiador projeto de máxima realização da condição humana em suas várias e mais encantadoras dimensões.

Aldemario Araujo Castro é advogado, mestre em Direito e procurador da Fazenda Nacional.

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