Tragédia bilionária

OAB avança sobre honorários de vítimas de desastre e afronta defensorias, em Alagoas

Seccional expõe advocacia pública, e apura se escritório fez pressão sobre vítimas da Braskem

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Área de risco no bairro do Mutange concentra vítimas que devem ser indenizadas pela Braskem em Maceió (AL). Foto: Arquivo/Pei Fon/Secom Maceió

Famílias de diversas classes sociais que convivem há quase dois anos com a ampliação do desastre geológico atribuído à extração de sal-gema pela Braskem convivem com a voracidade de advogados que buscam atender clientes e faturar com a tragédia que atinge bairros de Maceió (AL). A ambição pelos honorários conta com o apoio institucional da Seccional Alagoana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/AL), que mira um mercado de 17 mil famílias aptas a serem beneficiadas por um acordo firmado por órgãos públicos com a empresa que reservou um montante inicial de R$ 1,7 bilhão, para indenizar e resgatar as vítimas.

A entidade historicamente ligada a valores como cidadania e justiça social publicou notas oficiais questionando a legalidade da atuação das defensorias públicas de Alagoas e da União, que garantiram atendimento gratuito em favor de famílias que estão perdendo seus patrimônios.

O presidente da Seccional Alagoana da OAB, Nivaldo Barbosa Júnior, defende que a regra padrão é que as defensorias públicas atendam quem tem até três salários mínimos de renda familiar e um patrimônio de até 150 mil reais.

Após levantar suspeitas sobre a advocacia pública, a OAB de Alagoas decidiu criar a Comissão de Fiscalização da Assistência Judiciária Gratuita em todo o Estado de Alagoas. Algo jamais cogitado com tanta intensidade, antes do acordo bilionário ser firmado pelas defensorias e os ministérios públicos Federal e Estadual com a Braskem.

As defensorias estranharam a reação da OAB, ao ressaltar que não recebem honorários de sucumbência (fixados em 5% do valor da causa) por expressa proibição constitucional e legal. E ressaltam que tais recursos não se revertem, em hipótese alguma, em remuneração aos defensores públicos; mas vão exclusivamente para o aparelhamento da Defensoria Pública e a capacitação profissional de seus membros e servidores. 

Fato é que tremores de terra, afundamento do solo e fissuras atingiram tanto casebres das encostas do Mutange, quanto casas e apartamentos de maior padrão de parcela das famílias de classe média existentes principalmente no bairro do Pinheiro. Por isso, a OAB interessou-se em fiscalizar a legalidade na concessão da assistência jurídica gratuita.

Além da preservação da reserva de mercado para a classe profissional que representa, está o argumento de que critérios de concessão da advocacia pública não poderiam beneficiar vítimas que possuem renda suficiente para pagar honorários, na tragédia que não escolheu classe social para destruir lares erguidos por vidas de trabalho, nos bairros do Mutange, Pinheiro, Bebedouro e Bom Parto. 

Sede da Seccional Alagoana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/AL), em Maceió. Foto: Divulgação/Ascom OAB/AL

Denúncia

As defensorias sentem falta da apresentação de algum caso concreto de irregularidade na concessão de advocacia gratuita. Enquanto uma vítima da região mais pobre e de maior risco, a encosta do Mutange, acusou um escritório de advocacia de pressionar outra moradora da área a ser evacuada a recusar a assistência gratuita das defensorias, por meio de coação, retenção de documentos e honorários abusivos. 

O alvo da denúncia veiculada na imprensa e nas redes sociais foi o escritório Omena Advocacia, dirigido pelo advogado Sílvio Omena, que atuou junto à associação dos moradores do Mutange. O advogado nega a pressão que consistiria na busca pela manutenção de contratos e no pagamento de honorários que chegariam a 50%. A indenização oferecida inicialmente pela Braskem é de R$ 81 mil por imóvel afetado no bairro.

“Teve uma moradora daqui da ladeira, perto da minha casa, que disse que foi chamada lá no escritório. Quando chegou lá, ela disse que não queria. Aí disse que botaram ela numa sala, três advogados, fazendo pressão no juízo dela, que ela tinha que se encontrar com eles, que tinha que aceitar, e ela dizendo que não queria. […] Eles estavam cobrando 50%, logo no começo, era só 20%. De repente a gente soube que era 50%”, relatou uma moradora, que foi entrevistada pelo jornalista Abdias Martins, da rádio CBN.

Ao pedir os documentos de volta para seguir com o processo com a defensoria pública, a moradora disse que os pedidos foram negados pelo escritório, mesmo após o presidente da associação do Mutange, Arnaldo Manoel dos Santos, elaborar uma lista de moradores que não queriam mais os serviços do escritório. “Todo mundo já tinha pedido esses documentos, porque não queria. Porque, como a Braskem já vai pagar os 5% da defensoria, não vai precisar”, disse a moradora.

Ouça a moradora que denuncia pressão de advogados sobre vítima de tragédia no Mutange:


Vítimas do desastre geológico em Bairros de Maceió sendo atendidos pelo Tribunal de Justiça de Alagoas. Foto: Dicom TJAL

Ética e desastre humanitário

Diante da suspeita de atuação antiética, nenhuma nota pública da OAB/AL tratou de defender publicamente os interesses das vítimas, nem de repudiar, mesmo que em tese, a prática de uma suposta “advocacia pitbull”, que seria incompatível com o cenário de um desastre humanitário, bem como com o Artigo 5º do Código de Ética e Disciplina da OAB, que afirma: “O exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização”. 

Mas o presidente da Seccional Alagoana da OAB, Nivaldo Barbosa Júnior, disse que, mesmo sem ter recebido denúncia oficial sobre o caso, de imediato, acionou o Tribunal de Ética e Disciplina para abrir um procedimento administrativo para apuração dos fatos, com garantias do amplo direito de defesa. 

“Se confirmada a veracidade da denúncia, os responsáveis serão punidos podendo até perder a inscrição na Ordem. Estamos também avaliando a possibilidade da criação de um canal para recebermos as denúncias”, disse Nivaldo Barbosa Júnior ao Diário do Poder.

Quando questionado sobre o motivo de não ter reagido tão incisivamente contra à denúncia de irregularidade, como fez contra a atuação das defensorias públicas no caso, o presidente da OAB argumentou que não recebeu documentalmente a comunicação de casos de abusos de advogados.

“Até então, temos apenas boatos e notícias em jornal. Quanto à Defensoria, não há dúvida acerca da grandeza do trabalho desenvolvido. Apenas é preciso esclarecer os critérios de atendimento e também garantir que o morador possa contratar um advogado se assim preferir”, respondeu o presidente da OAB/AL.

Advogado Sílvio Omena enviou foto de termos em que ex-clientes desistem de seus serviços jurídicos

Sem pressões

Ao negar as pressões alegadas pela moradora, o advogado Sílvio Omena disse que não tem havido dificuldade para seus clientes terem acesso à documentação e desistir da assistência jurídica de seu escritório. Ele lamentou os danos à sua imagem profissional, causados por uma denunciante anônima que relata que ouviu uma vizinha reclamar de pressões e honorários exorbitantes.

“É uma pessoa só falando o que ouviu dizer de uma vizinha. Eu documento tudo que faço e tenho revogação de aproximadamente 25 clientes. Esses clientes estão em um universo de quase 600 clientes com processos protocolados. Não existe pressão para manutenção do cliente conosco. Apenas argumento com eles todo trabalho realizado, os avanços até o presente momento e confirmo com eles se realmente querem revogar minha procuração. Se eles escolherem desistir: faço termo de revogação e entrego cópia ao cliente”, disse Omena, ao Diário do Poder.

O advogado relatou que firmou contratos com as vítimas sem cobrar pelos serviços, com previsão de receber pelo seu trabalho após o término do processo, honorários fixados inicialmente em 30%. E disse que tem conversado individualmente com seus clientes e igualado em 5% os honorários de quem aceitou firmar o acordo oferecido pela Braskem.

“Tiro todas as dúvidas dos clientes. Pois são 02 anos de trabalhos entre o administrativo e o judicial. Estou reduzindo essa cobrança para aqueles que querem fazer acordo junto à Braskem. Reduzimos o honorário em conversa privada com cada cliente”, disse Sílvio Omena, ao enviar à reportagem imagens de uma pilha de termos de revogação assinados por ex-clientes.

O advogado disse ainda que tem ingressado diariamente com dezenas de novas ações judiciais contra a Braskem, em nome clientes dos quais detém procurações assinadas com a autorização para atuar. E garantiu que tem trabalhado honestamente, seguindo os contratos ainda vigentes.

Moradores do Mutange atendidos pela assistência social, em Maceió, Foto: Arquivo/Pei Fon/Secom Maceió

Vulnerabilidade

A Defensoria Pública da União (DPU) e a Defensoria Pública Estadual de Alagoas (DPE/AL) publicaram notas oficiais no último fim de semana, em que relatam a autonomia constitucional de defensores públicos para conceder ou não da gratuidade da assistência jurídica as instituições. E afirmam não haver ganhos pessoais possíveis para os defensores públicos, que são proibidos pela Constituição Federal de receber qualquer centavo referente aos honorários de sucumbência.

A Defensoria Pública de Alagoas disse ter “compromisso inabalável na defesa dos vulneráveis, mesmo contrariando os interesses de quem quer que seja”, ao afirmar que vem pedindo há mais de dois anos para que a OAB envie relatos das supostas denúncias de atuação de defensores públicos em casos em que os cidadãos poderiam contratar advogados, para poder adotar as providências. Mas afirma não ter recebido tais casos cogitados pela Seccional Alagoana da Ordem.

O defensor público geral de Alagoas, Ricardo Melro, ressaltou que o único “adversário” que teria no chamado Caso Pinheiro é a Braskem. E também disse não ter nada contra a OAB e nem razões para ficar polemizando com a entidade, por ter muito trabalho a fazer

“Após quase um ano de intenso trabalho na ação civil pública, finalizamos um acordo que antecipou uns 10 ou 15 anos de tempo processual. Uma nova etapa se iniciou com o começo da efetivação das indenizações fruto do acordo que requer, também, muito tempo, dedicação e trabalho de todos. E ainda temos que continuar cuidando da ação para garantir indenizações para os moradores que não estão no perímetro do acordo. A população atingida está bastante vulnerável e necessita da ajuda de todos”, pontuou Melro. 

“Integrantes da seccional OAB/AL deram a entender que a Defensoria Pública atua na causa [envolvendo a Braskem] para ganhar 5% de cada acordo. […]Reforçamos que o acordo em questão está sendo executado por conta do trabalho das instituições públicas na ação coletiva, que beneficiou 17 mil pessoas. Dessa forma, esse grupo de cidadãos não precisará litigar por anos a fio para a resolução do problema”, diz um trecho da nota a assinada pelos defensores públicos da União João Paulo Cachate Medeiros de Barros e Diego Bruno Martins Alves

Apesar de ter firmado o acordo para indenizar moradores das áreas de risco, a Braskem segue negando ter responsabilidade sobre os danos geológicos. E financia estudos para se aprofundar sobre as causas do fenômeno, que o Serviço Geológico do Brasil (CPRM) conclui ter sido causado por quatro décadas de atuação de poços de extração de sal nos bairros de Maceió, despertando assim a atividade de uma falha geológica.

Veja a íntegra das notas da Defensoria Pública da União e da Defensoria Pública do Estado de Alagoas. E o release da OAB sobre a criação da comissão para fiscalizar as defensorias públicas.

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