Audiovisual denuncia 'balcão'

Governo de Alagoas dá R$ 6 milhões a filme de Cacá Diegues e irrita setor

Aporte sem licitação é mais que o dobro dos R$ 2,6 milhões já investidos no cinema alagoano, mas produtora carioca vê benefícios para Alagoas

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Cineasta Cacá Diegues, ao falar ao governador-tampão de Alagoas, Paulo Dantas (MDB), sobre o convênio milionário para filmar Deus Ainda É Brasileiro. Foto: Pei Fon/Agência Alagoas/Arquivo

A mais nova produção do cineasta alagoano Cacá Diegues, “Deus Ainda é Brasileiro”, ganhou do governo estadual de sua terra natal uma aporte de R$ 6 milhões em dinheiro público. O convênio firmado sem licitação assinado na última quinta-feira (8) pelo governador-tampão Paulo Dantas (MDB) supera o dobro do valor investido em produções do cinema local. E integrantes do setor audiovisual de Alagoas condenaram a ressureição da “política de balcão” para acesso a incentivos culturais do governo estadual, direcionados a uma produção carioca.

O Governo de Alagoas e Cacá Diegues não comentam a polêmica parceria, nascida de tratativas iniciadas em março, no apagar das luzes do mandato do ex-governador de Renan Filho (MDB), que renunciou em abril para ser candidato a senador. Mas a produtora de seu longa-metragem, Paula Barreto, garante que o investimento é plenamente justificado pela visibilidade que Alagoas terá, proporcionada pelo filme. Ela ainda afirma que cerca de 60% do aporte (R$ 3,6 milhões)  serão gastos na terra onde Cacá Diegues nasceu, há 82 anos.

Já os integrantes do setor audiovisual, que precisam participar de editais e cumprir suas regras para poder receber investimentos do governo de Alagoas, expuseram seu espanto com o volume de recursos diretamente investidos em uma única produção audiovisual e realizado sem um certame público, edital e/ou processo licitatório. “Não encontra precedentes e nem paralelos na história do estado de Alagoas, tampouco conhecemos iniciativas do tipo em outros estados da federação”, disse a nota assinada pelo Fórum Setorial do Audiovisual Alagoano (FSAL), que representa e defende os interesses de mais de cem roteiristas, produtores, cineastas e técnicos do audiovisual de Alagoas.

O Diário do Poder não obteve respostas para as tentativas de obter o posicionamento do governo de Alagoas e da secretária estadual de Cultura, Mellina Freitas.

Governador-tampão de Alagoas, Paulo Dantas, ao assinar convênio para Deus Ainda É Brasileiro com a produtora Paula Barreto. Foto: Pei Fon/Agência Alagoas/Arquivo

Contramão das políticas para o audiovisual

Os alagoanos do FSAL destacam que, desde que a política de editais iniciou em 2010, foram lançadas cinco edições do Prêmio de Incentivo à Produção Audiovisual em Alagoas, com investimento total de R$ 2.693,000,00. Editais que passaram a somar aportes da Agência Nacional de Cinema (ANCINE), em 2016, multiplicando os valores da contrapartida do governo local.

Eles relatam que tais recursos do governo de Alagoas, somados ao aporte investido pela ANCINE, financiaram a produção de cinco longas-metragens, cinco telefilmes, uma série e 48 curtas-metragens. Investimentos que consideram fundamentais para o desenvolvimento do setor, com filmes que mostraram a cultura de Alagoas em festivais como Gramado, Roterdã, Havana e muitos outros.

“O investimento regional direto em uma única produção, cuja empresa produtora proponente está sediada na cidade do Rio de Janeiro e com histórico de atuação no Sudeste, vai na contramão de todas as políticas públicas que regem e pautam a produção audiovisual brasileira financiada com recursos públicos. Políticas com  ampla concorrência, rigorosos critérios técnicos de seleção artística e viabilidade econômica, garantias efetivas e percentuais de contratação de mão de obra local”, disse o FSAL, ao discordar do ato que denunciam ter sido feito sem um debate amplo com o setor, como poder de ferir princípios da administração pública como a proporcionalidade, razoabilidade e precaução.

Benefícios para o setor local

Ao argumentar que os R$ 6 milhões investidos pelo Estado de Alagoas é proporcional ao retorno que o filme pode gerar, Paula Barreto diz entender a reação da comunidade cinematográfica alagoana. Mas destaca a oportunidade que integrantes do setor terão de participar de uma produção voltada para ter uma carreira mundial nos circuitos de arte (festivais e mostras) e comercial (salas de cinema e demais mídias). Mas o FSAL evidencia que não há compromisso contratual com a contratação da mão-de-obra alagoana.

Paula Barreto evidencia que o filme vem despertando o interesse de vários parceiros internacionais e já tem distribuição contratada, antes de exaltar o direcionamento dos 60% do patrocínio do governo de Alagoas com a contratação de equipe e elenco locais, locação de equipamento e logística e todos os demais serviços de produção (hospedagem, alimentação, transporte etc).

“Entendo a questão levantada por parte da comunidade cinematográfica alagoana, mas devo dizer que não estão levando em consideração os benefícios que nossa produção trará, não só para o Estado, como para a própria comunidade cinematográfica que terá a oportunidade de participar ou, ao menos, acompanhar de perto a realização de um de seus mais proeminentes cidadãos. Além disso, uma produção desse porte pode contribuir muito para a consolidação de Alagoas como um importante polo da cinematografia brasileira”, argumenta a produtora do filme de Cacá Diegues.

O cineasta Cacá Diegues ocupa a cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Mérito inquestionável, já o retorno…

Os alagoanos do FSAL questionam o potencial econômico de retorno do investimento em um único projeto para o desenvolvimento do audiovisual regional, com o argumento de que, se o mesmo montante milionário fosse aplicado numa política mais abrangente e menos concentrada, poderia induzir e impactar de maneira muito mais efetiva e estruturante a cadeia produtiva, os diversos profissionais, as pequenas empresas produtoras sediadas no estado e que têm mostrado a qualidade de sua produção no Brasil e mundo afora.

“Ressaltamos aqui que esta instância legítima e representativa do audiovisual alagoano reconhece o mérito artístico do cineasta alagoano Cacá Diegues, há mais de cinco décadas radicado no Rio de Janeiro, pela sua grande contribuição ao cinema nacional. Portanto, esta manifestação pública não é uma crítica pessoal, mas um questionamento que faz parte do papel do Fórum Setorial do Audiovisual Alagoano,  entidade que busca defender os interesses do audiovisual em Alagoas, setor produtivo estratégico, janela qualificada de nossas histórias e talentos para o mundo”, critica a FSAL.

A entidade pediu que a pasta da Cultura de Alagoas reconsidere o investimento desproporcional em uma única produção e redirecione o montante de R$ 6 milhões para políticas públicas democráticas, que possam ser acessadas amplamente pelo setor cultural alagoano. Além disso, pediu o acesso imediato ao instrumento jurídico/documento público que rege o contrato assinado no dia 8.

 

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