Caso Ilha de Marajó

Conselheiro tutelar denuncia ‘cultura do estupro’ em Marajó

O diário do Poder ouviu o antigo conselheiro tutelar da Ilha de Marajó que relatou abuso, exploração infantil e abandono do Estado

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Moradores de comunidades ribeirinhas do arquipélago de Marajó, no Pará. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O Diário do Poder teve acesso a um documento sigiloso que descreve a denúncia feita por uma missionária ao Ministério Público do Estado do Pará descrevendo casos de exploração sexual, cemitério clandestino e compartilhamento de pornografia infantil que ocorre no arquipelágo do Pará, a Ilha de Marajó. 

Segundo o documento protocolado no dia 22 de fevereiro de 2024 pela promotora de Justiça Paula Suely de Araujo Alves Camacho, o Ministério Público recebeu a denúncia da missionária que atua em um abrigo de Portel e relatou ao menos dois casos de extrema gravidade. 

A missionária relata que durante missões no interior da Ilha de Marajó tomou conhecimento de um caso de tráfico de crianças e adolescentes e que em algumas comunidades identificou que existem aliciadores de países estrangeiros que fornecem internet, via Starlink, para a produção de pornografia infantil. Ainda na denúncia, a missionária informa que existe um vídeo, em posse da Polícia Federal, que mostra um cemitério clandestino. 

Em resposta à denúncia, o Ministério Público estabeleceu o prazo de cinco dias corridos contando com a data que foi feita a denúncia para apresentação de provas. 

Falta política pública 

A reportagem ouviu o antigo conselheiro tutelar, Angelo Pamplona, atuou por cerca de oito anos na região da Ilha de Marajó, (entre  2015 e 2023) e diz que um dos grandes desafios que os protetores infantis enfrentam é a “política pública da zona rural ser mais lenta”, por causa do isolamento e da distância predominante entre a cidade e a Ilha de Marajó. A cidade considerada capital da Ilha de Marajó é a Soure, que fica a cerca de 80 km de Belém, quase 2 horas de viagem.

Para os conselheiros conseguirem chegar até o arquipélago, é necessário um barco. Segundo, Pamplona quando a ocorrência de alguma violência e abuso contra criança chega ao órgão público, “os agentes levam cerca de 5 horas para conseguirem ajudar a vítima”. 

Os agentes recebem auxílio da prefeitura local com embarcação, salário e outros materiais fornecidos ao Conselhos. “Para fazer esse percurso, a gente precisa requisitar na prefeitura toda a estrutura, requisitar auxílio da Polícia Civil ou Militar para fazer as buscas”. 

 

Denúncias 

Angelo conta ao Diário do Poder que as denúncias de violência contra crianças e adolescentes chegam por meio dos familiares e professores da zona rural, que por meio do anonimato previsto por lei fazem a queixa. 

O processo das denúncias é criterioso: após receberem a denúncia, os conselheiros tramitam um relatório que é encaminhado para todos os órgão públicos dedicados a proteger crianças e adolescentes, como: Ministério Público, Delegacias, Juizado de menores e para o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). E juntos fazem uma ação em prol do bem-estar da criança em vulnerabilidade. 

Pamplona relata que recebia denúncias de violência de estupro contra crianças e adolescentes desde da sua primeira semana de trabalho. E ainda relata que os conselheiros mais antigos lhe disseram que “o quadro era muito pior”, por falta de leis, políticas públicas, palestras e eventos. 

Em 2016, os agentes tutelares iniciaram uma triagem das denúncias que o órgão recebia, e foi observado que não chegaram mais denúncias por ser “algo cultural”. 

“Na ilha de Marajó é cultural, infelizmente, é cultural o pai ou a mãe entregar a própria filha de 11 anos ou 12 para um homem de 30 ou 40 anos e dar como explicação que está entregando a criança porque ele está dando comida, estrutura, roupas e a família não conseguia dar assistência básica a criança”, relata o conselheiro. 

Com a falta de informação e instrução necessária na Ilha de Marajó, as denúncias não chegam pela normalização da “cultura do estupro” e violência de vulneráveis. O conselheiro explica que uma criança ou adolescente pode estar sofrendo alguma violência mas que não são comunicados por causa dos próprios pais que normalizaram os abusos e exploração. 

Ao ser questionado sobre como a população do arquipélago chegou a essa situação de “naturalizar o estupro de vulneráveis”, Angelo Pamplona acredita que seja por causa da economia negligenciada da região. A região de Ilha de Marajó conta com oito municípios na lista dos 50 com pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estática) de 2010, com estimativa demográfica estimada em 2019, com pobreza extrema e com índice alto de analfabetização, causado pela exclusão e isolamento da Ilha com as cidades. 

“Aqui as pessoas não sabem  o que é crime, justamente por causa desse afastamento, elas não têm contato com as leis, com a sociedade, com órgãos públicos e instituições”. Angelo diz que só conseguiu entender isso quando trabalhou no Conselho Tutelar com mais 4 agentes, e percebeu essa “falha no sistema”, das vilas estarem afastadas e os próprios conselheiros não conseguirem chegar até as pessoas. 

E pelo número pequeno de agentes tutelares, não conseguiam atender todas as vilas da região por serem de difícil acesso. E complementa que a única forma de resolver a “falha no sistema” seria com internet móvel ou por satélite, que atendesse todas as vilas e tivesse contato com os órgãos públicos. 

 

‘Enrolada como uma cobra’


Sobre as denúncias de suposto sequestro e tráfico internacional de crianças, o conselheiro afirma que no período de sua atuação não presenciou nenhum caso, apenas de uma mulher moradora de Belém que convenceu uma mãe da ilha a vender sua filha, mas antes da sequestradora conseguir fugir com a criança para a capital paraense, a polícia militar juntamente com os agentes tutelares conseguiram fazer o resgate. Pamplona ainda se emociona ao falar dos casos:

 “uma criança, era abusada todas as noites. Em sua casa, não havia cama, apenas redes para dormir. Todas as noites a criança deitava na rede e ela sabia quando ia ser estuprada, para se proteger do abusador, como mecanismo de defesa a vítima se enrolava na rede como uma cobra para não ser abusada mais uma vez. O abusador então desenrolava a rede e a criança já sentia que ia ser estuprada novamente”. 

Angelo Pamplona diz que é necessário que os conselheiros tutelares tenham acompanhamento psicológico fornecido pelo Estado, para que os ajudem a lidar com tantos casos semelhantes para que não haja cansaço mental e transtornos futuros. 

 

Deixados de lados 

O conselheiro SE DIZ completamente revoltado com as informações falsas que afirmam não existem casos de estupro e abusos de vulneráveis na Ilha de Marajó. Pamplona ressalta que enquanto estava no órgão, ninguém chegou a checar as informações com os órgãos competentes. 

“Pelo amor de Deus, todas as denúncias tramitam no Ministério Público. É só verificar nas fontes, ir nos conselhos, são 16 conselhos no Marajó. E eu digo que nenhum desses mecanismos foram procurados para apurar a verdade. Durante 8 anos, nunca fomos consultados para saber a verdade, nunca recebemos um ofício ou a imprensa”, crítica. 

E ainda ressalta que se não houvesse a repercussão da cantora gospel Aymeê, que por meio da música denunciou os abusos que ocorrem na Ilha, os órgãos competentes ainda não teriam sido procurados. 

 

Programa Abrace Marajó 

Pamplona cita o programa Abrace Marajó, iniciativa da atual senadora Damares Alves (PL-DF), mas que na época da criação do programa era Ministra dos Direitos Humanos no governo de Jair Bolsonaro, que enviou assistência para os Conselhos Tutelares com computadores, carro novo, bebedouros, geladeira e outros pedidos solicitados pelos agentes para auxiliar no trabalho árduo. 

Com o fim do programa, o Pamplona ressaltou a criação do Cidadania Marajó, criado em abril de 2023, no governo Lula. O conselheiro denuncia que com o novo programa “nunca chegou nada na região”. 

Por meio das redes sociais, após a repercussão da situação, Damares Alves publicou sobre O Abrace Marajó: “criamos um programa nacional que foi pensado para enfrentar não somente a violência e o abuso contra crianças e mulheres no arquipélago, mas para enfrentar a pobreza e os baixos índices de desenvolvimento humano”. 

Em outro post, a senadora diz que ficou “tocada” com a voz da cantora gospel Aymeê, e ressaltou que “combater o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes é a luta de uma vida para mim”. 

E ainda relata o primeiro contato com a Ilha de Marajó e os feitos do Ministério dos Direitos Humanos enquanto ainda estava sob sua responsabilidade: 

Os primeiros contatos que tive sobre a situação do Marajó foram no início dos anos 2000 na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Depois, em 2010, eu era assessora parlamentar na Câmara Federal e acompanhei a CPI sobre o Tráfico de Pessoas. Foi quando conheci Dom Azcona, que como eu era ativista e, sozinho, denunciava os casos que ocorriam na região. 

A reportagem entrou em contato com o Ministério Público do Pará e com o Ministério dos Direitos Humanos e não obtivemos respostas. O espaço está aberto para atualização caso haja retratação. 

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