Sobre o real interesse do Brasil criar um programa para hidrogênio

acessibilidade:

O Hidrogênio Verde (H2v) virou “vitrine” como o vetor mais importante da transição energética. As notícias são de alto interesse de países europeus em importar hidrogênio verde para suas descarbonizações. No Brasil, várias entidades, inclusive estados da federação, estão se mobilizando para criar hubs para produção e exportação desse produto.

Esse movimento tem levado congressistas a propor legislação com uma série de benefícios para a produção de hidrogênio verde. Projetos em discussão incluem benefícios a serem arcados com recursos oriundos de contribuição dos contribuintes e também por contribuição dos consumidores de eletricidade. Sobre esses subsídios em coautoria com Dr. Luiz Maurer já publicamos um artigo aqui no Diário do Poder.

Ao mesmo tempo que no Brasil e no mundo tem havido essa onda de entusiasmo pelo H2v, recentemente uma série de artigos de origem técnica incontestável levantam sérias dúvidas sobre o real mercado que poderia existir para o H2v, tanto a curto como a médio prazo.

Antes de discutir sobre esses artigos tentemos nos concentrar na produção e uso do H2v.

A PRODUÇÃO do H2v consiste na eletrólise da água feita usando eletricidade gerada por fontes não emissoras de gases de efeito estufa. Os projetos anunciados estimam o custo de produção de hidrogênio verde tendo como composição: eletricidade – 50 a 55%; CAPEX de Eletrolisadores – 30 a 35%; Operação & Manutenção & Água – 12 a 16%; Remuneração do investimento – 8 a 10%. Portanto, os dois fatores mais importantes são eletricidade e CAPEX (eletrolisadores).

O H2v enfrenta um competidor poderoso, o H2 produzido a partir do gás natural, cujo custo de produção é um baixo percentual do custo do H2v (entre 20 e 30%).  O H2 produzido a partir do gás natural pode ser feito sem Sistema de Captura de Carbono (CCS), o chamado H2 cinza, ou com uso de CCS, o H2 azul. Recente publicação da BloombergNEF indica que os custos médios nivelados em 2023 são: H2 verde 4,5–12 US$/Kg; H2 cinza 0,98–2,93 US$/Kg; e H2 azul 1,8–4,7 US$/kg.

Além do desafio enorme de redução de custos de produção, o H2v tem outro desafio na baixa eficiência energética de sua produção, hoje ao nível de 60%, ou seja, de cada GWh usado em sua produção 40% são perdidos, energia essa que poderia ser utilizada em outra atividade produtiva. Adicionalmente, para cada quilograma de H2v cerca de 10 litros de água são consumidos, que pode dobrar para água não purificada.

Outro desafio do H2 está no ARMAZENAMENTO. Tendo alta densidade energética por peso (33,33 kWh/kg) tem, no entanto, baixa densidade energética por volume (3 kWh/litro).  O armazenamento de hidrogénio é essencial para a economia do hidrogénio e tem recebido relativamente pouca atenção no recente esforço para aumentar a sua produção. A viabilidade econômica dos sistemas de armazenamento de hidrogênio gasoso e líquido ainda é discutível. Na forma gasosa, o armazenamento subterrâneo de hidrogênio está numa fase inicial de desenvolvimento e é necessário um trabalho aprofundado e abrangente para enfrentar os desafios. Outra maneira de armazenamento na forma gasosa seria por compressão. No entanto, somente reservatórios de pequeno porte podem ser viabilizados. Na forma líquida, exige investimentos para instalações de liquefação e resfriamento. Tanto armazenamento do hidrogênio comprimido como líquido reduzem ainda mais a eficiência energética do ciclo de produção.

O terceiro importante desafio do hidrogênio é o TRANSPORTE. A forma mais econômica de transporte é na forma gasosa e por gasodutos. Os gasodutos de hidrogênio são o meio adequado para necessidades em larga escala em distâncias usualmente até cerca de 2.000 km. Porém, os custos de investimento para a construção de novos gasodutos dedicados ao hidrogênio, constituem uma barreira substancial. Assim, a indústria e os mercados estão à procura de formas de reaproveitar a infraestrutura existente de gás natural para o hidrogênio. No entanto, a compatibilidade de tubulações, compressores, acessórios e outros componentes na rede de gás existente levanta preocupações sobre fragilização, resistência à fratura e corrosão se usados para hidrogênio.

O transporte de hidrogênio é um enorme desafio e aumenta significativamente o custo da cadeia de abastecimento. Além do transporte por caminhões e por gasodutos, o transporte de hidrogênio líquido por navio para o exterior para longas distâncias é uma das opções que estão sendo experimentadas e testadas pela indústria. Por enquanto, no entanto, o negócio ainda está em seus estágios iniciais de desenvolvimento. Um dos principais desafios do transporte de hidrogênio líquido para longas distâncias é a necessidade de manter o hidrogênio a 253 Celsius negativos. Esse transporte é um pouco semelhante ao do gás natural na forma de GNL, mas a temperatura necessária para o transporte do H2 é quase 100 graus mais frio. Para tal, devem ser produzidos tanques e embarcações de transporte específicos. Alternativamente, o H2 pode ser enviado na forma de H2 comprimido ou derivados como amônia ou metanol.

Quanto aos USOS, o H2v pode ser usado como combustível e/ou na descarbonização de alguns setores.

O uso do hidrogênio como COMBUSTÍVEL, seja na forma de substituto do gás natural, seja para armazenamento de energia, enfrenta dificuldades técnicas devido a baixíssima eficiência do ciclo entre o uso da eletricidade para produção do hidrogênio, seu transporte, armazenamento e outra conversão por queima direta ou uso de célula de combustível para voltar à eletricidade. O ciclo para tal uso envolveria eficiências ao redor de: produção (60%); liquefação (60%); transporte (90%); armazenamento; geração eletricidade (30% a 40%). Portanto, a eficiência total seria cerca de 15%. O uso direto da eletricidade produzida por renováveis resulta mais adequado.

Na DESCABONIZACAO de diversos setores, até entidades que advogam o uso do hidrogênio como por exemplo o Rocky Mountain Instute em artigo de título “Why Hydrogen” indica:

O hidrogénio pode ser utilizado para descarbonizar muitos sectores da economia, mas deve ser priorizado em setores “difíceis de reduzir”, como a indústria pesada e os transportes de longo curso, onde a eletrificação direta não é viável. O hidrogénio é atualmente a única via de baixo custo, escalonável para descarbonizar totalmente estas atividades essenciais que possuem utilização intensiva de carbono. No entanto, o hidrogénio não é uma panaceia para a descarbonização. O RMI não acredita que o hidrogénio deva ser utilizado em setores e casos de utilização que possam ser diretamente eletrificados.

Realmente setores que podem usar eletricidade diretamente (residências, comércio, veículos leves) não justificam técnica e economicamente usar o hidrogênio sendo mais apropriado que o hidrogênio verde seja usado na descarbonização de indústrias como Fertilizantes, Siderurgia e Cimento.

A amônia é uma substância crítica na produção de fertilizantes e é atualmente responsável por cerca de 45% do consumo mundial de hidrogênio. No entanto, essa produção é de amônia tradicional a partir do gás natural (cinza), um negócio maduro no mercado. Amônia azul e verde ainda estão em fase de Criação de Valor.

A produção de aço é outro processo que consome muita energia. O hidrogênio é uma das soluções propostas para descarbonização. Pode ser usado substituindo o carvão pulverizado no processo de redução do minério de ferro. O processo industrial mais avançado neste campo, a aço SSAB Fossil-free a ser produzido usando a revolucionária tecnologia HYBRIT, acaba de ser testado e resultados mostram que o uso do hidrogênio permite produzir aço de mesma qualidade. Infelizmente a revista Accelerate Hydrogen em sua newsletter de 2/11/2023 anunciou que esse projeto sofreu paralisação por dificuldades não divulgadas. O negócio está em sua fase de desenvolvimento, e mais esforços são necessários para impulsioná-lo para passar para a fase de produção. No Brasil, a indústria siderúrgica utiliza carvão vegetal como substituto de parte do seu consumo.

Sobre uso de H2 na produção de aço, artigo recente do Jornal The Hamilton Spectator (Ontario, Canada) informa que um estudo da indústria concluiu que a produção de aço com emissões zero é possível em Hamilton usando “hidrogênio verde,” porem, somente no futuro. O novo estudo estima que a ArcelorMittal Dofasco precisaria de cerca de 27 gigawatts-hora de eletricidade por dia para produzir hidrogênio “verde”. Para tal, seria necessário um parque eólico que abrangesse cerca de 987 quilômetros quadrados. Como conclusão, o estudo recomenda fabricar aço com H2 azul por ser mais barato.

O uso de hidrogênio na produção de cimento é altamente discutido por muitos; no entanto, o número de aplicações comerciais é bastante limitado. Os ensaios existentes mostram que o hidrogênio poderia ser usado como agente em uma mistura de combustíveis de baixo carbono em vez de usá-lo como fonte de combustível independente. Um estudo de viabilidade preparado pelo Departamento de Negócios, Energia e Estratégia Industrial (BEIS) do Reino Unido, discute vários cenários dessa mistura. Porém, o uso de hidrogênio na produção de cimento ainda está em fase de desenvolvimento. Além disso a utilização de coleta de carbono (CCUS) também é uma opção sendo considerada e seria um competidor com o H2v.

No caso do Brasil, realmente o país pode promover o uso de hidrogênio verde na descarbonização dessas indústrias. Mas necessitaria ser com benefícios? Porque o consumidor de eletricidade deve pagar o custo dessa descarbonização? Porque não o consumidor dos produtos dessas indústrias? Por que não deixar que essas indústrias definam como fazer sua descarbonização? Porque o governo envolver-se nisso?

Outra dificuldade do hidrogênio são as recentes dúvidas sobre sua efetiva contribuição para combater o aquecimento global. Alguns estudos recentes apresentam cenários de vazamento de hidrogênio contribuindo para o aquecimento climático. O hidrogênio vaza em qualquer ponto da cadeia de abastecimento e pode atuar como um efeito indireto de gás de efeito estufa, reagindo com poluentes como o metano para estender sua vida na atmosfera. O hidrogênio vazado também pode impactar concentrações de ozônio, potencialmente prejudicando a recuperação da camada de ozônio. Outras dificuldades desses vazamentos são: (i) dificuldade de evita-los devido a facilidade de fuga do H2 pelo pequeno tamanho da molécula; e (ii) detecção dos vazamentos por ser gás sem odor nem cor. Publicação do “Cicero Institute” indica que vazamentos de H2 podem ser 12 vezes piores que os de CO2. O uso do H2 como combustível em queima direta também é perigoso pois devido à alta temperatura de sua chama produz grande quantidade de oxido de nitrogénio (NOx). Preocupações que podem ser exageradas, mas criam duvidas em investidores e financiadores, ao menos, até que sejam sanadas.

A business school da Universidade de Barcelona acaba de publicar um artigo sobre a situação da maturidade económica/comercial das oportunidades de negócios proeminentes relacionadas ao hidrogênio (El hidrógeno verde, ¿burbuja o una realidad energética? Analizando la rentabilidad del sector). Esse artigo conclui o seguinte:

A expectativa para o hidrogênio como vetor energético é muito alta e dificilmente será cumprida. A principal razão é o crescimento acelerado que está sendo direcionado por setores com interesses, assumindo riscos que não seriam contemplados no caso de um crescimento orgânico. Considerando que a maior parte das aplicações está longe da rentabilidade, os projetos resultantes dependem da disponibilidade de financiamento ou subsídios públicos. E sendo estes limitados, há uma grande quantidade de projetos em fase de análise, que, constatada sua falta de rentabilidade, ficam à espera de subsídios ou mudanças no mercado de combustíveis fósseis para torná-los lucrativos. Esta é a razão principal para a lenta evolução dos projetos anunciados”.

A Universidade de Cambridge também executou uma pesquisa sobre oportunidades de negócios proeminentes e relacionadas ao hidrogênio. Foram investigadas 20 oportunidades de negócios e analisada uma amostra de modelos de negócios de 64 empresas de 18 países em todo o mundo. O estudo visou investigar quais casos são viáveis ​​​​agora e quais provavelmente serão viáveis ​​no futuro. O objetivo foi apresentar um amplo horizonte. A conclusão desse estudo foi de que a maioria das oportunidades de negócios carece de geração de recursos autossustentáveis, ou seja, geração de receitas, portanto, estão longe de serem empresas maduras. Dentre as 20 oportunidades de negócio analisadas apenas 3 (produção de metanol, amônia e refinarias) apresentam produção comercial, e todas usando H2 cinza. Evidentemente, outros usos já consagrados do H2 cinza, como na industria farmacêutica, alimentícia e química não foram considerados.

Tendo em vista os componentes de custo na geração de H2v, ao exportar hidrogênio o Brasil estará exportando eletricidade, água e mão de obra pouco qualificada.  Por outro lado, estaremos importando eletrolisadores (mesmo se montados no Brasil, seus componentes e projeto seriam importados). Além disso, com essas dúvidas sobre a maturidade do mercado atual, fica a pergunta: Teremos um balanço positivo? Não estaremos, no final, exportando apenas água e subsídios na eletricidade?

Em CONCLUSÃO, embora o Hidrogênio Verde (H2v) tenha passado a ser chamado de o vetor mais importante da transição energética; embora as mídias tragam notícias de alto interesse de países europeus e de várias entidades, estados da federação, políticos e autoridades, a realidade mostra-se um pouco diversa.

O hidrogênio, apesar de poder vir a ser instrumento importante nessa batalha de descarbonização, ainda enfrenta sérios desafios na produção, armazenamento, transporte e comercialização.

Os desafios a enfrentar cobrem aspectos tecnológicos, de eficiência, redução de custos, ambientais e comerciais, como detalhados neste artigo.

Portanto, parece prematuro para o Brasil lançar um programa nacional de hidrogênio, especialmente com aplicação de recursos públicos (seja por investimento ou mesmo financiamento), pior se houver subsídio, e pior ainda mais se esse subsídio se destinar à exportação. Seguramente, no futuro, quando a solução desses desafios tiver sido equacionada e o mercado mostrar maturidade, o próprio setor privado se interessará por investir.

Devido ao conjunto de desafios e a falta de maturidade, cabe ao setor público calibrar seu “desejo” (no sentido de vontade, aspiração) e focar no “desejável” (o que se pode desejar).

De acordo com a atual legislação eleitoral brasileira (resolução TSE 23.610/2019), sites de notícias podem ser penalizados pelos comentários em suas publicações. Por esse motivo, decidimos suprimir a seção de comentários até o fim do período eleitoral.