Sobre anjos bons e anjos maus
Prefiro lembrar que há anjos bons e anjos maus. Havia uma brincadeira na infância em que a criança no começo de uma fila dizia como que batendo numa porta – tum, tum, tum…
A criança que fazia as vezes de porteiro indagava – quem é? A outra dizia – eu. Nova pergunta – eu quem? E o batedor então se identificava – anjo bom.
Para saber se quem batia àquela porta era mesmo um anjo bom e não um anjo mau era preciso uma revelação, uma espécie de senha. A pergunta que se seguia então era – o que trazes? A resposta – uma fita. Nova pergunta – que cor?
Se a cor era azul, nenhuma dúvida. O anjo que batia à porta era um anjo bom. Podia entrar na brincadeira e seguir confiadamente.
Hoje, entre nós aqui ainda meio crianças e meio adultos, a brincadeira não mudou muito.
Continuamos acreditando e admitindo no nosso mundo todos os que se dizem anjos do bem só porque ostentam a fita azul.
Nem atentamos para algumas advertências do Mestre como aquela – acautelai – vos dos falsos profetas, aqueles que se mostram em peles de cordeiros, mas que por dentro são lobos vorazes.
Realmente, não é tão fácil estarmos a salvo deles. Como na abordagem se mostram mansos, agradáveis, muitos até inspirando peninha, coitadinhos e a gente até se esbalda querendo ajudar. Com o passar do tempo, ledo engano. Cordeirinho de Deus ou Anjo do Bem que nada! Por dentro, no invisível, uns tremendos vigaristas.
Não vejo essas coisas como maldição. Enquanto não chegar o último minuto do último dia eles, os anjos do mal, lobos vorazes em peles de mansos cordeiros, continuarão no circuito até mesmo como forma justificadora da advertência do Mestre.
O que leva, por exemplo, uma pessoa a pregar ética, a se investir em defensora intransigente dos bons costumes, a estar sempre dedo em riste a apontar as mazelas dos outros, a clamar por vingança da sociedade contra os que a envergonham e, de repente, se ficar sabendo que aquelas teorias todas na prática não significavam mais do que a convocação daquele lema do cinismo – faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço.
Conta-se que no começo do mundo todos os anjos eram bons. Depois, um deles chamado Lúcifer se acometeu de inveja quando o Criador lhe disse que a redenção do mundo não se encarnaria nele, mas no Cristo.
Houve um cisma e o Lúcifer ainda arrebanhou parte dos anjos com os quais montou o seu diretório com o qual vem seduzindo incautos, frustrando bons propósitos, disseminando maus exemplos, atrasando os avanços da humanidade, plantando maldades, enfim, infernizando futuros e a vida de muita gente.
Aqueles anjos decaídos da canção do nosso Baleiro, – Heavy Metal do Senhor / o cara mais underground que eu conheço é o diabo… – são os anjos maus popularmente conhecidos como demônios.
Os anjos bons são os que realizam a obra do Senhor. Os que praticam os preceitos que pregam e não habitam em si a contradição entre as aparências do bem e as eficácias do mal ao mesmo tempo.
Nossa luta de todo dia é para que a nossa carga de defeitos seja sempre mínima, imperceptível, se possível, perante as nossas boas ações.
Assistir a uma pessoa que até então nos convencia como anjo do bem, defensor intransigente da ética, combatente sem tréguas contra a impunidade, ver essa pessoa revelada em práticas completamente diferentes das coisas que nos fazia crer e até admirá-la porque notável dentre as raras minorias ainda respeitáveis, e depois, como agora, concluir que não era nada disso, meu Deus, por que nos impressionamos tão facilmente e baixamos a guarda e nos mantemos assim sempre tão descuidados?
Edson Vidigal, Advogado, foi Presidente do Superior Tribunal de Justiça e do Conselho da Justiça Federal.