Setor elétrico: menos robusto e muito mais caro

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Minha formação básica foi em escolas públicas, em Aracaju. Meus professores são inesquecíveis. O de matemática, nos ajudava a raciocinar. Em uma das aulas escreveu os números 111, 222, …, 888 e 999. Perguntou: quais as propriedades comuns a estes números? Uníssonos, respondemos: todos têm três algarismos.

Lembro desse exercício quando alguém fala do estado atual do setor elétrico. “A crise é grave, mas a situação é diferente de 2001. O setor elétrico ficou mais robusto”. Esta afirmação virou lugar-comum, inclusive em rodas de especialistas, acadêmicos e analistas do mercado financeiro. Quase um axioma.

Em 2001, a oferta era cerca de 90% de hidrelétricas. A capacidade total de armazenamento era esplendorosa. Com os reservatórios cheios, a energia estava assegurada para vinte meses. E, anos antes, essa oferta era suficiente para 24 meses ou mais. Época dos reservatórios plurianuais. Apesar da excessiva subordinação às hidrelétricas, uma crise dependeria de dois anos consecutivos de escassez de água, como em 2000 e 2001.

Depois do racionamento, o Brasil, sabiamente, entrou na onda de diversificação da matriz elétrica por meio de fontes renováveis. Mais de R$ 500 bilhões foram investidos. Mudou a configuração da oferta. Em 2021, as hidrelétricas participam com 65% da capacidade instalada e com 70% da energia gerada. Porém, os reservatórios, quando cheios, só são suficientes para quatro meses de consumo de eletricidade, isto é, para 1/3 do tempo. Ainda assim, é atribuída às hidrelétricas uma garantia física (GF) que corresponde a 81% da carga, uma impossibilidade.

Foi sensivelmente reduzida a proporção da energia armazenada em relação ao consumo, mas a incumbência das hidrelétricas continuou elevada. Os reservatórios só têm energia para 1/3, mas as usinas precisam gerar para 2/3 ou mais do consumo. Sem contar suas estratégicas contribuições para a confiabilidade e flexibilidade de operação da rede.

Para que esse perfil de oferta, ano a ano, não seja desastroso, são essenciais chuvas regulares durante todo o tempo. Uma raridade. Além disso, 70% da capacidade de armazenamento estão no Sudeste, o que exige de São Pedro boa pontaria. A vazão defluente (água que sai) dos reservatórios, em 12 meses, é maior que a afluente (água que chega), esvaziando-os rapidamente. Não é uma anomalia, então, o que aconteceu em cinco dos últimos oito anos, incluindo este.

As demais fontes, por razões técnicas, não conseguem suprir, na média anual, mais que 35% da carga, a menos que sejam utilizados outliers – termelétricas para operar em longa duração e ao custo da escassez. Conclusão: apesar de diversificada e limpa, a oferta continuou muito dependente das hidrelétricas. O setor elétrico perdeu em robustez. O esforço para modificar a matriz desprezou o lado virtuoso da capacidade de regularização dos reservatórios e não buscou termelétricas a preços competitivos.

Em 2001, a tarifa média da classe residencial era da ordem de US$ 65/MWh. Em 2021, com as bandeiras tarifárias, a tarifa é superior a US$ 125/MWh, e em algumas distribuidoras passa de US$ 135/MWh. Boa parte desse aumento vincula-se à segurança do sistema – gastos para minimizar o risco de a oferta ser menor que a demanda.

E as perspectivas são terríveis. Em razão da severa escassez de água, a produção das hidrelétricas será muito reduzida. No segundo semestre, as hidrelétricas devem gerar, no máximo, 65% de suas GF. Isto implica fator de ajuste, conhecido como GSF, equivalente a R$ 40 bilhões. Destes, entre 25% e 30% é responsabilidade dos consumidores. Só isto resultaria em 8% de reajuste na tarifa em 2022. E ainda há os mais de R$ 10 bilhões de gastos com termelétricas que serão pagos como encargos, além dos diferimentos de 2021.

A outra parcela do GSF, superior a R$ 25 bilhões, é despesa das hidrelétricas, se a escassez não se prolongar por 2022. Dois serão os impactos desses gastos bilionários: elevação do preço de energia no curto e médio prazo, nos mercados livre e regulado, ou segue-se a rotina dos últimos 10 anos, de arrumar alguém para pôr um “jabuti” na primeira Medida Provisória (MP) que surgir.

Qualquer que seja o caso, o consumidor pagará a conta, no mínimo parcialmente. A propósito, a MP 1.055, apelidada de MP da crise, obteve 248 emendas. Duas, as de número 220 e 222, vão nessa direção. E convém prestar atenção naquelas que propõem o uso de fontes renováveis como reserva de capacidade, como se o Sol brilhasse depois das 18 h e as eólicas elevassem a produção sempre que acionadas pelo operador do sistema. Mais custos no front.

É positiva a articulação do governo com a indústria para a redução do consumo nas horas de demanda máxima. Em lugar de acionar termelétricas de R$ 1.700/MWh, sai mais barato reduzir o consumo, na mesma magnitude, em troca de R$ 1.200/MWh. Todo sistema é beneficiado. Mas a conta não deve ser dos demais consumidores. Não é deles a inadimplência com o sistema. Porém, não se iluda. Até as traíras e as matrinxãs que habitam o lago de Furnas sabem onde será espetada mais esta despesa.

Retorno ao início deste artigo. É amplo o conjunto de propriedades comuns àqueles números, mas é necessário pensar com o sistema 2 (de atenção) da mente, como ilustra Daniel Kahneman em Rápido e Devagar. Ex.: nenhum deles é primo, todos são divisíveis por três e por 111 e a raiz quadrada não é um inteiro. E vale a pena reparar a lista completa de divisores desses números geniais.

Concordo com os analistas e acadêmicos quando, utilizando o sistema 1 (automático) da mente, afirmam que a situação é diferente de 2001. É sim. Só que, lá, o setor elétrico era inseguro e barato e, 20 anos depois, ele perdeu robustez e ficou muito mais caro. Essa é a diferença, para pior.

Edvaldo Santana é doutor em engenharia de produção e ex-diretor da ANEEL
Artigo publicado também no jornal
Valor.

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