Reserva de Capacidade e de Energia
Diferente dos sistemas de suprimento de outros produtos, o suprimento de energia elétrica não permite diferença entre a demanda a ser atendida e a geração de eletricidade para tal atendimento. O “casamento” deve ser instantâneo. Para tal o sistema deve, continuamente, ter reserva de Capacidade Instalada (MW) para gerar eletricidade atendendo as variações de carga.
Por outro lado, como ocorre nos sistemas de suprimento de outros produtos, a fonte de geração de eletricidade deve ter estoque do produto para continuar suprindo a carga em sua totalidade durante todos os segundos, minutos e horas de todos os dias do ano. Para tal deve ter capacidade de Reserva de Energia (MWh) primária para continuar a gerar eletricidade.
Por décadas o setor elétrico brasileiro funcionou com atendimento completo de ambos tipos de reserva devido aos tipos de fontes “convencionais” de geração utilizados: hidrelétrica e termoelétrica (a carvão, petróleo, gás ou nuclear). Essas fontes, usualmente possuem capacidade de armazenar suas energias primárias (água e combustível).
Recentemente o setor tem experimentado forte expansão por fontes intermitentes (fotovoltaicas e eólicas), porém como já fizeram piadas no passado, ainda é impossível armazenar as energias primárias dessas fontes (iluminação e vento). Assim, como no nosso sistema a penetração dessas fontes intermitentes se tornou significante, instaurou-se as discussões sobre os melhores tipos de reserva. Alguns, advogando por hidrelétricas com reservatório, outros por térmicas, outros por hidrelétricas reversíveis, outros por térmicas solares (CSP) com armazenamento de calor, outros por baterias, outros por resposta voluntária da demanda, e outros pela produção de hidrogênio verde (H2v).
Antes de discutir casos específicos é necessário alertar sobre as necessidades de curto, médio e longo prazo. Suprimento de energia primária com disponibilidade para atender o mercado futuro por muitas décadas, apenas existem fontes que dependam diretamente do sol e dos ventos (eólica e solar) que portanto devem, sim, serem usadas, porém, infelizmente, essa forma primária de energia não é armazenável. Além destas, apenas carvão e nuclear apresentam reservas no mundo capazes de atender o consumo por várias décadas. Assim, o mais razoável será promover o uso balanceado dessas alternativas considerando as limitações de cada uma e os seus efeitos climáticos.
Todas as opções de reserva acima discutidas são válidas porém seu uso não necessariamente atende aos dois tipos de reserva necessários. Cada qual pode ter uso adequado para um ou para os dois tipos de reserva dependendo de suas características e do objetivo que se deseja alcançar. Discutiremos cada uma delas.
Como já indicamos acima, por décadas esse atendimento foi garantido pelo uso de fontes hidrelétricas e termelétricas, portanto, elas atendem a ambos tipos de reserva. No entanto, mesmo essas possuem algumas limitações.
As hidrelétricas para terem reserva de energia necessitam ter reservatório e, portanto, sua limitação reside em termos locais apropriados e a oposição de ambientalistas. O Brasil ainda dispõe de vários locais com possibilidades de utilização. Seria necessário fazer-se o inventário e estudos de viabilidade dessas oportunidades. Hidrelétricas reversíveis se incluem nesse mesmo quadro, embora possam existir mais locais. E quanto à oposição ambientalista, faz-se necessário um processo educativo sobre as vantagens de reservatórios implantados adequadamente.
As térmicas a carvão, petróleo e gás natural, tem como objeção o fato de produzirem gases de efeito estufa, sendo que com gás natural os efeitos são muito menores que os outros dois tipos de combustível. Assim, devido à situação mundial relativa ao aquecimento global, a tendência é de que as duas primeiras devem ter suas instalações encerradas no curto prazo e as de gás natural limitadas ao mínimo necessário.
Outra alternativa para armazenamento de energia consiste em armazenar calor. Já existem sistemas utilizando essa técnica em várias usinas solares térmicas usando espelhos, as chamadas CSP (Concentrated Solar Power) onde os raios solares são concentrados por espelhos e aquecem sal líquido que transfere calor em um gerador de calor para uso em térmicas a vapor. Esse sal líquido é também enviado para um tanque de armazenamento quente. O sal líquido é mantido nesse tanque isolado com volumes que podem ser ajustados para fornecer a capacidade de armazenamento necessária para cada aplicação e local.
A alternativa nuclear cai naturalmente na mesma situação das fontes “convencionais” atendendo, portanto, tanto reserva de capacidade como de energia. Possui a vantagem de enorme capacidade de geração futura pela altíssima concentração de energia em quantidades pequenas de uranio. Suas limitações se restringem a ter-se no passado se limitado a grandes instalações de montante de investimento elevado e largos prazos de construção. No entanto, o setor se moderniza e planeja utilizar instalações menores (300 a 400 MW) e modulares, ou seja, de fabricação em série, o que poderá resolver essa limitação do passado. Existe também reação contrária de ambientalistas que, como hidrelétricas, podem ser reduzidas com um processo educativo.
A alternativa de uso de baterias tem sido atualmente alardeada como a solução ideal para ambos tipos de reserva. Vejamos suas limitações. Realmente, devido ao desenvolvimento de carros elétricos, o custo de baterias a lítio reduziu-se drasticamente nas últimas décadas. Porem até hoje, o mercado somente oferece baterias com capacidade para armazenar até quatro horas, ou seja, 100 MW de baterias somente podem atender 400 MWh de carga. Seria razoável instalar baterias para necessidades de longos períodos?
Além disso, baterias têm suas capacidades de armazenamento degradadas pelo uso (carga/descarga) apresentando vida útil entre 8 a 10 anos. Elas também têm seu desempenho sujeito a temperatura ambiente (tanto extremos baixos como elevados) o que exige climatização em suas instalações. Ocupam espaço considerável, por exemplo, o anuncio de um fornecedor indica para unidade de 2 MWh espaço de 15 m2, imagine-se a área (e custo) de instalação de baterias para servir de reserva de energia para todo o sistema. Existe também necessidade de cuidados nas instalações e manejo devido ao maior risco de incêndios com muito difícil formas de combate.
Por outro lado, a fabricação de Baterias depende de elementos químicos (lítio, cobalto, níquel, cobre) cuja mineração e processamento enfrentam problemas ambientais e consomem energia e muita água. O pior, a quase totalidade da quantidade de fabricação de baterias se destina ao maior consumidor: o carro elétrico. Portanto, por todas essas característica, depender de baterias como única fonte de reserva não parece adequado.
A alternativa de resposta voluntária de demanda é bastante utilizada em vários sistemas elétricos, servindo para auxílio e economia de investimento de capacidade para atendimento aos momentos de ponta da carga e também para constituir-se em capacidade de reserva de capacidade. Para tal a concessionária e consumidores que tenham capacidade de reduzir suas cargas por alguns períodos de hora (ou horas) entram em acordo de compensação financeira para redução da carga quando solicitado pela concessionária. Serve sim, e muito bem, para controle de pico de demanda, auxílio à reserva operacional (tanto de controle de frequência como operativa de curto prazo) e até para reserva planejada para manutenções de médio prazo, desde que não longo. Porém não deve ser usado como reserva de energia para longo prazo.
A alternativa de uso de hidrogênio como reserva de energia encontra grandes dificuldades de caráter técnico e econômico. Os desafios técnico/econômicos se referem principalmente ao armazenamento e transporte do H2v. Tanto na forma gasosa como líquida encontrar soluções adequadas e de baixo custo tem se mostrado um desafio ainda não totalmente resolvido. O maior desafio é o econômico, pois parece difícil de ser superado pois enfrenta as leis da termodinâmica e deve-se a baixa eficiência em produzir o H2v por eletrólise (eficiência como 60%), liquefazer o H2v (eficiência como 40% a 50%) e produzir eletricidade por células de hidrogênio (eficiência como 40% a 60%). Portanto gastaríamos 100 MWh de eletricidade para produzir H2v e depois de armazenar esse H2v, poderíamos produzir algo como 20 MWh de eletricidade. Realmente, H2v deve ter outros usos, mas dificilmente poderá servir como reserva de energia. Pessoalmente já publiquei alguns artigos sobre este assunto.
Em Resumo
O aquecimento global coloca a humanidade perante um dilema difícil de enfrentar. Estamos acostumados ao conforto do uso da energia produzida com combustíveis fósseis e o futuro nos fica ameaçado se assim continuarmos a fazê-lo. A descarbonização provocará a substituição desses combustíveis por eletricidade, principalmente no transporte individual, aumentando a necessidade de geração de eletricidade de fonte limpa. O futuro da geração de eletricidade, portanto, terá necessariamente que depender fortemente de geração eólica e fotovoltaica. Como indicamos neste artigo, isto exigirá a complementação por reservas de capacidade e de energia. Várias formas dessas reservas existem e o mais razoável, e talvez indispensável, será utilizar-se de todas elas dentro de suas características que tentamos resumir neste artigo. No caso do Brasil, estamos com alta penetração de fontes intermitentes e a expectativa é de que continue e até aumente, portanto, esse assunto de reserva torna-se crítico. Como no Brasil a expansão do sistema se materializa por leilões, faz-se importante que nos leilões para reserva seja especificado para que tipo de reserva se destina. Isto porque, a comparação entre ofertas deve considerar o tipo de reserva em disputa e, caso contrário, poderemos estar contratando somente parte das necessidades.
Armando Ribeiro de Araujo é Engenheiro Eletricista com Mestrado e Doutorado, foi Diretor de Procurement Policy do Banco Mundial, Secretário Nacional de Energia do Ministério de Infraestrutura, Presidente da Eletronorte, Membro do Conselho de Administração de Itaipu, Furnas, Chesf e Eletronorte. Atualmente presta serviços de Consultoria.