Predadores elétricos

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Uma característica do atletismo é a superação de limites ou recordes. Alguns demoram décadas para serem batidos. No masculino, o lançamento do disco é de 1986. O salto em altura e o revezamento 4 por 400 m tem 40 anos, como, no feminino, os 800 m.

Para 2023, a Diamond League, competição que acontece ao longo do ano, trouxe uma sutil inovação. Uma luz azul na borda interna da pista, visível e a piscar durante as corridas, realça a posição do(a) atleta em relação ao recorde mundial. Se a luz estiver à sua retaguarda, o recorde está prestes a ser quebrado, desde que, no mínimo, o ritmo de corrida seja mantido. Se a luz estiver à sua frente, só lhe resta acelerar para ultrapassá-la.

Essa luz é um “nudge”, um empurrãozinho. Este mês, em duas semanas consecutivas, uma mesma atleta queniana superou dois recordes mundiais – de 1.500 e 3.000 m. E passou boa parte da prova a correr sem ninguém ao seu encalço, a não ser a luz azul.

Semana passada o Canal Energia desafiou-me a listar fatos importantes do setor elétrico brasileiro (SEB). Deveria apresentá-los no 20º Encontro Anual do Setor Elétrico. Pensei na criação da Eletrobras, na construção de Itaipu e no racionamento de 2001. Mas a Lei 5.899/1973, conhecida como Lei de Itaipu, foi para mim o evento mais marcante.

A determinação para o uso otimizado dos recursos energéticos, a coordenação central da operação e as diretrizes para a interligação dos sistemas elétricos proporcionaram o ciclo mais vibrante do SEB. Entre 1973 e 1993 a potência instalada de geração foi mais que duplicada e a capacidade de transformação foi triplicada.

Nesse período, os custos marginais eram decrescentes. Cada nova usina, sempre grandes hidrelétricas, tinha custo unitário menor que a anterior. Novos consumos eram agregados à rede, com interessantes economias de escala. Foi uma lei que, articulada por profundos conhecedores do sistema elétrico, alguns ainda muito jovens, instituiu a cultura da eficiência, que foi esmagada pelo excesso de estatização e de intervenções políticas descabidas.

O segundo feito de destaque no SEB foi outra lei, a 10.438/2002. Era a norma do fim do racionamento, com definições para o rescaldo da crise. Como naquela época já existiam “jabutis”, veio dali um raro exemplar, que instituiu o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas (Proinfa), embrião da virtuosa inserção das renováveis (eólica e solar) na matriz elétrica.

Porém, tal lei está na origem da inversão de valores, isto é, da cultura da ineficiência, motivada por subsídios desnecessários. Dela se alimentam a reserva de mercado, o mercado livre subsidiado e a estonteante lógica do pobre pagar pelo rico. E é uma lei tão manipulada que já sofreu quase 350 alterações, sendo 200 no dispositivo que criou a Conta de Desenvolvimento Energético, a sala escura do vale-tudo elétrico.

São criativos os argumentos arquitetados na defesa de privilégios. Em pouco tempo, o SEB foi da “taxação do Sol”, que enganou quem queria ser enganado, e chegou à lenda da “energia barata e tarifa cara”, que terceiriza culpas, como se os subsídios desaparecessem dos custos diretos. E são lendas perigosas. Fácil de politizar. A mais recente atraiu o regulador, que a assumiu como verdade.

A regra de rateio dos subsídios é devastadora. A subvenção é dada ao gerador, mas não chega lá na ponta, para todos os consumidores, sob a forma de menor tarifa. Ao contrário. Eleva a conta de luz dos não privilegiados. Isso reflete uma falha econômica denominada de ineficiência distributiva.

E tal regra não tem como foco a redução do subsídio no tempo. Maximiza-o, o que caracteriza outra grave falha, a ineficiência alocativa. A ineficiência distributiva e a alocativa são, assim, o padrão. Estão na raiz das tarifas crescentes, ainda que com sobra de energia.

Em 17 de março de 2022, no Globo, escrevi “O peso morto do monopólio da Petrobras”. Peso morto é um termo aplicado quando o monopolista eleva seus ganhos, mesmo com a redução da quantidade vendida. É a sofisticação da cultura da ineficiência.

É oportuna a discussão entre o CEO da Petrobras e o Ministro de Ministro de Minas e Energia. Há ou não sobra de gás natural? Para o CEO, é um lero-lero falar em sobra, dado que petroleira reinjeta o gás para facilitar a extração de óleo. O Ministro não foi na onda. Nem eu.

Lembrei da solenidade de lançamento do pré-sal. A promessa era que o gás chegaria à indústria pela metade do preço da época (US$ 10/MMBTU). O preço hoje é da ordem de US$ 13/MMBTU, com viés de alta.

Sem transparência, ninguém sabe o exato preço do gás do pré-sal. Mas não passa de US$ 2,5/MMBTU o valor que a Petrobras paga, offshore, às demais exploradoras. Como detém o monopólio do transporte, é muito lucrativo reinjetar grande parte do gás para o que mais interessa – o óleo. Com a reinjeção, que faz sumir 70 milhões de m3 ao dia, a oferta é reduzida e o preço elevado, numa clássica estratégia monopolista, aquela do peso morto.

Não se iluda, portanto, com o discurso de que a exploração da Margem Equatorial diminuirá o preço do gás. É natural a dúvida (eu não a tenho) quanto ao elevado risco de impactos ambientais. Mas é certo que o peso muito vivo do monopolista aproveitará a cegueira regulatória para controlar a oferta e impulsionar seus resultados.

O cenário é desafiador. Ao contrário do atletismo, em que a(o) atleta é empurrada(o) a superar limites, no setor energético (eletricidade e gás) a disputa é para ficar atrás e mais distante do limite da eficiência econômica. Alguns ganham muito com isso. Contudo, propagar as ineficiências distributiva e alocativa, com seus efeitos perversos, típicos predadores elétricos, abrirá caminho para a espiral da morte, quando todos perderão com o colapso tarifário e o canibalismo da oferta – sobretudo no SEB.

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