Por que só os brancos?

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“Um limite entre nós” é um filme dirigido por Denzel Washington, também protagonista ao lado de Viola Davis (Rose). Foi no papel de Rose que Viola Davis ganhou o Oscar de atriz coadjuvante. O elenco é formado por negros. Mas há um branco, o motorista do caminhão de lixo. E é essa figura que martela o juízo de Troy Maxson (Denzel Washington). Por que só os brancos dirigem o caminhão de lixo?

Tenho utilizado a indignação, como a de Troy Maxson, para sublinhar o racismo. Dia 25 de outubro, no auditório da reitoria da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), fiz palestra na abertura de um encontro de engenheiros.

Ao deixar o evento, vi entreaberta a sala do Conselho Universitário. O que você quer? Perguntou um rapaz, sem me deixar entrar. Apenas recordar, olhar as fotos dos ex-reitores, respondi. Conhece alguém? Sim. Um deles foi meu orientador. Quem? Perguntou, ao achar que era mentira. Antônio Diomário Queiroz, respondi. Você trabalhou na UFSC? Insistiu.

Houve tempo em que para entrar na universidade fazia-se uma prova oral. As bancas eram de médicos para avaliar filhos e sobrinhos de médicos, advogados para selecionar filhos e parentes de seus pares, e vai por aí. Eram as quotas dos brancos ricos. Forma abjeta de restringir o acesso de pobres e pretos. É também por isso que o sobrenome identifica gerações de médicos e advogados e outras “grifes”.

Em 1982, quando comecei a dar aulas na UFSC como substituto, era o único negro em 48 professores do departamento. Quando me formei, não tive professor preto. Nem pardo. Foi assim também no mestrado e doutorado. Em 1994, já professor-doutor, continuei a ser o único preto. Pouco depois, fui coordenador da pós-graduação e chefe do Departamento de Economia. Nos dois casos, fui o primeiro negro. E único até hoje.

Ao concluir doutorado, fui informado que talvez fosse o primeiro preto a obter tal título na UFSC, em especial no centro tecnológico, das engenharias. Em 1995, quando passei no concurso para titular, todos os concorrentes eram brancos. Nada disso surpreendia, tampouco era motivo de orgulho. Previa uma evolução positiva. Se eu cheguei, outros chegariam.

Descobri recentemente que, na UFSC, de um total de mais de 2.500 professores, só 19 (0,76%) são pretos. Número bem distante da média nacional – de 15%. Desconfiei. Busquei informações oficiais. Um ex-aluno, hoje professor, veio em socorro. Enviou-me um banco de informações que tem tudo sobre o corpo docente. Menos a cor.

Apelei para o conhecido “cara-crachá”. Olhei os cursos – a “elite”: medicina, engenharias e direito. Percorri os corredores. Desisti. Em mais de 60 salas de aula, não vi um professor preto. Realidade inquietante.

Na engenharia mecânica há uma foto emblemática, com professores novos e antigos, desde o início do curso. Cerca de 150 pessoas. Todas brancas. A foto dos engenheiros das primeiras turmas é semelhante. Só brancos.

Na medicina há uma foto dos primeiros professores, nos anos 1960. Todos brancos. Nas fotos recentes, a imagem é a mesma. Dos formandos de 2020 e 2021, nas fotos encontradas, um negro e uma negra, em cerca de 60 alunos.

No curso de Direito, se há professor ou professora da cor preta, não apareceu no dia das várias fotos. Ou foram cortados? Têm origem no Direito cinco reitores da UFSC. Os demais vieram das engenharias e da medicina, exceto a única reitora e o reitor atual. Todos são brancos. A vice-reitora atual, surpreendentemente, é uma professora preta.

E é assim em todas as grandes universidades, mais acentuado no Sul, mesmo com avanços “cosméticos”. Levantamento de Wagner Machado, jornalista e doutorando, destaca que, em novembro de 2021, de 765 docentes da área de Comunicação, de maior diversidade no Rio Grande do Sul, apenas 20 (2,6%) eram pretos.

Na USP, só 4% dos docentes são pretos. Sua Faculdade de Direto, famosa (e pomposa) por formar 50% dos membros da Suprema Corte, até o ano passado só tinha uma professora negra – Eunice Prudente. “Sofri questionamentos racistas e tive de enfrentá-los. Nos últimos anos vi as turmas ficarem mais diversas. No comando da sala de aula, porém, esse perfil ainda é raro”. É o que disse a professora à Agência Estado.

Na UFSC, em 2021, eram pretos cerca de 28% dos alunos. A média brasileira já era maior que 50%. É, assim, irrisória a chance de alunos pretos terem uma só aula com um professor preto. A docência no ensino superior é um arranjo de brancos, pelos brancos e para os brancos, tática orquestrada para diminuir o negro.

Isso explica a forma mal-educada como fui recebido na sala do Conselho Universitário. Não pensaram que eu podia ser um professor. Como no dilema de Troy Maxson: por que só o branco pode ser professor da UFSC?

A universidade sugere um mundo que não pertence aos negros, intrusos num ambiente onde passam quatro ou mais anos. Estão a ocupar espaço que parece não ser deles. E o preto percebe que as pessoas não escondem que ali não é seu lugar.

No mundo do racismo sem fim, o negro entrará nas universidades. Mas as aulas serão ministradas por imensa maioria branca, que dirá como, quando e o que fazer, e a aprender o que eles (os brancos) precisam. Esse é um lugar que não é meu. Que não é de 54% dos brasileiros.

Vanessa Nakate é uma ativista ambiental de Uganda. Destaque na COP26 e COP27. O racismo a deixou (ainda mais) mundialmente conhecida. No Fórum Econômico Mundial de Davos, em 2020, foi cortada de uma foto em que estava com outras cinco jovens ativistas. Só ela era preta. “Você não apagou apenas uma foto. Você apagou um continente”. Foi sua reação contra quem editou a foto para excluí-la. Em novembro de 2021, Vanessa foi capa da Time. Aqui, Vanessa, o negro nem chega a posar para a foto.

Edvaldo Santana é doutor em engenharia de produção e professor titular aposentado da UFSC.

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