O Voo da Fênix
A RESSURGÊNCIA DE DONALD J TRUMP E SUAS CONSEQUÊNCIAS NO BRASIL
A triunfante vitória de Donald J Trump nas recentes eleições presidenciais norte-americanas tomou muita gente de surpresa, para muitos, algo absolutamente desagradável e preocupante, para alguns mais, um acontecimento muito auspicioso, tanto nos Estados Unidos quanto no resto do mundo. Os americanos chamam essa vitória de um “comeback”, agora poderíamos chamá-la de “o renascimento da fênix americana”, mais apropriadamente ainda do que no caso Bolsonaro, que continua em estado de abrasamento e dormência em seu ninho de fênix abatida.
O paralelo entre Trump e Bolsonaro, que já se mostrava evidente pelo papel de cada qual em seus países, agora se excede e precisa ser levado em consideração como epílogo deste livro.
Trump retorna à presidência dos Estados Unidos, depois do intervalo do democrata Joe Biden, com a faca trincada entre os dentes, disposto a fazer aquilo que prometeu em sua campanha. Mal tinha sido declarado presidente-eleito, fez um pronunciamento ao vivo em que apresentou os primeiros dez itens de seu projeto de ação governamental para ser implementado imediatamente.
- Diminuir radicalmente o poder de intervenção do Estado americano sobre os direitos e o bem estar da população americana.
- Desmantelar o sistema do “Deep State” (entidade obscura composta por um suposto inefável consórcio entre funcionários das agências de inteligência e defesa, junto a políticos veteranos e membros da elite econômica, que agem nas sombras da legalidade e do direito), inclusive os artifícios e agentes de diversas instituições executivas, como a CIA, o FBI, o Departament of Health Service, o National Institute of Health, o Center for the Control of Infectious Diseases, o Departamento da Educação, entre tantas outras, por meio de extinção, demissões e transferências de agências e funcionários para fora da cidade-capital de Washington.
- Fortalecer da segurança das fronteiras, especialmente na parte sudoeste do país. Esta promessa tem sido considerada uma das mais agudas e determinantes na vitória de Trump. Inclui a expulsão em massa de imigrantes ilegais, a qualquer custo, incluindo indivíduos e grupos ideológicos que conspiram contra o país internamente. Neste item consta a determinação de atacar e destroçar os carteis de crimes de contrabando de migrantes e drogas, e do controle de gangues de criminosos no próprio território americano.
- Preparar as forças armadas para estabelecer uma nova modalidade de pax americana, pelo impedimento e dissuasão de conflitos e evitação de novas guerras – assumindo a condição de super-potência militar. Implica também impor às nações que dependem da participação orçamentária americana em suas seguranças de fronteiras e interna uma participação maior e mais equitativa dos seus custos em dinheiro e em armamentos.
- Impor às nações com as quais comercia a condição de paridade de valores e preços relativos dos produtos vendidos e comprados, seja por meio da isenção ou diminuição de impostos para que empresas norte-americanas voltem a se instalar e investir no território americano, seja impondo tarifas sobre os produtos importados artificialmente barateados de outros países.
- Proibir por lei e cortar subsídios a agências que promovem mudanças de sexo/gênero ou bloqueio de hormônios de crianças e jovens americanos, reforçando a importância do consentimento da família em todos os casos e situações.
- Coibir, por via do corte de subsídios e verbas, as universidades de valorizar a contratação de professores militantes de ideologias como o marxismo e promover o ensino e difundir ideologias que levem os alunos a reconhecer os valores americanos e suas tradições sagradas.
- Reforçar e promover o valor de diversas emendas constitucionais, principalmente o direito inalienável de liberdade de expressão (free speech) e a de portar armas.
- Promover a renovação da espiritualidade tradicional americana, especialmente do cristianismo, principalmente nas escolas, respeitando as demais religiões.
- Convocar o povo americano a encontrar um caminho de unificação de propósitos político-culturais para renovar seu espírito de valor e grandeza perante o mundo. O mote aí é: Esta será a Era de Ouro da nação americana.
Poucas pessoas, fora do extenso círculo de militantes, eleitores e seguidores, acreditam que o novo governo Trump será capaz de alcançar esses objetivos em sua possível inteireza. O país está intensamente conflagrado de desentendimentos de toda sorte, de certo modo, dividido ou repartido em grupos antagônicos, por uma longa história de rivalidades, problemas e desequilíbrios internos. O próprio indivíduo Donald Trump vem sendo atacado irremissivelmente desde que se propôs se candidatar a presidente, pelos idos de 2013, e durante todo seu primeiro mandato (2016-2020), por políticos, pela mídia convencional, pelas universidades, pelos banqueiros e especuladores (Wall Street), pela classe artista (Hollywood) e por largos espectros da população nativa e mundial.
Trump venceu as eleições com uma coalização de muitos interesses específicos do povo americano, inclusive dos segmentos que lhe são característicos, como grupos raciais e étnicos, afiliações religiosas, trabalhadores rebaixados em seus status econômico e social, etc. O amálgama foi sendo criado durante o processo eleitoral, não só pelos atos e palavras do candidato, mas também por uma eficiente campanha de divulgação e propaganda, aproveitando-se dos eventos positivos do candidato e dos eventos negativos e falhas do adversário. Sua campanha foi realizada através de grande comícios bem aparelhados, com proposições programáticas a serem realizadas, bem como por críticas e ataques a diversos elementos correntes da vida americana, como o poder manipulador do Estado, a chamada cultura woke, que domina a universidade americana e a mídia estabelecida, a invasão de imigrantes ilegais promovida pelo recente governo do presidente democrata Joe Biden e sua vice-presidente Kamala Harris, a auto-comiseração e a surpreendente baixa autoestima americana, a deterioração de muitas cidades grandes pelo crime e pela droga, e sobretudo o inflacionário custo de vida. Trump arrostou críticas acerbas e maldosas de alta intensidade vindas de muitos círculos, sofreu uma clara e persistente perseguição jurisdicional, uma lawfare, feita com intenções de condená-lo e levá-lo à cadeia, por meio de indiciamentos em quase uma centena de processos e, inclusive, fichamento pessoal em instituição prisional. Acima de tudo, Trump sofreu um estranho atentado a bala, televisionado ao vivo durante um comício, em 13 de julho, que quase ceifou-lhe a vida. Seu soerguimento do chão, onde se refugiara das balas que silvavam ao redor de sua cabeça, deu-lhe ares hollywoodianos de valentia heroica. Manteve-se em pé e resoluto.
Passada a eleição, arrastando-se a apuração, o resultado ainda não completo, mas irreversível no seu conteúdo, Trump foi consagrado com 312 votos sobre 226 votos estabelecidos na totalidade dos colégios eleitorais dos estados, e uma votação popular total superior a 75 milhões de votos, ou mais de três milhões de votos sobre a adversária. Tal grandeza de vitória não foi ainda processado pelos adversários; eles estão apontando dedos de culpabilidade entre si. Ainda que as caracterizações mais nefastas a ele atribuídas, como a de almejar ser um ditador à moda de Hitler, venham a ser amenizadas, restará ainda aquele tanto de ódio e repúdio que é fruto do que se costuma chamar de Trump derangement syndrome, i.e., “síndrome de perturbação psíquica contra Trump”, uma nomeada condição psicossocial que tem acometido um tanto de gente comum e milhares de personalidades públicas americanas.
Seja como for, é muito cedo para dizer o que acontecerá após a tomada de posse do novo governo Trump, e durante seus quatro anos de mandato, que será legalmente o último que poderá exercer. A esperança de muitos é de que desta vez Trump, já bastante calejado em sua experiência como homem de poder, chega com mais lucidez e segurança pessoal, e com a colaboração de uma consolidada companhia de homens e mulheres ilustres da vida pública, econômica, jurídica e cultural americana.
O propósito de desmantelar o Deep State e diminuir o Estado americano assoma como um desafio estonteante e perigoso. Trump chega com uma aura de poder imenso, sem dúvidas, tendo seu partido conquistado a maioria dos membros do Senado (54) e da Câmara dos Representantes (220), bem como o resguardo compreensivo da maioria dos nove membros da Corte Suprema americana, e certamente da lealdade institucionalizada de grande parte das forças armadas, das forças de segurança interna e da comunidade da inteligência e vigília. Sua aura de carisma se estende a aspectos morais e espirituais dos quais muita gente duvidava seriamente, mas que, dado a persistência da força de compromisso de sua palavra sincera, adquiriu um valor de reconhecimento inaudito para, não somente alguém que do nada se fez político, como alguém que se imbuiu do sentimento de patriotismo e de comprometimento profundo com a nacionalidade americana e suas grandes e profundas tradições.
O mote americano de In God We Trust, que está caracteristicamente inscrita nas notas da moeda corrente, os dólares, tornou-se para Trump e muitos dos seus companheiros de jornada um comprometimento de ordem maior. Propõe inclusive que os Estados Unidos da América devem aviventar não somente o sentido de grandeza humana e espiritual que lhes parece ser de merecimento próprio, maiormente em função de ser a instauradora da democracia moderna; mas especialmente a revivência do espírito cristão, oriundo dos ancestrais peregrinos, do puritanismo que inspirou e determinou a nação americana por seus percalços ao longo de dois séculos e meio de existência.
A comparação com o Brasil
De imediato, Jair Bolsonaro e seus partidários mais próximos e esperançosos compreenderam a imensidão da vitória de Trump, e as consequências que dela poderão advir, e se colocaram como interlocutores privilegiados para obter o favorecimento do novo vencedor. Trump, naturalmente, que o conheceu quando ambos eram presidentes, tem mantido uma relação cordial, fraternal e compromissada com Bolsonaro. Ele e alguns de seus partidários mais próximos, como Elon Musk e diversos membros do Congresso americano, inclusive o senador Marco Rubio, nomeado futuro secretário de Estado (quiçá o segundo cargo mais importante do governo), emitiram sinais claros de recepção às urgentes necessidades de Bolsonaro, principalmente no tocante à recuperação de seus direitos políticos, imposta arbitrariamente pelo TSE brasileiro, em outubro de 2023, sem ao menos ter passado por algum processo de julgamento e condenação formal. Como que o governo americano seria capaz de intervir no judiciário brasileiro é questão de indefinição. O quiproquó está instaurado; sua resolução não saberemos aqui, é esperar para ver.
O processo político-cultural brasileiro tem muitas semelhanças com o americano[1]. A começar pelas figuras que estabeleceram seus contornos nos últimos dez anos, Trump e Bolsonaro. Trump era um outsider da política americana, Bolsonaro, um marginalizado da política brasileira. Independente de suas características pessoais, ambos são detestados pelos inimigos pelo mesmo motivo: desafiaram o status quo vigente em ambos os países, foram vitoriosos e derrotados, cada um ao seu tempo, estando Bolsonaro, agora, na mesma situação em que estava Trump dias atrás. Trump retoma seu voo de liberdade e ação. As diferenças entre o poder de cada país acentuam as diferenças da condição política de cada um. Trump é produto de uma democracia consolidada, Bolsonaro de uma em perenes surtos de convulsão.
Os movimentos político-culturais que os alevantaram à máxima altura política tem paralelos e também diferenças. Trump almeja a renovação da sociedade americana pela recuperação das condições econômicas dos trabalhadores e da classe média; Bolsonaro, a entrada em cena de um grande segmento da população em busca de reconhecimento de direitos e de espaço político. Trump é restaurador, Bolsonaro revolucionário silencioso. O objeto maior da restauração de Trump é a sociedade americana como um todo[2]; a revolução silenciosa de Bolsonaro é de natureza mesclada, característica do movimento de ascensão do povão brasileiro. Em ambos os casos a luta é contra o status quo de cada país. Aqui cresce o paralelismo: combatem o Estado extravagante e injusto, a academia woke (que os vê como monstrengos políticos), a mídia militante (todos os jornais os atacam), a classe artista (Hollywood e Globo, respectivamente, os desprezam), a elite endinheirada (Wall Street e os “Farialimers” os querem longe) e uma substantiva maioria de políticos, que temem a concorrência.
A intensidade da ascensão e dos percalços de ambos os protagonistas é quase igual. Trump foi fichado, Bolsonaro, perdeu seus direitos políticos. Os resultados de suas aspirações estão agora em descompasso, já que Trump se superou de sua anterior derrota, enquanto Bolsonaro está sem mandato político. Nos próximos meses ficará mais claro o quanto cada um deles poderá realizar de seus objetivos e alcançar uma posição mais tranquila e duradoura no cenário político de seus países.
Este autor não ousa prognosticar nem sucesso nem derrota. Ousa apenas declarar que os dois países se alçaram a níveis superiores de autoconsciência político-cultural e de melhoramento cívico graças às ações de cada um desses mitos políticos, apoiados pelos movimentos populares respectivos. Para o Brasil, a ascensão do segmento do povão brasileiro em tácita aliança com um segmento da classe média, pode ser caracterizada como uma revolução silenciosa, difusa, às vezes imperceptível, mesclada, de natureza branda, não violenta, porém consistente. Desafia e confronta a elite estamentária bem estabelecida e quer destruir os muros ideológicos, sociais, econômicos e políticos que impedem essa população de participar em toda plenitude na vida política e cultural do país, comandando-o se for o desejo dos cidadãos, tal como participa a minoritária camada desde a formação da nação. A luta tem propósito, a história está aberta, o resultado só Deus sabe.
[1] Rever as exposições dos capítulos 4 e 5, acima.
[2] Para uma análise profunda sobre o caráter e a trajetória política de Donald Trump, ver o livro do historiador e intelectual Victor David Hansen, The Case for Trump, New York: Basic Books, 2019. Nova edição 2024.