O viés elétrico

acessibilidade:

Entre 13 e 15 de outubro foi realizado 18º Encontro de Agentes Setor Elétrico – ENASE, sempre oportuno e com ótimas contribuições. Ouviu-se de tudo. Do ufanismo de muitos ao realismo de poucos. A palavra-chave, e maçante, era modernização. Quase nada da crise atual, tampouco de seus custos. Predominaram as ensaiadas frases de efeito, com exceções, como o diretor-geral do ONS e o presidente da Câmara de Comercialização.

Talvez cansado diante de sombrias perspectivas, o representante das comercializadoras ressaltou que aquela era sua 12ª participação no ENASE, e nos seis últimos falou de modernização. Sufocado diante do conformismo, o representante dos consumidores implorou: “parem com isso”. E apelou por mudanças imediatas. O jogo atual prioriza a socialização de custos e beneficia somente quem tem força para criar subvenções.

A boa notícia é que era unânime a necessidade de modernização. Mas era terrível a compreensão, também unânime, do significado dela. As referências são dois projetos que tramitam no Senado há 5 anos, quando eram outros os problemas. Ninguém ousou afirmar que é essencial um novo diagnóstico. Os erros, acredite, apenas serão redesenhados.

Foram insensíveis, no mínimo, o panorama visto a partir das entidades que defendem os segmentos da cadeia de produção de eletricidade. Para 100% delas, modernizar é “ter espaço” para todas as fontes, com ou sem subsídios, apesar de ninguém ter falado em reduzi-los.

Veja que interessante. O governo definiu diretrizes para um leilão simplificado, em que adquiriria reserva de capacidade. Na escassez de água, é prudente contratar energia firme, de termelétricas, por exemplo. Mas foram 62 GW de potenciais interessados, a maioria de fontes intermitentes – não firmes. No leilão, dia 25 de outubro, contratou apenas 2% desse total.

Por quê? Como a modalidade do contrato é energia de reserva, com pagamentos na forma de encargos tarifários, é cômodo o “espaço para todos”, mesmo que, mais adiante, contrate-se a reserva da reserva. Um drible da vaca. O governo, no papel de comprador, não necessita de demanda das distribuidoras para realizar o leilão, desde que seja de reserva. Foi uma estratégia que desdenhou os reais ofertantes, daí o fiasco.

Se a ideia é mesmo modernizar, a responsabilidade de constituição da reserva deveria ser de todos aqueles que possuem demanda a atender, como em um banco comercial. Se uma usina, de qualquer fonte, quer vender energia, no ambiente livre ou no regulado, deve comprovar que possui reserva para intermitência e confiabilidade. É assim que são criados os buffers para eventos como a escassez atual.

A Aneel divulgou recentemente que bateu sua meta em termos de acréscimo da capacidade de geração. A informação é alvissareira. Do total de 4.8 GW, quase 60% são de fontes renováveis. Já são mais de 179 GW potência instalada.

O curioso é que, na mesma semana em que o regulador batia sua meta, os jornais estampavam notícia que ajuda a compreender a má alocação de riscos e custos. A conta de luz era um dos determinantes do recorde de inflação e a população mais pobre estaria a migrar para a lenha, dado o aumento do preço do gás.

A oferta seguirá em franca expansão. Na página da Aneel na internet verifica-se que, em 16 de outubro, existiam 51 GW de projetos aptos à construção, sendo 38,5 GW em eólica e solar.

Mas os cenários são estranhos, e as explicações, idem. O governo, para conter a explosão de subsídios, definiu um prazo fatal. Do outro lado, para manter os direitos definidos na Medida Provisória 998, as usinas precisam entrar em operação a partir de 2023. São mais de 60 GW de projetos de renováveis que participam desse rali, ou 100 GW, como afirmou o governo no ENASE. Se metade disso chegar à reta final, é como se fosse adicionado à oferta o equivalente ao consumo do Nordeste mais o Norte.

Isto exigirá a construção de um aparato de transporte sofisticado, cujos estudos só estarão prontos em 2022. Como o leilão de transmissão precisa de oito meses para ser organizado e as obras de 3 a 4 anos para conclusão, só lá para 2027 o sistema estará pronto. Quatro anos depois das usinas.

Na prática, 70% dos empreendedores de geração que possuem projetos na Aneel ainda não têm acesso à rede e, historicamente, quase 40% dos que têm não farão as obras. O critério para liberar o acesso ainda é o simplório “quem pedir primeiro leva”, que passa longe da tal modernização.

O acesso deveria ser prioritário para quem adquirir, antecipadamente, o direito físico (ou financeiro) ao uso da rede. Com esses recursos, forma-se um fundo para ampliar a transmissão, que seguiria junto, e não depois das usinas. Já é assim em diferentes sistemas elétricos, como nos EUA e na Inglaterra.

Eis que, no limiar dos 12 meses eleitorais, o governo, por temer os efeitos da elevação da conta de luz, que foi sua escolha antirracionamento, saca novamente o manjadíssimo empréstimo para as distribuidoras. É o segundo em 18 meses. Em lugar do aumento da bandeira tarifária, o déficit será coberto por uma dívida para os consumidores. Com isto, o governo prolonga por três anos os efeitos das bandeiras que, supõe-se, pretendia evitar. Pior, impossível.

Em “Noise”, Daniel Kahneman e outros utilizam a metáfora do tiro ao alvo como síntese de decisões viesadas. Enquanto um grupo acerta sempre na mosca e outro é disperso, um terceiro erra 100% dos tiros, mais todos em um mesmo ponto – a sudoeste da mosca, por exemplo.

Pois é! No setor elétrico brasileiro, as decisões estão sempre fora do alvo, mas os petardos seguem para o mesmo lugar, como um viés previsível. E o sopro que o direciona chama-se intervencionismo, muitas vezes motivado por subsídios que todos querem, mas só alguns pagam – os que não têm uma bancada.

Edvaldo Santana é doutor em engenharia de produção e ex-diretor da Aneel. Artigo publicado também no Valor.

Reportar Erro