Nelson Valente

Livros didáticos e caos linguístico

acessibilidade:

O governo brasileiro é um dos maiores compradores de livros didáticos do mundo; em 2007 foram cerca de 120 milhões de exemplares. O governo precisa arcar com mais gastos para atualização de livros?

Ainda tem todo esse gasto. É melhor pegar esse dinheiro e investir em escola, em merenda. Deixa os livros didáticos como estão. E não é só livro didático, isso vai mexer em toda a literatura. Tudo fica desatualizado e isso tem um custo caríssimo para o país: bilhões + bilhões de reais. Já se passaram dezenove anos e ninguém aprendeu as regras.

O Ministério da Educação (MEC) estimava investir de R$ 70 milhões a R$ 90 milhões na compra de dicionários adaptados às novas regras da ortografia. A compra seria feita em 2009 a partir de edital lançado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Como lidar com os novos gastos que a proposta da reforma ortográfica custaria?

Desde 2009, foram gastos bilhões com isso. Esse sistema é caro, porque isso foi gasto e nenhum proveito se teve. Se simplificarmos o sistema, haverá uma economia de tempo (250 horas-aula) e dinheiro (R$ 2 bilhões por ano). Além disso, teríamos a diminuição do analfabetismo funcional. Sobre a necessidade de atualização de livros. Um absurdo!

O acordo ortográfico não tem qualquer vantagem para os brasileiros, os angolanos, os moçambicanos, os cabo-verdianos, os guineenses ou os portugueses. E tem desvantagens óbvias. Quem ganha com o acordo e o que se ganha com ele? Ganham os intelectuais que fizeram o acordo, que ficam assim na história. Triste maneira de ficar na história, diga-se de passagem: como autores de listas de palavras.

Não é isso que vai melhorar a qualidade da nossa ortografia. Há todas essas “invencionices” no que diz respeito à fonética. Não é preciso ter toda essa preocupação com o som. Vamos pegar como exemplo o inglês: O “by” tem o mesmo som de “bye” e eles não reclamam que têm de escrever diferente. O que faz as pessoas saberem escrever é a leitura. Isso só vai atrapalhar mais a vida das pessoas. A reforma de 2009 não mexeu em 1% das nossas palavras e criou mais problemas do que soluções. Ela acabou com os acentos, com o hífen e com o trema. Não é isso que fez o nosso português ficar melhor.

Poderá acontecer que um alemão ao aprender português pela variante portuguesa tenha dificuldade em compreender um texto brasileiro? Ou vice-versa? Claro que não. Poderá uma besta qualquer das Nações Unidas ficar confundida porque tanto se pode escrever em português “facto” como “fato”? Talvez, dado o tipo de gente que anda nesse tipo de instituições. Só que, coitados, continuarão muito confundidos porque continuará a haver muitas palavras com dupla ortografia. Uma língua é muito mais do que a ortografia. É o léxico, a gramática, a fonética, entre outras coisas. Ora, este acordo evidentemente não unifica tal coisa. No Brasil, um fato é o que para nós é um facto, e um fato é no Brasil um terno, que para nós é uma pessoa ternurenta. No Brasil o pequeno-almoço chama-se “café da manhã” e os comboios chamam-se “trens”. As diferenças são mais que muitas, e muitas mais haverá em Angola, Moçambique, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, etc. O acordo ortográfico não unifica a língua.

O acordo ortográfico não unifica sequer a ortografia. Continuar-se-á a escrever “fato” no Brasil e “facto” em Portugal; “género”, “António” e “génio” em Portugal e “gênero”, “Antônio” e “gênio” no Brasil.

A reforma não tem eficácia alguma, nesse sentido, visto que ela é ortográfica e não vai nos obrigar a falar português de maneira igual. Uma língua é um organismo vivo e move-se independentemente das normas ortográfica e das vontades políticas. O que pode nos aproximar são os meios de comunicação, que fazem com que nos ouçamos muito mais cotidianamente. Na verdade, a língua é algo que a ortografia não impede de evoluir.

Também não acredito que o acordo traga muitas vantagens para a internacionalização da língua. Não é por razões de ortografia que ela se expande e, sim, por razões de conteúdo: pela literatura, pela arte, pela cultura e pelo conhecimento que essa língua veicula. O idioma mais internacionalizado do mundo, o inglês, tem mais de dez variantes. Existe o da Austrália, do Canadá, da África do Sul, por aí afora e isso nunca dificultou sua ampliação. Não acredito que vá haver vantagens extraordinárias na aceitação do português nos fóruns internacionais.

Vê-se, pois, que há uma abissal diferença entre linguagem popular e regionalismos. A prosódia, que é a forma de dizer a palavra, tem total liberdade, não se devendo exigir que um gaúcho fale com a mesma pronúncia do que um paranaense. O que, em virtude do Acordo de Unificação da Língua Portuguesa, que é eminentemente ortográfico, passemos a impor a Portugal ou Angola, por exemplo, o nosso gostoso e incomparável sotaque. Cada povo que cuide das suas peculiaridades prosódicas.

Enquanto isso, o analfabetismo cresce, em vez de decrescer, seja pelos milhões acumulados de seres humanos que nunca pisaram numa sala de aula, seja por outros milhões que deixam a escola sem nada aprender, como é o caso dos analfabetos funcionais, essa nova praga que ameaça comprometer o futuro da nação. Isso significa que a maioria desses jovens chega ao final do curso sem saber ler e escrever ou fazer as quatro operações aritméticas, o que é tão mais grave quanto se sabe que ler, escrever e calcular são os pré-requisitos básicos da vida cultural e da sobrevivência competitiva dos seres humanos.

Numa cultura altamente letrada, a imagem da palavra é fixada por sua ortografia, portanto o sistema ortográfico é parte do patrimônio cultural da sociedade. Há que se ter muita cautela e responsabilidade ao propor qualquer alteração nesse sistema. Por isso todas as reformas ortográficas que se sucederam ao longo do século XX foram conservadoras e pontuais, como o acordo de 1990. É mutilação de nosso sistema ortográfico.

Qualquer neófito em linguística sabe que sempre haverá desacordos entre a fala e a escrita, que são duas realidades distintas da língua. Assim, soluções mágicas como essa trazem muito mais prejuízos do que benefícios.

O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa foi firmado pelos países de língua oficial portuguesa em 1990 (Timor-Leste aderiu em 2004, após sua independência). Ao unificar as bases da ortografia desses países, o acordo visava fortalecer o português nos organismos internacionais, facilitar o intercâmbio cultural e a circulação de obras científicas e literárias, eliminando os custos de sua reedição.

Todos concordavam que seria melhor para a comunidade lusófona que houvesse o Acordo Ortográfico, pois o fato ensejaria uma busca oficialização da língua portuguesa em organismos internacionais, a partir da ONU. Ledo engano. O que tem ocorrido até aqui é um grande “desacordo”. Cada país da comunidade lusófona deve falar preservando as suas características. Assim se garantem a variedade e a riqueza do idioma.

Em 2012, no entanto, a presidente Dilma prorrogou a transição para 1º de janeiro de 2016. Faltou a ela a devida avaliação. A sociedade já havia acatado e assimilado o acordo. Os livros didáticos, as editoras, a imprensa, todos já haviam adotado o novo sistema ortográfico. A decisão do governo não foi ao encontro do que a sociedade já havia ratificado e criou um vácuo em torno da ortografia vigente no país. Enfim, convivemos com duas ortografias no país. Lamentável!

A língua é uma força biológica: não se pode modificá-la com uma decisão política. Pode-se, quando muito, influenciar o uso.

O povo brasileiro considera a educação como principal fator de mudança na sociedade. O Japão, a Coreia, a China, a Alemanha questiona, pois, o seu modelo educacional. Enquanto isso, no Brasil, os Ministros da Educação saem felizes do Governo porque deram merenda às crianças carentes. Melhorar a educação brasileira, de um modo geral, pode ser uma utopia? Depende, naturalmente, da existência de uma política séria, no setor, conduzida por pessoas competentes e desinteressadas de proveito pessoal ou político.

Livros didáticos articulados – Além de considerar precipitada a unificação das disciplinas do ensino médio, considero também prematuras as metas do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) – as quais preveem a distribuição de livros e material didáticos articulados com outras áreas do conhecimento.

É impossível atingir a meta. O Brasil não tem escritores para escrever esses livros e não estão explícitos os possíveis escritores e atores que poderão contemplar a interdisciplinaridade de textos para o ensino básico.

Hoje, o único punido no sistema de ensino brasileiro é o aluno reprovado. Isso é covardia. Nada acontece com professor, diretor, secretário, ministro de Educação, prefeito ou governador quando eles falham. É preciso ter um programa de ensino: afinal, se você não sabe o que ensinar, como vai saber o que avaliar?

Nelson Valente é professor universitário, jornalista e escritor.

Reportar Erro