Indignai-vos
A convivência continuada com o horror vai tornando-o menos pavoroso, às vezes até aceitável. Com o tempo, porém, o acúmulo de sensações que ele provoca alcança um limite. Parafraseando Chico Buarque de Holanda, um fato menor pode ser a gota d’água que transborda um caldeirão de ressentimentos.
Um ditado comum na época de Luís XV, monarca francês, dizia: “Après nous, le déluge“. Traduzindo-se por “Depois de nós, o dilúvio”, anunciando tempos difíceis após a partida de alguém. Ele faz analogia ao dilúvio bíblico mandado por Deus para castigar os homens, dentre os quais havia apenas um justo e digno de salvação, Noé.
Temos assistido aqui no Brasil um festival contínuo de horrores na política que ocorre enquanto uma situação terrível de injustiça social se mantém. O estouro do orçamento para este ano, no montante de 226 bilhões de reais, equivale à construção e urbanização com plenas condições de saneamento de cerca de 1 milhão e meio de residências. Assim, um direcionamento inteligente de recursos públicos poderia em menos de 10 anos eliminar a situação de habitações sub-humanas no Brasil. Na esteira deste processo, naturalmente seriam resolvidos muitos problemas de saúde, saneamento, educação e segurança pública. Isto deve ser feito sob a forma de pagamento de uma dívida social gerada pelo modelo econômico que criou esse desumano câncer em nossa sociedade.
Entre a independência dos Estados Unidos da América e a Guerra Civil que ele enfrentou 8 décadas depois, as tensões sociais foram controladas pelo direcionamento do crescimento populacional e da imigração para o Oeste, onde se distribuíam terras às custas dos habitantes originais. Quando esse processo se esgotou, a Guerra Civil se tornou inevitável naquela sociedade que havia traído os ideais de igualdade e liberdade registrados em sua declaração de independência. Em outras palavras, a indignação transbordou.
Em 2010, um grande intelectual francês Stephen Hessel, judeu, ex-prisioneiro de campos de concentração, amigo de André Malraux e co-autor da declaração universal dos direitos humanos da Organização das Nações Unidas, inconformado com o estado das coisas na Europa – palco de duas grandes guerras mundiais e cenário onde persiste a ausência da paz e solidariedade entre as pessoas, além de desigualdades sociais – escreveu um pequeno livro. Este livro, Indignez-vous, lançado quando o autor já possuía 93 anos, é, ao mesmo tempo, um libelo contra injustiças e um alerta para motivar ações que previnam enormes conflitos sociais.
A aristocracia francesa do fim do século XVIII não assistiu a um novo dilúvio, mas foram muitos enviados para a guilhotina pela Revolução Francesa. Existem inúmeros exemplos ao longo da História em que explosões sociais ocorrem com violência inaudita após décadas de aparente convivência com coisas intoleráveis.
É aceitável assistir ao corrupto jogo político que se desenvolve entre o Congresso, o Executivo e o Judiciário, enquanto os problemas sociais do Brasil mofam nas prateleiras governamentais? É admissível assistir ao espetáculo de acusações mútuas entre pessoas igualmente desprovidas de um comportamento ético mínimo que as qualifique para funções públicas? É suportável saber que 70% dos candidatos com chance de vitória às prefeituras das grandes cidades pertencem a clãs políticos tradicionais responsáveis pela deprimente situação urbana e da segurança que elas vivem?
Está na hora da nossa indignação se transformar em ação. Ação política, democrática, mas implacável na correção deste estado de coisas para o que o voto consciente seja o instrumento para fazer prevalecer a razão e a justiça antes que, no desespero, as soluções radicais e as promessas ilusórias passem a predominar.