Dúvidas sobre exportar hidrogênio verde

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O Congresso Nacional está discutindo um Projeto de Lei que institui o marco legal do hidrogênio de baixa emissão de carbono; dispõe sobre a Política Nacional do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono; institui incentivos para a indústria do hidrogênio de baixa emissão de carbono; institui o Regime Especial de Incentivos para a Produção de Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono (Rehidro); cria o Programa de Desenvolvimento do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono (PHBC). Neste PL vários subsídios e benefícios estão incluídos.

A primeira dúvida que se coloca sobre este assunto refere-se às bases técnicas dessa decisão. Sendo um assunto onde o Brasil não dispõe de experiências anteriores, sendo um assunto de nova tecnologia, sendo este um assunto que necessita conhecimento específico, sendo o Brasil possuidor de uma plêiade de técnicos capacitados em várias disciplinas, a dúvida que se coloca é: em que suporte técnico ou estudo com análise de alternativas, se baseiam os autores da minuta inicial desse projeto de lei? Foi este assunto motivo de discussão adequada e aprofundada com a comunidade técnica brasileira?

A segunda dúvida se refere ao Conteúdo Nacional. Os especialistas em produção de hidrogênio indicam que no custo de produção atualizado do hidrogênio verde (H2v) a eletricidade representa 50 a 55% e o CAPEX (principalmente eletrolisadores) 30 a 35%. Na Europa e nos EUA, para ser considerado verde o H2v tem que ser produzido por eletrólise da água que seja abastecida por fontes renováveis. As renováveis de custo baixo no Brasil são fotovoltaicas e eólicas.

O Brasil não fabrica eletrolisadores e as plantas fotovoltaicas e eólicas também utilizam equipamentos com altíssima participação de importações (inclusive com isenção de impostos). Portanto a participação de componentes que agregam valor na produção do H2v exportado seria muito baixa.

Acresce-se que tanto essas fontes de geração elétrica como a produção de H2v depois de concluídas exigem reduzido corpo de operadores.

A terceira dúvida corresponde a continuidade do atendimento elétrico a esses produtores de H2v. Caso seu suprimento seja restrito a fontes fotovoltaicas e eólicas, deveria ser acordado regime de funcionamento especifico correspondente a capacidade dessas fontes por serem intermitentes. Isto seria possível? E econômico? Caso contrário, o SIN teria que fazer parte do suprimento e, por possuir térmicas, o fornecimento não seria 100% de fontes renováveis, maculando a certificação do H2v.

A quarta dúvida diz respeito ao uso de água. Para produzir H2v consome-se 10 quilos de água para cada quilo de H2v. Portanto, para cada tonelada de H2v exportada, estaríamos exportando 10 toneladas de água, justamente de áreas onde hoje os estados (Piauí e Ceará) que se candidatam a ser exportador de H2v possuem fontes de água escassas. Faz sentido exportar água reduzindo o disponível para populações carentes desse bem?

A quinta dúvida refere-se a Armazenamento. Evidentemente que para exportar será necessário haver armazenamento do H2v a ser produzido, seja na área de produção, seja no porto exportador. Ocorre que armazenamento de H2v é ainda um problema a ser resolvido de forma econômica e tecnicamente adequada.

O hidrogênio é difícil de armazenar devido à baixa densidade de energia volumétrica. É o mais leve e mais simples de todos os elementos, e assim se perde facilmente na atmosfera. Pode ser armazenado na forma gasosa em cavernas para armazenamento de grande quantidade de hidrogênio gasoso, mas geralmente é bastante caro e depende da existência desses locais apropriados. Pode também ser armazenado na forma gasosa sob altas pressões (350-700 bar) ou na forma líquida sob temperaturas criogênicas de menos 252,8°C. Isto resulta em consumo de eletricidade e aumento de custo.

A sexta dúvida seria quanto ao Transporte para os países importadores. O transporte de hidrogênio é um enorme desafio e aumenta significativamente o custo da cadeia de abastecimento. O transporte de hidrogênio líquido por navio para o exterior para longas distâncias é uma das opções que estão sendo consideradas pela indústria. Por enquanto, no entanto, o negócio ainda está em seus estágios iniciais de desenvolvimento. Não existe nenhum caso de transporte desse tipo já tendo sido realizado.

Um dos principais desafios do transporte de hidrogênio líquido para longas distâncias é a necessidade de manter o hidrogênio a 252,8 Celsius negativos. Esse transporte é um pouco semelhante ao do gás natural na forma de GNL, mas a temperatura necessária para o transporte do H2 é quase 100 graus mais frio e o material dos tanques deve ser resistente ao ataque do hidrogênio. Para tal, devem ser produzidos tanques e embarcações de transporte específicos.

Alternativamente, o H2v pode ser enviado na forma de derivados como amônia ou metanol. Porém, neste caso, será necessário ter fontes de eletricidade renováveis nos países importadores para converter esses derivados em H2v, exceto se o consumo local for de derivados. Isso exigiria existência de fontes renováveis no país importador, além de aumentar o custo

A sétima dúvida e talvez mais difícil, diz respeito ao Preço Competitivo. A nível atual, o preço de hidrogênio verde pode chegar a várias vezes o preço do gerado por gás natural, com ou sem emissões de CO2. As comparações de custo médio indicam: US$ 1,0-2,5/kg H2 de gás natural (cinza); USD 1,5-3,0/kg H2 de gás natural com Captura de Carbono (azul); e USD 4,0-9,0/kg H2 via eletrólise com eletricidade renovável (verde). A redução desse custo de produção dependerá do progresso e redução de custos de eletrolisadores (CAPEX) e do custo local da eletricidade (OPEX).

Muito se cogita, no Brasil, dar subsídios no preço da eletricidade. Considerando que para produzir um quilo de H2v são consumidos 55 kWh e que o custo da eletricidade representa ao redor de 50 a 55% do custo do H2v, caso queiramos alcançar custo de 1,0 US$/kg  de H2v  a tarifa da eletricidade teria que ser 9 cents$/kWh, considerando a mesma proporção de peso no custo se mantenha.

Outra dificuldade mercadológica reside no poder dos competidores – a indústria do gás natural. Esses competidores podem desenvolver melhorias em sua tecnologia para o hidrogênio azul e conseguir redução de preços.

Outra possibilidade de competição representa o hidrogênio turquesa. Embora grande parte dos holofotes esteja no hidrogênio verde produzido a partir das energias renováveis e hidrogênio azul proveniente do gás natural, respectivamente, cerca de uma dúzia de empresas de energia e tecnologia estão trabalhando silenciosamente para produzir hidrogênio turquesa cujo subproduto pode ser crítico para o mercado de veículos elétricos.

Hidrogênio turquesa, da mesma forma que o hidrogênio azul, é produzido a partir do gás natural, mas usa uma via de produção chamada pirólise de metano. A pirólise divide a molécula de gás natural – metano (CH4) em hidrogênio e carbono sólido. Diferentemente do azul, a tecnologia usada não resulta em emissão de CO2.

As companhias que estão desenvolvendo protótipos de produção de hidrogênio turquesa indicam poderem produzir a preços competitivos com o azul e obter valores adicionais com a venda de grafite sintético. O pó de carbono resultante da pirólise pode ser transformado em grafite sintético, um mineral crítico cada vez mais lucrativo encontrado em todas as baterias (anodo) de veículos elétricos do mundo.

Embora, ainda existam pontos a serem esclarecidos, a possibilidade de um novo tipo de hidrogênio com possibilidades de resultados econômicos satisfatórios, pode impactar a produção de H2v.

Colocadas essas dúvidas, esclareço que nosso objetivo não é contestar a proposta do Brasil  considerar a produção de H2v, mas sim, que o façamos com suporte em análise criteriosa e com bases adequadas para que tenhamos investimentos realistas e duradouros. E mais, que sejam investimentos que não exijam subsídios do poder público nem carga adicional de custos tarifários ou fiscais para os consumidores e contribuintes brasileiros.

Armando Ribeiro de Araujo é Engenheiro Eletricista com Mestrado e Doutorado, foi Diretor de Procurement Policy do Banco Mundial, Secretario Nacional de Energia do Ministério de Infraestrutura, Presidente da Eletronorte, Membro do Conselho de Administração de Itaipu, Furnas, Chesf e Eletronorte.

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