Confiabilidade do setor elétrico

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A sociedade atual depende extremamente da eletricidade. Hoje as pessoas, mesmo sem perceber, dependem de eletricidade para muitas atividades rotineiras. Para sua mobilidade, ou usam o metrô (ou trem) ou rodovia, em ambos, o deslocamento, ou se torna impossível, ou caótico quando ficam sem eletricidade. Para fazer pagamentos, ou necessitamos usar um caixa eletrônico, ou um celular; novamente, sem eletricidade, isto, ou é impossível ou depende da carga da bateria. Para nos comunicarmos necessitamos de wifi, o que, sem eletricidade, é impossível. Estes são apenas alguns exemplos.

Quando existe um blackout nos conscientizamos da importância da eletricidade. E se o retorno é demorado, ainda mais. Quem tem dúvida, pergunte aos moradores da Ilha do Governador no Rio de Janeiro ou aos da cidade de São Paulo sobre a experiência nos últimos anos.

Isto significa que necessitamos um serviço CONFIÁVEL, ou seja, com poucas falhas e de retorno rápido.

Discutamos um pouco sobre os Aspectos Conceituais da confiabilidade.

A confiabilidade é necessária em ambas partes de um sistema elétrico: (1) o sistema de energia nacional que consiste em geradores e a rede de transmissão de alta tensão e (2) o sistema de distribuição, que inclui a rede de linhas de energia locais de média e baixa tensão que fornecem eletricidade para residências e empresas.

A confiabilidade abrange muitos fatores e é frequentemente medida e avaliada separadamente na rede de distribuição e na rede de transmissão e geração. Os componentes da confiabilidade do sistema de energia incluem três principais elementos.

Adequação de Recursos é a capacidade do sistema elétrico de suprir a demanda elétrica e os requisitos de energia aos clientes finais, durante todos os momentos, levando em consideração interrupções programadas e não programadas dos elementos do sistema. Isso significa que o sistema deve ter a capacidade de fornecer continuamente eletricidade suficiente — nos locais certos, mesmo durante os momentos de intempéries e naqueles em que a carga tem fortes aumentos ou reduções. A adequação de recursos é normalmente medida pela probabilidade de uma interrupção ao longo de um período de tempo.

Um sistema adequado deve ter recursos disponíveis suficientes (por exemplo, capacidade sobressalente e/ou carga flexível) para substituir a capacidade que falha, ou que está fora de serviço para manutenção ou, ainda, que não está disponível devido a restrições de combustível (incluindo falta de água, luz solar ou vento). Os sistemas de transmissão e distribuição também são importantes para garantir a adequação de recursos porque conectam a geração aos locais de carga e permitem a conexão de uma maior diversidade de recursos variáveis (eólica em locais diferentes).

Nos sistemas de geração convencional (hidrelétrico e térmico) a Adequação de Recursos é feita no mesmo local da usina, seja por reservatório de água ou suprimento (e reserva) de combustível, além da reserva em capacidade instalada. Com incremento participação de fontes variáveis, a adequação de recursos deve cada vez mais levar em conta a variabilidade desse fornecimento, bem como as mudanças nos padrões de demanda (geração distribuída)  e o impacto das possíveis interrupções por falta de sol ou vento. Isto requer necessidade de armazenamento de energia e novos critérios de Adequação de Recursos.

Confiabilidade Operacional é a capacidade do Sistema de Energia de suportar perturbações repentinas, como curtos-circuitos elétricos ou a perda não prevista de elementos do sistema, evitando apagões em cascata descontrolados ou danos ao equipamento. Isso significa que o sistema pode equilibrar a oferta e a demanda em tempo real, incluindo a continuidade do fornecimento de eletricidade nos segundos e minutos durante e imediatamente após uma grande falha de usina ou linha de transmissão. A confiabilidade operacional também inclui respostas a variações normais e aleatórias na geração ou na carga, o que pode ser chamado de “flexibilidade” das operações do sistema de energia.

Um aspecto importante da confiabilidade operacional são as reservas operacionais, ou capacidade ociosa disponível que responde ativamente durante um evento para ajudar a equilibrar a energia e manter a frequência estável. Por exemplo, a inércia na rede permite tempo para os sistemas mecânicos que controlam a maioria das usinas convencionais de geração de energia detectarem e responderem a uma falha.

Serviços como inércia têm sido tradicionalmente fornecidos por usinas térmicas, nucleares e hidrelétricas convencionais que usam geradores síncronos giratórios. No entanto, energia eólica, solar fotovoltaica e baterias são recursos baseados em inversores, o que significa que dependem de eletrônica de potência, ou inversores, para gerar eletricidade compatível com a rede. À medida que mais geradores convencionais são substituídos por recursos baseados em inversores, é importante entender que novos critérios de Confiabilidade Operacional são requeridos.

Resiliência é a capacidade de suportar e reduzir a magnitude e/ou duração de eventos disruptivos, o que inclui a capacidade de antecipar, absorver, adaptar-se e/ou recuperar-se rapidamente de tal evento.

Para que o sistema tenha boa resiliência este aspecto deve ser considerado nas fases de planejamento, operação e manutenção. Assim, no planejamento, é fundamental considerar que o sistema um dia pode ter um blecaute e portanto sua malha deve ser planejada para evitar que eventos locais se propaguem. Para tal, a criação de ilhas interligadas e localização geográfica das reservas nas mesmas, são fundamentais para conter a propagação. E, a implantação de “black start’ permite mais rápida recuperação. Na manutenção, treinamento adequado, boa manutenção preventiva, inclusive com controle de vegetação perto da rede, diminuem a possibilidade de falhas. E, estoque de materiais de reposição, torres de emergência e disponibilidade de equipamentos permitem mais rapidez na recuperação.

As fontes variáveis não possuem capacidade de black start e portanto influem no tempo de restabelecimento do suprimento após eventos que provoquem blecautes.

Em resumo, a confiabilidade abrange desde o planejamento até a operação e abrange os requisitos principais: Energia — eletricidade real gerada e consumida ao longo do tempo; e Capacidade — potencial máximo de energia que pode ser gerada de forma confiável a qualquer momento. E, em relação à capacidade, duas facetas significativas exigem atenção:

  1. Capacidade de Despacho: para garantir que haja capacidade suficiente disponível para atender à demanda esperada de eletricidade a cada hora.
  2. Capacidade de Serviço Ancilar: capacidade suplementar servindo como uma rede de segurança, preparada para lidar com emergências dentro da rede, como falhas na fonte de energia ou perdas na linha de transmissão.

Os serviços ancilares abrangem várias funções, cada uma meticulosamente projetada para manter a confiabilidade da rede. Vamos discutir alguns tipos principais:

  1. Serviço de Regulação: Serviço Ancilar para manter a frequência da rede em 60 Hz constantes, corrigindo rapidamente em segundos desvios causados ​​por mudanças de demanda ou dinâmicas de energia variável;
  2. Serviço de Reserva Primária (SRP):  é o Serviço Ancilar que inclui três subtipos: (i) Resposta de Frequência Primária fornecida por recursos de geração que podem variar automaticamente com variação de frequência; (ii) Recursos de Carga Controlável que podem fornecer SRP reduzindo ou aumentando o consumo dessas cargas; e (iii) Recursos de carga não controláveis ​​fornecem SRP desligando cargas por disparo automático quando a frequência atinge um ponto de ajuste.
  3. Serviço de Reserva de Contingência (SRC) oferece capacidade de reserva que pode ser totalmente despachada em um curto período (10 minutos, por exemplo). Essa capacidade serve para restaurar a reserva primária em um curto período após um evento a ter esgotado. O SRC também é utilizado para gerenciar rampas de carga líquida, como quando a geração solar diminui à noite (curva do pato). Esses recursos devem sustentar o despacho total por pelo menos algumas horas consecutivas.
  4. Reserva não Girante: esta reserva serve como a primeira linha de defesa contra cargas inesperadas ou problemas de transmissão localizados em períodos moderados (30 minutos, por exemplo). Esta capacidade pode ser necessária em todo o sistema ou regionalmente devido a problemas de transmissão local.

Esses serviços ancilares podem ser providos principalmente pelas usinas convencionais (hidrelétricas e térmicas) e por armazenamento de energia com inercia. Incorporando geração on-line, sistemas de armazenamento de energia, bem como outros equipamentos (como compensadores síncronos e outros), recursos de carga controláveis, e até cargas interruptíveis, cada recurso contribuindo exclusivamente para garantir a confiabilidade da rede.

Em suma, a confiabilidade cobre a capacidade do sistema de manter o fornecimento de energia para cargas em condições normais e de emergência, bem como recuperar o serviço e retornar rapidamente à operação normal após um blecaute. Requer capacidade de geração adequada, redes de transmissão e distribuição adequadas, reservas (de energia e capacidade) e fornecimento de serviços ancilares

Aspectos Institucionais: Tendo discutido esses aspectos conceituais da confiabilidade passemos aos aspectos institucionais para que o sistema possa prover e assegurar confiabilidade adequada

O primeiro aspecto institucional refere-se à definição de Critérios de Confiabilidade. É fundamental que uma agência especializada (ou um regulador tecnicamente capacitado) estabeleça os critérios mínimos a serem obedecidos por TODOS os agentes do setor elétrico.

A confiabilidade do sistema é definida inicialmente pelo Planejamento, que avalia as alternativas para a expansão do sistema. Posteriormente, cabe à operação utilizar os recursos da melhor forma possível, seguindo os critérios técnicos e econômicos definidos na concepção do sistema. No Brasil e em vários outros países, os sistemas elétricos são planejados pelo critério de confiabilidade n-1, segundo o qual eles devem ser capazes de suportar a perda de qualquer elemento sem interrupção do fornecimento

O segundo aspecto institucional refere-se a definição dos Indicadores de Confiabilidade a serem medidos e a frequência dessa medição. No Brasil para o sistema de energia nacional, o ONS desenvolveu um sistema de indicadores[1].Para a área de distribuição, a ANEEL estabeleceu os indicadores de continuidade[2].

O terceiro aspecto institucional a ser estabelecido refere-se a definir com clareza a Responsabilidade pelo Cumprimento dos critérios de confiabilidade estabelecidos  para cada parte do sistema elétrico e a responsabilidade pela Medição desses indicadores de confiabilidade. No Brasil, este aspecto estava bastante claro, porém atualmente apenas nas áreas de transmissão e distribuição existe clareza, quanto a geração as responsabilidades tornaram-se difusas, em especial por não ser o parque gerador resultante do planejamento e portanto não condizentes com os critérios de confiabilidade do planejameno.

Finalmente, o último aspecto institucional refere-se a definir a agência responsável pelo Controle da Confiabilidade, ou seja, agência que recomende a atualização dos critérios e índices de medição, bem como receba as medições e atue perante os responsáveis para que a confiabilidade medida apresente nível de qualidade igual ou superior aos critérios mínimos estabelecidos.

Efeitos de Fontes Variáveis na Confiabilidade: Inércia. Geradores síncronos fornecem inércia ao sistema ajudando o sistema de energia a resistir a mudanças na frequência do sistema. Todas as máquinas rotativas síncronas conectadas ao sistema de energia contribuem para essa resistência (inércia) com sua energia cinética, que é a quantidade de energia armazenada nessas massas rotativas. Geradores baseados em inversores não fornecem inércia rotacional e estão substituindo cada vez mais os geradores convencionais. Isso diminui efetivamente a inércia do sistema de energia. A dinâmica de frequência é mais rápida em sistemas de energia com menor inércia rotacional e, portanto, torna o controle da operação do sistema de energia e o controle de frequência mais difíceis.

Não somente a inércia é afetada pelas fontes eólica e fotovoltaica. A localização dessas fontes usualmente estão distantes das cargas e das fontes com inércia. Isto resulta em dependência do sistema de transmissão e em ter no sistema fontes de inércia distantes das fontes variáveis o que diminui a confiabilidade.

Outra consequência dessas novas fontes é a necessidade de reserva para enfrentar a possibilidade de falta de geração por colapso na fonte eólica (falta de vento),  no desligamento de cargas que possuem geração distribuída, e na rampa de geração para compensar a redução da geração fotovoltaica no final do dia.

O declínio da inércia resulta em variações de frequência mais rápidas, aumentando o risco de falhas antes que os sistemas de reserva consigam reagir. Esquemas de desligamento automático de carga podem falhar devido ao rápido declínio da frequência. E, equipamentos de proteção podem responder de forma inadequada em redes com altos níveis de geração não síncrona. Adicionalmente, a redução da geração síncrona diminui a capacidade de fornecimento de potência reativa, prejudicando a regulação da tensão.

Portanto, os aspectos de confiabilidade não são novos e o sistema elétrico convive com estes aspectos por longa data. Porém a complexidade dos sistemas atuais e a introdução de fontes variáveis exigem arevisao dos critérios de confiabilidade e a existência de um Sistema de Confiabilidade Global mais apurado para evitar transtornos à população e prejuízos econômicos ao país.

Infelizmente o setor elétrico brasileiro, embora possua critérios de confiabilidade definidos, a sua aplicação fica prejudicada pois como dissemos acima “a confiabilidade do sistema é definida inicialmente pelo Planejamento, que avalia as alternativas para a expansão do sistema” e atualmente temos um planejamento indicativo e as fontes reais implantadas no sistema, resultantes de leilões, não resultam no sistema indicado nesse planejamento. Com isso, resulta que temos indicadores para algumas partes do sistema, mas não um sistema de confiabilidade global, abrangente incluindo os quatro aspectos tratados neste artigo. Resulta também, que quando ocorrem eventos verificamos que alguns deles poderiam ter sido evitados e as responsabilidades não ficam bem caracterizadas. 

Armando Ribeiro de Araujo é Engenheiro Eletricista com Mestrado e Doutorado, foi Diretor de Procurement Policy do Banco Mundial, Secretário Nacional de Energia do Ministério Infraestrutura, Secretário Executivo do GCOI, Diretor de Operação da CEB, Presidente da Eletronorte, Membro do Conselho de Administração de Itaipu, Furnas, Chesf e Eletronorte
[1] (i) Número de perturbações ocorridas na Rede Básica; (ii) Número de perturbações por tipo de equipamento; (iii) Principais causas de perturbações em Linhas de Transmissão da Rede Básica; e (iv)Incidência de causas sazonais ao longo do ano (Descargas Atmosféricas e Queimadas)
[2] DEC (Duração Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora) e FEC (Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora)

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