Breve obituário de Furnas

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Quando morre uma pessoa conhecida do público, jornais e revistas publicam um breve obituário realçando os aspectos da sua vida. Em geral, o que é destacado são suas contribuições para a vida em sociedade, para a cultura e seus feitos. Não é usual fazer o obituário de pessoas jurídicas. Neste pequeno artigo, faço um sobre a enorme perda que sofremos, todo o país, com a extinção intencional de Furnas Centrais Elétricas.

Uma empresa possui, ao lado de seus ativos físicos como instalações de trabalho, veículos e, no caso, instalações de produção como barragens, geradores, linhas de transmissão e outros, um importante valor constituído pelo domínio de tecnologias, experiências, softwares e o enorme conhecimento resultado da interação entre seus grandes talentos. Ao longo da vida da empresa, produz-se uma simbiose entre o conhecimento de seus colaboradores e o chamado conhecimento da empresa, que, agregado ao valor de suas marcas, processos e reputação, constitui elementos fundamentais do seu valor intangível.

Uma análise dos balanços das grandes empresas mundiais mostrou que, na virada do século XIX para o século XX, o valor intangível delas representava cerca de cinco por cento do seu valor de mercado. Um século depois, com base nos dados da revista Fortune, esse  valor  intangível  das  maiores  empresas  já  representava  20  por  cento  do  total. Estimava-se que, em torno de 2050, esse valor ultrapassaria os 50 por cento do valor total.

Dentre as grandes empresas do setor de energia elétrica, Furnas foi aquela que maior compreensão teve da importância de cuidar da promoção do seu valor intangível. Seu início teve algo de pitoresco: uns pescadores de fim de semana mostraram para um parente engenheiro a foto de um peixe que haviam capturado e, nesta foto, em segundo plano, aparecia uma garganta do Rio Grande. Eram os tempos em que a Cemig, recém- criada por Lucas Lopes no governo mineiro de Juscelino, iniciava seu acelerado processo de expansão. O engenheiro levou a foto à direção da empresa, que iniciou um processo do qual resultou a criação de uma empresa com capitais do governo federal, estadual e acionistas privados como a Light e a AMFORP. Na sua formação e nas décadas seguintes, uma equipe de técnicos excepcionais, liderados por John Cotrim na presidência e Flávio Lira, Benedito Dutra, Luiz Carlos Barreto e tantos outros, viabilizou uma mudança conceitual no desenvolvimento do sistema elétrico nacional. Eles iniciaram o ciclo das grandes barragens, sendo que Furnas recebeu, até então, o maior financiamento do Banco Mundial para construir a sua usina naquela garganta, nome que se dá ao estreitamento do curso de um rio, tão singelamente identificado. Essas grandes necessidades de capital resultaram na total federalização do capital da empresa. Três décadas depois, Furnas levava sua tecnologia para a África e, diretamente pela empresa, para outros países da América Latina e Ásia.

A nata da equipe técnica de Furnas, chefiada por John Cotrim, Rubens Vianna, Flávio Decat e outros, comandou a construção de Itaipu, uma das sete maravilhas do mundo moderno, conforme enquete realizada pela revista Engineering News-Record e Popular Science. Essa equipe de Furnas e alguns outros engenheiros por ela influenciados prestaram assessoria à China na construção da usina de Três Gargantas, a de maior potência instalada do mundo, embora Itaipu continue sendo a de maior produção de energia. Quando presidi a Eletrobras, no início da década de 90, já computávamos a acolhida de cento e onze missões de engenheiros chineses, a maioria das quais direcionada para recepção e intercâmbio técnico com Furnas. No território brasileiro, Furnas expandiu sua presença da região Sudeste para a Centro-Oeste e Amazônia, participando de diversos empreendimentos e contribuindo para o excelente retrospecto brasileiro, que não apresenta nenhum desastre de engenharia nas centenas de barragens construídas para suas usinas geradoras de energia. Alguns casos que ilustram o capital reputacional de Furnas envolvem presidentes da república. Nos dias que antecederam a sua queda, Jango Goulart, acolhendo diversas pressões, proibiu Furnas de fechar as comportas e assim iniciar o enchimento do seu lago. Esta ordem foi solenemente ignorada por Cotrim. Anos depois, o processo de privatização das geradoras do governo federal foi interrompido quando Itamar Franco, governador de Minas Gerais, declarou que ocuparia as instalações de Furnas com a polícia militar de Minas Gerais caso o governo de Fernando Henrique Cardoso persistisse com a intenção de privatizá-la. A ameaça funcionou.

O enorme capital intangível desenvolvido por décadas em Furnas veio se degradando ao longo das duas últimas décadas quando, salvo alguns hiatos, sua direção foi entregue aos apetites fisiológicos da política partidária. Esse declínio se agravou não só em Furnas como em outras empresas do setor, com a troca do fisiologismo político pelo capitalismo financeiro de lucros a curto prazo e destruição do valor a médio e longo prazo das suas empresas em troca de um ganho maior no próximo semestre. A construção de uma reputação e de um capital intangível é um processo longo, embora a sua destruição, como temos visto, possa ser muito rápida.

O anúncio da semana passada da absorção de Furnas, uma empresa de engenharia, de técnicas e de operação, pela sua antiga holding, uma empresa agora financeira, decretou o ponto final da sua longa história de contribuição ao desenvolvimento regional e nacional. Alguns mortos estarão retorcendo-se nas suas tumbas e muitos vivos recordando os versos de John Donne no poema “Por Quem os Sinos Dobram”. Como ele pontuava, a perda de qualquer parte de um todo atinge cada um de nós, seja esta perda de um grão de areia, de uma pessoa e eu acrescento, por extensão, de uma empresa que poderia ainda prestar relevantes serviços ao desenvolvimento nacional e mesmo à valorização da sua holding. Há nisso uma espécie de maldição do nosso espírito ocidental, que aparece mitologicamente em Cronos devorando seus filhos e todos nós destruindo a sustentabilidade do planeta da qual nossos filhos e netos dependem para ter uma vida digna.

José Luiz Alquéres é engenheiro Civil (PUC/RJ). Tem Pós-graduação em Planejamento Regional (OEA, Organização dos Estados Americanos), em Energia Nuclear (Universidade de Chicago). Foi Presidente da CERJ (Cia. De Eletricidade do Rio de Janeiro), Diretor de Planejamento e Engenharia da Eletrobrás, Secretário Nacional de Energia, Diretor do BNDES Participações, Presidente da Eletrobrás, Diretor Executivo Cia. Bozano, Simonsen, Presidente Alstom do Brasil, Presidente Light S.A., Conselheiro do Clube de Engenharia e sócio-presidente de J.L. Alquéres Consultores Associados.

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