Everardo Gueiros

As contas do faz de conta

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É muito triste constatar que numa época de tragédia coletiva, provocada pela pandemia do coronavírus, um profissional supostamente esclarecido como o presidente da OAB-DF, se entregue ao populismo mais rasteiro ao supostamente prestar contas da sua administração através de um artigo no qual fala bem de si mesmo, desfilando feitos através de uma linha do tempo traçada entre dois carnavais. O advogado Délio Lins e Silva Junior deveria fazer um exame de consciência, uma autocrítica sincera, não um samba-exaltação de si mesmo.

Num ano em que os advogados do Distrito Federal acumularam perdas profissionais provocadas não apenas pela pandemia, mas também pela insensibilidade de parte da magistratura, o doutor Délio vem a público sem a menor cerimônia se vangloriar de ter distribuído comida para mil advogados e garantido exames de mama e de próstata a outros 900.

Faltou pouco para o presidente da OAB-DF proclamar solene que era com “a alma lavada e enxaguada” que prestava contas de todo o bem que fez pela classe dos advogados, a quem deu comida, assistência médica e gastou mais de R$ 1 milhão em “ajutórios diversos,” numa “obra que entrará para os anais e menstruais de Sucupira e do país”, como diria Odorico Paraguaçu, personagem criado pelo genial Dias Gomes e imortalizado por Paulo Gracindo.

Odorico encarna os políticos capazes de transformar a desgraça coletiva em ambição desmedida. Como ele, o doutor Délio usa e abusa da condição de ginasta da retórica, ousando falar em qualidade de esperança, como se a esperança das pessoas pudesse ser classificada por tipo, cor, intensidade ou preço. A esperança não é um bem de consumo, nem muito menos uma maquiagem para a auto louvação de quem mistura vaidade com demagogia para sacar frases de efeito, como quando assinala que “com a coragem típica da advocacia, enfrentamos os problemas e hoje posso dizer que nem nos meus melhores sonhos teríamos feito tanto”.

O doutor Délio está em campanha aberta para continuar no cargo de presidente da OAB-DF, mirando a eleição marcada para novembro. Seu açodamento em apresentar-se como o benfeitor dos advogados, reside no fato de ele imaginar que nós somos capazes de trocar dignidade por coisas que nada mais são do que um direito líquido e certo. A OAB-DF não fez mais do que a sua obrigação ao facilitar o pagamento de anuidades ou garantir acesso à saúde e à alimentação. Nós temos uma Caixa de Assistência, da qual fui presidente, e que, entre as suas atribuições, deve atender a este tipo de necessidade.

O que ele não fez, e por isso não tem como prestar contas, foi empenhar-se na defesa intransigente das nossas prerrogativas. Falta ao doutor Délio a atitude de quem conhece em detalhes as dificuldades do dia a dia, o drama do advogado que não consegue despachar com o juiz adequadamente, porque as audiências virtuais viraram peça de ficção, na qual a corda sempre arrebenta do lado do advogado, prejudicado na paridade de forças tão necessária para o bom encaminhamento dos processos.

A OAB do doutor Délio perdeu o vigor a indignação que fez história na nossa entidade, como a centelha a estalar na alma dos corajosos Esdras Gueiros, Maurício Correa, Amauri Serralvo, Esdras Dantas, Estefânia Viveiros, Ibaneis Rocha, Juliano Costa Couto e tantos outros que lutaram e continuam lutando pelas nossas prerrogativas e condições dignas de trabalho. Se o atual presidente da OAB-DF demonstrasse coragem e determinação para enfrentar este desafio – o maior dentre todos provocados pela pandemia – provavelmente teria gastado muito menos dinheiro com assistencialismo e mais energia com aquilo que faz a diferença. Muitos dos nossos advogados não teriam diminuído drasticamente o ritmo de trabalho ou até parado de atuar.

Não sou nem nunca fui contra ajudar e ser solidário com quem precisa. Mas nossa compreensão do problema deve ser mais ampla. A capacidade de prover aos mais necessitados é naturalmente limitada. A ela precisamos somar o compromisso irrestrito de fazer valer o direito ao trabalho, não apenas pelos advogados representados pela Ordem, mas também pela sociedade que depende da Justiça para resolver desde seus problemas mais simples e cotidianos até os mais complexos.

O doutor Délio está oferecendo a colaboração da OAB-DF para participar do esforço da campanha de vacinação, quando, ao invés de ter dado as costas para a sociedade, deveria ter se engajado há muito tempo, seja auxiliando na investigação de denúncias sobre a não aplicação de vacinas nos idosos, de mal uso dos imunizantes ou do seu desperdício. Não falta trabalho para quem quer ação e tem espírito público. É muito confortável ficar sentado no trono do seu escritório tecendo loas a si mesmo, bebendo da sua própria vaidade e achando que fez muito, quando na realidade ficou aquém da sua obrigação. Ele não presta contas; ele faz de conta.

Quando li o artigo do doutor Délio lembrei do livro “Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago e sua narrativa sobre a epidemia de uma cegueira leitosa, baça, da qual ninguém escapa. Ali, natureza humana acaba incontida em seus instintos mais duros e as pessoas se revelam por inteiro, sem freios. Saramago sintetiza tudo na fala, incômoda e real, de um dos seus personagens: “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.”

Everardo Gueiros, advogado, foi conselheiro federal da OAB, presidente da Caixa dos Advogados do Distrito Federal, desembargador do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) entre os anos de 2016 e 2018 e Secretário de Projetos Especiais do governo do Distrito Federal nos anos de 2019 e 2020.

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