A mulher tem direito ao próprio corpo
Lisboa – Nesta sexta-feira (3), começam as audiências públicas convocadas pela Ministra Rosa Weber, do Supremo, para discutir a questão do aborto, quando 44 diferentes representantes da sociedade manifestarão suas opiniões sobre o tema. Em breve, mas ainda sem data marcada, o Supremo Tribunal Federal apreciará ação proposta pelo PSOL pedindo a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Ou seja, neste dia o Tribunal julgará se o aborto é crime ou se a mulher tem direito a decidir sobre o próprio corpo, sem ser tratada como bandida.
A discussão é desfocada e não contempla todas as angulações do problema. É indiscutível que nós mulheres temos direito a fazer o que quisermos com nossos corpos e vidas. O Estado não tem o direito de meter o meter o bedelho nas opções que só dizem respeito a nós mesmas. Muito menos a Igreja. Ora, se a mulher não professar nenhum credo, como a Igreja, qualquer que seja sua orientação, pode justificar interferência nesta questão de foro íntimo? O que precisa ser discutido pela sociedade é a falta de respeito ao ser humano no pais, onde se gasta e se desvia muito para o pouco importante e menos com educação, saúde, transporte e segurança.
É claro que o aborto deve ser descriminalizado, bem como as drogas. Nos países onde essas questões deixaram de ser tratadas como crime e passaram a ser de saúde pública, como Portugal, os resultados foram positivos. Há décadas, a Organização Mundial de Saúde Europa define o aborto seguro como uma questão de saúde pública. Portanto, o que a sociedade brasileira deve fazer é lutar pela despenalização do aborto e para garantir o direito de todo ser humano à dignidade, à cidadania e à vida. No Brasil, isso é negado às mulheres que são obrigadas a interromper a gestação na clandestinidade e em situações tão precárias que anualmente provocam a morte de cerca de 300 de nós.
O papel do Supremo Tribunal Federal deve limitar-se a descriminalizar o aborto e a garantir esses direitos. E a obrigação do governo é assegurar recursos para as mulheres decidirem livremente se querem ou não levar adiante uma gravidez. Na maioria dos casos, o aborto é imposto pela falta de condições econômicas para gerar e criar filhos, mas o governo não está nem aí para isso. Muito menos os presidenciáveis, que fogem da discussão como o diabo da cruz, com medo de perder apoio dos centrões e das bancadas religiosas, especialmente da evangélica. Mas eles representam o atraso do Brasil.
Há 11 anos, no dia 11 fevereiro de 2007, o aborto foi despenalizado em Portugal com o sim de 59,25% dos que votaram num referendo sobre o assunto, abrindo a porta para a atual lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). Nesse período, acabou a mortalidade materna associada ao aborto clandestino. E o número de mulheres que recorrem à IVG vem diminuindo. Portugal está abaixo da média europeia. 70% das mulheres que recorrem ao aborto, não reincide e 95,7% passam a adotar meios contracetivos depois do procedimento. O aborto clandestino é residual.
Portugal é um Estado laico, apesar da sua imensa população católica. A Igreja não se intromete nesta nem em outras prerrogativas do Executivo. De sua parte, o governo faz o dever de casa, assegurando meios às mulheres para decidirem livremente o que desejam fazer quando engravidam. Para se ter uma ideia dos bons resultados da legislação portuguesa, entre 2001 e 2007, morreram apenas 14 mulheres devido a aborto ilegal. Depois da entrada em vigor da lei, apenas uma faleceu num aborto legal, devido a um choque tóxico, o que pode acontecer a cada 100 mil procedimentos dessa natureza.
A lei portuguesa não é facilitadora do aborto. Apenas seus legisladores são mais preparados para entender que a interrupção da gestação é questão de saúde pública, não policial ou religiosa, enquadramento que economiza imensos recursos públicos. Em Portugal é possível fazer aborto ate às dez semanas, sem necessidade de justificação. Quando a gestação decorrer de violação, até 16 semanas, sem queixa policial. No caso de malformação, até 24 semanas. Se houver risco de morte, a qualquer momento. Em todos os casos, apenas a mulher pode pedir o procedimento. Os médicos não são obrigados a fazê-lo e podem objetar problemas de consciência. Neste caso, têm de assinar declaração para que a mulher seja encaminhada a outra unidade hospitalar.
E o que pensam nossos parlamentares sobre o assunto? A maioria não está nem aí para a questão. É despreparada, inculta, semianalfabeta, corrupta e comprometida com interesses pessoais ou impublicáveis. No Brasil, onde impera o desdém oficial pelo problema, somente entre 2008 e 20017, 2,1 milhões de mulheres foram parar nos serviços públicos de saúde em função de abortos clandestinos. Ao menos 4.455 mulheres morreram de 2000 a 2016, mais de 270 a cada ano, quando o SUS gastou 486 milhões de reais para tratar de problemas decorrentes de abortos clandestinos, sendo 75% provocados.
Por causa da falta de visão e do egoísmo da nossa classe dirigente, as despesas hospitalares do SUS não param de crescer. Mas isso não interessa aos políticos, mais empenhados em arrancar dinheiro do contribuinte para financiamento das suas campanhas eleitorais para continuarem agarrados ao osso da cadeira no Congresso do que em poupar recursos públicos. Haverá algum presidenciável com coragem de abordar o assunto durante a campanha eleitoral que já se inicia?