A minoria silenciosa e o Grande Mudo
Na década de 1970, no vendaval dos protestos populares nos Estados Unidos contra a Guerra do Vietnã, os marqueteiros da Casa Branca desenvolveram a tese da maioria silenciosa. A ideia tinha sustentação sólida na sociologia política. Nem sempre a voz das ruas é majoritária, como o foi na França na queda da Bastilha, na Rússia pré-comunista, na derrubada da União Soviética e de seus satélites. Até nos dias atuais a gritaria popular desfaz governos constituídos. A ditadura de Cuba está hoje de olhos abertos.
Os cientistas políticos americanos atestaram a solidez da original tese da maioria silenciosa ao estudar os resultados das urnas em décadas anteriores. Nem sempre os eleitos eram aqueles que haviam recebido o aplauso pretensamente popular. Descobriram que muitas vezes a maioria não sai de casa para gritar contra os governantes. Ou seja, a realidade escondida nos lares dos cidadãos, nas universidades, nas corporações, nos púlpitos do clero e mesmo nos plenários parlamentares, não era coincidente com a gritaria das ruas. Os marqueteiros de Richard Nixon acertaram em cheio: a voz das ruas era estridente, mas não majoritária: o presidente, dito impopular porque promovia a guerra, foi reeleito pela maioria silenciosa. Depois, deu no que deu, mas a tese original vingou e vale até hoje.
Sendo um mero observador da cena brasileira e não um cientista político, este redator pede licença para registrar neste inverno de 2021 que não enxerga na atualidade de nosso País a ocorrência de algo parecido. Ou seja, não existe entre nós, há duas décadas, uma maioria silenciosa. A maioria está gritando nas ruas e na imprensa, mas a nossa maioria não é una, compacta, como a de Nixon; é divisível por dois. De um lado, ouvimos a gritaria dos bolsominions motorizados ou encafuados no Congresso Nacional e à socapa nas mídias sociais das fake news; e do outro lado, a dos inconformados com a situação deplorável a que chegamos. As pesquisas de opinião podem dar, aqui e ali, uma diferença a favor de uma ou de outra banda; hoje, parece estar na dianteira a formada pelos que desejam a substituição do presidente no pleito de 2022. Essa banda acolhe também os apressados que desejam fazê-la já, no maremoto da CPI da Covid e da mácula das rachadinhas.
No entanto, emerge no cenário político brasileiro um fenômeno social novíssimo entre nós: o da minoria silenciosa. Aquela que não brada na rua. A minoria silenciosa carrega uma dúvida dramática que as pesquisas eleitorais não detectam: será que essa minoria quer mesmo a substituição do presidente por aquele que se apresenta ao eleitor como o maior antagonista do antibolsonarismo? Essa é a pergunta cuja resposta está em milhares de lares, nas universidades, nas corporações, no sufocante cotidiano dos ônibus e trens que transportam o vírus da Covid e nem se debruça nas janelas para bater panela. Está inconformada, mas até agora silenciosa.
Essa minoria de boca fechada cristaliza, dentro de casa, o seu voto ao sabor dos acontecimentos, e poderá ser o fiel da balança entre as duas bandas que se confrontam na gritaria das ruas e da mídia. Terá essa minoria o poder de gerar o surgimento da terceira via? Certamente, não antes do pleito, pois a vaidade estimula o egotismo e impede atos de generosidade no espírito público do animal político. Mas pode se manifestar aos berros no dia em que os minoritários silenciosos falarão nas urnas, dando chance ao aparecimento de um candidato que substitua um dos dois que hoje se antagonizam, e que irá se apresentar para o segundo turno para o confronto final.
Entre a gritaria da maioria e o silêncio da minoria, um fantasma amedrontou nos últimos dias o imenso cemitério nacional da Covid. E o fantasma não falou, só escreveu; mas foi como se tivesse berrado, como fazem as duas bandas nas ruas do Brasil. Os comandantes militares alarmaram a Nação com uma nota conjunta sobre o cenário político, tomando partido de uma das bandas. Graças aos deuses da balzaquiana democracia brasileira, parou por aí a indevida manifestação do avantesma que se recolhera desde a derrubada de João Goulart.
Convém visitar a História. Existe uma invenção francesa muito mais antiga que a descoberta sociológica da maioria silenciosa. É a instituição do Grande Mudo, sugestivo nome que um general do Estado-Maior francês deu à sua vitoriosa tese de que o Exército não deveria se imiscuir na política. Uma pena o ignorante redator destas linhas desconhecer o nome do criador para louvá-lo. Discutia-se, em 1848, nos albores da Segunda República, a nova lei do voto universal masculino, o qual permitiria ao soldado engajado exercer esse ato democrático. O sábio homem em armas disse não, com um argumento militar: a alegria das urnas dispersaria a soldadesca num momento em que a França mais precisava deles para confrontar os prussianos nas fronteiras. Foi tão sábia a tese que, de origem castrense, passou para o campo da política. O Exército francês ganhou a nobilíssima designação de O Grande Mudo. Nos momentos mais tensos da política francesa manteve-se mudo, com exceção do controverso Caso Dreyfus, mas o cenário já era o da pré-Guerra Mundial de 1914. O Grande Mudo só abria a boca quando a pátria era atacada, e então falava pela boca de canhões, como é do seu dever. É para isso que existem exércitos, para falar pelos canhões contra agressores do solo nacional. O glorioso Exército Francês se manteve mudo diante da cena política, mesmo tendo sido concedido aos militares o direito de votar em 1945. Até que o vírus da má política o contaminou, no período da descolonização da Argélia. Os inconformados com a libertação dos argelinos tiveram a impatriótica ideia de criar a Organização do Exército Secreto. Eles cobriram de sangue o Governo de De Gaulle, crime abominável, e por isso foram considerados traidores da pátria.
Depois de décadas de silêncio, em abril último, generais de pijama assinaram um manifesto político em Paris. Mesmo sem a farda da caserna, serão levados à corte militar por decisão da ministra da Defesa da nação que inventou a democracia moderna.
O Grande Mudo brasileiro (desde 1964) precisa prosseguir mudo, diante da maioria que grita e diante da minoria silenciosa, e mesmo batendo continência (como é do seu dever) ao comandante-em-chefe assentado na Presidência da República, seja ele quem for, e sendo louvado ou xingado nas ruas.