A equivocada proposta de reduzir à metade deputados e senadores
Recebi, por mensagem de correio eletrônico, o convite para “engrossar” a campanha em favor da proposta de reduzir pela metade o número de deputados e senadores. A proposição foi posta da seguinte forma:
“CHEGA DE MAMATA DE POLÍTICOS COM O NOSSO DINHEIRO! QUEREMOS QUE NOSSOS IMPOSTOS SEJAM USADOS NA SAÚDE, SEGURANÇA E EDUCAÇÃO!
QUEREMOS A REDUÇÃO PELA METADE DO NÚMERO DE DEPUTADOS E SENADORES!
O congresso nacional brasileiro tem atualmente 513 deputados federais e 81 senadores. Somados, nós temos 594 parlamentares que dependem totalmente dos nossos IMPOSTOS.
Com um custo anual de cerca de US$ 4,4 bilhões de dólares (convertido em reais dá mais de R$ 20 BILHÕES ANUAIS), conforme dados repassados pela UIP à BBC News Brasil, o parlamento brasileiro é o SEGUNDO MAIS CARO DO MUNDO! Para se ter uma ideia:
1) Um deputado federal tem o custo médio de 182 MIL REAIS POR MÊS!
2) Um senador tem o custo médio mensal de R$ 165 MIL REAIS POR MÊS!
Caso o número de deputados federais fosse reduzido pela metade, os cofres públicos teriam uma economia mensal de, aproximadamente, 46,5 MILHÕES DE REAIS POR MÊS!!!!!
Se o número de senadores fosse reduzido pela metade, a economia seria de cerca de 6,6 MILHÕES MENSAIS POR MÊS!!!!!
Esse dinheiro poderia ser investido em benefício do povo brasileiro! Queremos saúde, educação e segurança! É necessário que nós, o povo, nos unamos contra os privilégios políticos!
EXIGIMOS A REDUÇÃO PELA METADE DO NÚMERO DE DEPUTADOS E SENADORES!
CHEGA DE MAMATA DE POLÍTICOS COM O NOSSO DINHEIRO! QUEREMOS QUE NOSSOS IMPOSTOS SEJAM USADOS NA SAÚDE, SEGURANÇA E EDUCAÇÃO!”
A proposta parece justa e meritória. Mas, só parece. São basicamente cinco as razões para a rejeição de uma ideia posta nesses termos.
Primeiro, porque dá a impressão que os gastos com os parlamentares “fazem a diferença” ou representam recursos que faltam em áreas essenciais como a saúde, educação e segurança pública. É importante registrar que o Estado brasileiro experimenta níveis trilionários de arrecadação tributária. Sendo mais preciso, a partir de números oficiais, foram arrecadados 1,971 trilhão de reais em 2021 (fonte: poder360.com.br). Aparentemente, os grandes problemas nas áreas de saúde, educação e segurança pública são fundamentalmente administrativos ou gerenciais. Em outras palavras, estão faltando eficiência e competência na formatação e execução das políticas públicas nessas áreas. Ademais, se faltam recursos suficientes ou mais recursos, para manutenção e ampliação de ações nas áreas sociais, esses estariam travados pelo iníquo teto de gastos definido pela Emenda Constitucional n. 95, de 2016, e por despesas gigantescas em setores como o pagamento do serviço da dívida pública.
Segundo, porque a redução concentra mais poder nas mãos da “metade restante” ou “os que sobram”. A ciência política moderna aponta para a descentralização e desconcentração do poder como o caminho a ser seguido nas democracias modernas. A clássica tripartição de poder de Montesquieu está fundada justamente nessa premissa. Uma quantidade maior de detentores de poder reduz a parcela desse mesmo poder nas mãos de cada um, individualmente considerado. Assim, ganham mais espaços as negociações (limpas, republicanas e programáticas) e os arranjos (democráticos) para exercício do poder e a tomada de decisões mais plurais e inclusivas.
Terceiro, porque uma proposta consequente teria como alvo o gasto total do Parlamento e não somente o número de seus membros. Com efeito, podemos aumentar o número de parlamentares e reduzir o custo do Parlamento. Para tanto, é preciso fazer um debate rigoroso sobre o número de assessores, verbas recebidas em razão do exercício do mandato, utilização de veículos, cotas de passagens aéreas e despesas desse gênero. Também devem ser analisados os gastos com a estrutura geral do Parlamento e os itens não diretamente ligados ao exercício parlamentar.
Também devem ser consideradas, pesadas e contidas, quiça extirpadas, as ações deletérias dos parlamentares na seara das finanças públicas. Nesse sentido, um estudo do economista Marcos Mendes aponta que: a) “deputados e senadores brasileiros interferem até 20 vezes mais no orçamento do que congressistas de nações integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)” e b) “as emendas representam 24% das despesas verbas dos ministérios e de investimentos este ano, os gastos discricionários” (fonte: estadao.com.br).
Assim, expedientes como o atual “orçamento secreto”, no montante de 16 bilhões de reais para 2022 (fonte: conjur.com.br), fruto do casamento entre o Centrão e Bolsonaro, possuem potencial muito mais deletério para a “coisa pública” do que as despesas específicas de manutenção das estruturas parlamentares. Com efeito, a pulverização de recursos públicos de forma praticamente livre e sem critérios objetivos produz cenários como a venda de kits de robótica com sobrepreço de 420% para unidades escolares sem computadores, internet e água encanada (fonte: folha.uol.com.br). Duas vítimas não escapam dessa farra: a) o planejamento das políticas públicas, inclusive por conta de um indevido detalhamento da interferência parlamentar nas questões orçamentárias e b) a regularidade da despesa pública (já que os caminhos para a corrupção são abertos ou escancarados).
Quarto, a redução do número de parlamentares potencializa candidaturas e campanhas mais fisiológicas, baseadas na contratação interesseira de cabos eleitorais, “compra” de apoios de lideranças comunitárias e afins e promessas de vantagens imediatas descoladas de políticas públicas e do equacionamento dos grandes problemas locais, regionais e nacionais. Parece evidente que o chamado “voto de opinião”, fundado em propostas programáticas e trajetórias de vida que demonstrem as habilidades técnicas e políticas para instrumentalizá-las, dados os insatisfatórios níveis de conscientização, mobilização e organização da sociedade e seus setores mais consequentes, perderia espaço para as práticas eleitorais mais nefastas.
Quinto, parece, com a proposta destacada, que os grandes problemas do Brasil decorrem da existência da classe política. Importa registrar que não existe sociedade humana civilizada sem ação política. Trata-se da inafastável instância para mediação dos mais variados interesses socioeconômicos. Esses interesses de fundo são os mais relevantes e responsáveis por conduzir e pautar a política. Observe-se um dado bem emblemático acerca da afirmação anterior. As altíssimas taxas de juros praticadas no Brasil e o enorme endividamento do Estado, das famílias e das empresas conduzem a transferência anual de algo em torno de 1,5 trilhão de reais do conjunto da sociedade (mais de 99%) para uma minoria de privilegiados (menos de 1%). Esse elemento estrutural de construção da profunda desigualdade brasileira subsiste por várias décadas ou várias legislaturas (renovação do conjunto de políticos-parlamentares de quatro em quatro anos).
Um aspecto importante precisa ser destacado. No Brasil atual predomina (mas não é exclusiva) uma atuação político-parlamentar completamente livre e descomprometida com a prestação de contas aos eleitores. Assim, parece mais efetivo que a redução pura e simples do número de deputados e senadores, a criação de uma cultura de acompanhamento estrito dos desempenhos parlamentares. Um bom instrumento para efetivar essa ideia, verdadeiro reforço e resgate da democracia representativa, em considerável crise, consiste na criação e funcionamento regular de conselhos ou comitês de acompanhamento e consulta dos mandatos parlamentares.
Em suma, e muito sumariamente, é preciso estudar e analisar a realidade com o devido cuidado. As soluções para os grandes problemas brasileiros reclamam diagnóstico adequado e fuga de discursos e posturas fáceis, superficiais e equivocadas, não obstante algum apelo popular por força de falsas imagens desenhadas pela grande imprensa e por uma justa revolta com a ineficiência dos poderes constituídos. O equacionamento das principais mazelas nacionais não é rápido, simples, fácil ou dependente de salvadores ou paladinos da justiça. Será preciso tempo e esforço investidos em conscientização (inclui boas doses de educação formal), mobilização e organização dos interesses democráticos e populares.