A deterioração da confiança nas instituições do Poder Judiciário
Nas últimas duas décadas, isto é, desde a virada do século XXI, o Estado brasileiro vem se deteriorando de forma progressiva e continuada. Os sintomas têm aparecido na forma de baixos índices de crescimento econômico, e também na forma de corrupção generalizada tanto no nível federal quanto no nível dos Estados e dos Municípios. Em termos de crescimento econômico os registros do Banco Mundial mostram que no ano 2000 o Brasil era a 9ª. economia do mundo, com uma taxa de crescimento muito próxima das economias europeias e dos EUA. No ano de 2022, a economia brasileira havia caído para a 11ª. posição, para níveis já bastante próximos da Austrália e da Coréia do Sul, e com taxas de crescimento declinantes.[1] Do ponto de vista da corrupção, apesar das anulações de processos judiciais pelo STF, a quantidade de provas, traduzidas em “delações premiadas” decorrentes de culpas formalmente assumidas por corruptos e corruptores, é imensa. Os acordos de devolução de recursos somam vários bilhões de dólares, alguns inclusive devido a ações da justiça tramitadas nos EUA. Nesse processo de anulação de processos pelo STF, a perda de confiança no Judiciário tem sido uma consequência inevitável e cujos efeitos no longo prazo são difíceis de serem avaliados.
O abandono do princípio da separação dos poderes
Em tempos passados, até a Idade Média europeia, os governantes enfeixavam em si todos os poderes do Estado. Os reis produziam as leis que deveriam governar a vida dos súditos, como o fizera Filipe II, do reino da Espanha que, como parte da unificação dos Reinos de Portugal e de Espanha (1580-1640) produziu as Ordenações Filipinas. Em grande parte, essas ordenações derivavam do Código Manuelino produzido por D. Manuel, rei de Portugal e Algarves entre 1495 até sua morte em 1621.[2]
Quanto ao exercício da justiça pelo governante, há muitos relatos históricos e literários nos quais os reis na Idade Média usavam a “Sala do Trono” tanto para receber embaixadas de outros reinos, quanto para distribuir justiça para seus súditos, que podiam pleitear demandas individuais ou coletivas junto ao soberano em relação a títulos e direitos de propriedade, ou em relação a disputas e reivindicações de outros súditos do reino. Na Antiguidade, provavelmente o caso mais notável do papel desempenhado pelo governante como magistrado que distribuía justiça para seus súditos, é o do Rei Salomão, que se viu diante da demanda por direitos de maternidade sobre um menino, apresentada por duas mulheres que moravam sob o mesmo teto. Diante do impasse e da impossibilidade de comprovação “científica” da maternidade, o Rei Salomão pede uma espada e propõe cortar a criança ao meio, de modo que cada uma delas pudesse ficar com uma metade. Uma das demandantes aceita a proposta enquanto a outra, no desespero, abre mão de sua reivindicação dizendo “dai-lhe a ela o menino que está vivo, e de modo nenhum o mateis!“. Para Salomão, o gesto piedoso da segunda mulher, deixava claro que somente ela poderia ser a mãe verdadeira.[3]
O fato é que, ao final da Idade Média, as populações haviam se ampliado e as sociedades haviam se tornado mais complexas e, assim, as instituições feudais se tornavam, cada vez mais, incapazes de manter, de maneira satisfatória, a ordem econômica e política. Essa incapacidade fez emergir conceitos como o de soberania e de Estado Nacional.[4] Esse cenário também trouxe a noção de que o Estado precisaria ser organizado em três poderes distintos e independentes. É nesse quadro que Montesquieu escreveu sua notável obra O Espírito das Leis, em 1748, que influenciou de forma substancial a formação das democracias modernas, a começar pelos EUA que, com a adesão à Constituição de 1787, as 13 ex-colônias passaram a formar oficialmente uma nova nação.
Montesquieu argumentava que era imprescindível para a preservação da liberdade que os três ramos do poder do Estado (Legislativo, Judiciário e Executivo) atuassem de forma distinta e independente. Sem essa separação e independência entre os poderes, os Estados organizados tanto na forma monárquica quanto na forma republicana, estariam fadadas à tirania, uma vez que, somente com a separação e com a independência, cada poder poderia fiscalizar e contrabalançar, com força e com serenidade suficientes, os demais poderes, produzindo um equilíbrio saudável, que dificultaria qualquer inclinação do regime político para a tirania.
No Brasil, embora a separação e a independência dos poderes estejam claramente explicitadas na Constituição vigente (Artigo 2º.), o Supremo Tribunal Federal (STF), que é a Corte formalmente responsável por proteger a constituição da nação, tem participado ativamente do jogo político por meio do qual são desenvolvidas ações de interferência mútua entre as instituições que compõem os três poderes da Republica.
A confiança e a credibilidade no equilíbrio entre os poderes
A manutenção de um equilíbrio sutil, mas efetivo e dinâmico, entre os três poderes depende de muitos fatores, entre os quais se destaca a confiança na imparcialidade das leis produzidas pelo Legislativo, nos julgamentos prolatados pelos juízes, assim como no emprego da força (inclusive a do dinheiro) por parte dos governantes. Na realidade, pode-se dizer que a confiança constitui o principal patrimônio de qualquer instituição do Estado, sobretudo porque as questões públicas são controversas por natureza. Ou seja, nas questões públicas a distinção entre o certo e o errado, ou entre os diferentes interesses quanto aos benefícios de certos bens públicos, essa distinção é também pouco clara, e geralmente difusa. Além disso, com frequência, qualquer ação do Estado costuma deixar alguém ou mesmo uma parte da população descontente.
A confiança, por sua vez, não é um bem que pode ser adquirido por decreto e muito menos por meio de retórica melíflua ou de promessas incapazes de serem cumpridas. A confiança só pode ser adquirida por meio da reputação construída ao longo do tempo na prática da isenção, isto é, do sentimento de que o legislador, o magistrado ou o agente do executivo cumprem suas respectivas tarefas sem a intenção de favorecer ou de prejudicar quem quer que seja.[5] Por essa razão, pensadores como Montesquieu chegaram à conclusão de que a separação e a independência dos poderes eram tão importantes para a liberdade e para a estabilidade da ordem política. Com efeito, o abalo da confiança nas instituições abala o comportamento da sociedade, tornando-a refratária à cooperação, deteriorando a fé em quaisquer investimentos, sobretudo econômicos, para o futuro tanto na esfera pessoal quanto no nível social.[6] No sistema político americano o respeito à separação e à independência dos poderes é tal que não se admite que um Deputado ou Senador (Legislativo) assuma algum cargo no Governo (Executivo) sem antes renunciar ao seu mandato de deputado ou de senador. Para os construtores do sistema político americano, o conflito de interesses se configura de forma inevitável na movimentação entre integrantes dos três poderes, causando grande mal para cada um dos poderes em particular, assim como para a sociedade política como um todo, uma vez que é elemento corrosivo para a confiança nas instituições.
A conclusão da presente análise só poderia ser no sentido de que as decisões tomadas pelo STF – na realidade por ministros individualmente do STF em nome da Corte Suprema nacional – sobretudo as anulações de processos inteiros, assim como as nomeações mais recentes de ministros dessa Corte, que passaram a ser indicados abertamente por serem “amigos” do governo, trazendo muitas consequências danosas em termos de falta de isenção e de impunidade e, portanto, comprometendo a confiança nas instituições da Justiça. Nesse quadro, tudo indica que o maior dos prejuízos dos desenvolvimentos recentes na área da Justiça, refere-se à deterioração da confiança no Poder Judiciário. Com efeito, anular provas colhidas assim como anular julgamentos realizados ao longo de vários anos de exaustivo trabalho de magistrados e de instâncias jurídicas formalmente constituídas, tomando por base apenas argumentos sobre aspectos processuais formais significa sugerir, e até mesmo aceitar, que a ação das Cortes é movida por preferências e parcialidades. Em outras palavras, faz crescer a sensação de que o cidadão, para ter a justiça ao seu lado, mais do que provas e evidências convincentes, é bem mais importante estar nas graças dos detentores do poder.