PGR diz que transferência da Funai para Agricultura é inconstitucional
Sub-procurador da República afirma que perspectiva integracionista do índio tornou-se incompatível com a Constituição
A 6ª Câmara da Procuradoria-Geral da República (PGR) afirma, em nota técnica, que a Medida Provisória número 870, assinada pelo presidente Jair Bolsonaro em seu primeiro dia de governo, é inconstitucional e foco de “conflito entre interesses indígenas e política agrícola da União”. O documento, assinado pelo subprocurador-geral da República e coordenador da 6ª Câmara, Antonio Carlos Alpino Bigonha, passou a ser distribuído aos procuradores da República e parlamentares nesta quinta-feira, 7.
A 6ª Câmara é responsável, na PGR, pela coordenação e revisão de assuntos relativos às populações indígenas e comunidades tradicionais.
Para Bigonha, a subordinação de assunto de grande interesse indígena, como a demarcação de terras, à pasta que cuida da Agricultura fere a Constituição.
“A Constituição de 1988 deu um passo não integracionista do indígena ao separar o interesse agrícola da política indigenista. A medida provisória coloca as duas questões sob o mesmo guarda-chuva. É inconstitucional porque onde o constituinte distinguiu, o legislador não pode estabelecer uma igualdade”, disse Bigonha em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo.
Na nota, o Ministério Público ataca a decisão, contida na medida, de transferir da Funai (Fundação Nacional do Índio) para o Ministério da Agricultura a competência de localizar, identificar e demarcar terras indígenas no país, assim como a transferência da Funai para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.
A nota técnica da PGR pode ser usada como baliza para a ação de procuradores da República em todo o país e vai subsidiar parlamentares no momento da análise da MP, que deve ser avaliada num prazo máximo de 120 dias no Congresso Nacional.
Bigonha ressalta no documento que a perspectiva integracionista do índio “tornou-se incompatível” com a Constituição de 1988 quando ela estabeleceu o reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos indígenas. Ao mesmo tempo, “reconheceu a legitimidade das próprias atividades produtivas indígenas, reservando-lhes o direito à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar”.
Ou seja, a Constituição frisou que o indígena não precisa se tornar um agricultor “para tornar-se um cidadão pleno”, ele já é, “independentemente de um processo de aculturação, evolução ou integração”.
A nota técnica do MPF diz que a passagem de atribuições da Funai para o Ministério da Agricultura “operou a repristinação [restauração] da velha política integracionista do direito antigo e obrigando os índios e suas comunidades a um falso tratamento isonômico em relação aos demais atores da sociedade brasileira”.
“Qualquer política indigenista, de qualquer governo, de qualquer posição ideológica, de esquerda, de centro ou de direita, não poderia adotar como objetivo integrar o índio à sociedade brasileira porque pressuporia válido algo que a Constituição da República repudia”, diz a nota técnica.
A manifestação também critica a transferência da Funai ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado pela pastora evangélica Damares Alves.
“A subordinação da Funai ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos infirma [enfraquece] a diversidade preconizada pelo Constituinte e faz letra morta a Norma Maior, pois parte do pressuposto de que os valores dessas comunidades compõem um mero subsistema da ordem social geral e não um sistema próprio, indígena, tal como previsto na Carta Política. Nesse sentido, como já afirmou o STF, quando voltada aos povos indígenas, a aplicação dos direitos humanos pressupõe o respeito à sua organização social, seus usos, costumes e tradições, garantindo-se sua diversidade cultural, a ser considerada, junto às suas histórias e anseios, pela educação pública”, diz a nota técnica.
“A gestão dos interesses indígenas na mesma pasta dedicada à mulher, à família e aos direitos humanos patrocina claro conflito de interesses o que, como se viu, afronta a Constituição da República. O respeito à cultura indígena, no particular, passa justamente pela crítica aos conceitos de mulher, família e direitos humanos que o novo Ministério visa preservar e, como é cediço, não é possível bem servir, e ao mesmo tempo, a dois senhores”, afirma o MPF.
O documento assinado pelo procurador Bigonha também afirma que a própria confecção da medida provisória ofende princípios estabelecidos na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que foi ratificada pelo Brasil em junho de 2002 por decreto legislativo, com plena eficácia a partir de um decreto executivo de 2004.