Regulação de eletricidade: experiência em Virginia, USA

O Setor Elétrico do Brasil (SEB) está passando por um período de críticas quanto a sua governança, modelo regulatório e confiabilidade, principalmente devido à forte participação de fontes renováveis intermitentes e o apagão de 15/08/2023.

Portanto, talvez valha a pena analisar a experiência de um Estado dos USA, Virginia, que como o SEB passou por grandes modificações na década de 1990 para quebrar monopólios e introduzir competição e depois o reformulou.

Por décadas os sistemas elétricos ao redor do mundo operaram com monopólios regionais regulados, até que na década de 1990 o governo Thatcher no Reino Unido revolucionou seu sistema regulatório abrindo completamente o mercado à competição. Essa experiência foi seguida em várias partes do mundo, inclusive no Brasil e também nos EUA.

Nos EUA, antes da década de 1990, a maioria das empresas de eletricidade pertencentes a investidores eram reguladas e verticalmente integradas, o que significa que as empresas detinham geradores de eletricidade e linhas de energia (linhas de distribuição e transmissão). Hoje, dos 50 estados, 16 mais o Distrito de Colúmbia (DC) têm desregulação e os outros 34 estados continuam a ter mercados de serviços públicos regulados.

Assim, atualmente, as empresas de eletricidade, dependendo do estado, podem ser reguladas e operar como monopólios verticalmente integrados com supervisão das comissões de serviços públicos, ou podem operar em mercados desregulados onde os preços da energia elétrica são definidos pelo mercado com alguma supervisão federal das operações do mercado atacadista. Estas regulações determinam como são definidos os preços varejistas e atacadistas da eletricidade e como as centrais elétricas são licitadas.

Estados com Mercado Desregulado: fomentando a concorrência e a inovação nesses mercados, os consumidores ganham a liberdade de selecionar os seus fornecedores de eletricidade. Esta competição estimula a inovação, promove soluções energéticas mais limpas e oferece preços competitivos para atrair e reter consumidores. Não mais confinados a um único modelo, os consumidores podem escolher planos energéticos alinhados com as suas preferências – quer essas preferências envolvam fontes renováveis, tarifas fixas ou serviços personalizados.

Os defensores dos mercados desregulados argumentam que a desregulação incentiva um aumento nos avanços tecnológicos e atua como um catalisador para o desenvolvimento de soluções de ponta que remodelam o panorama energético e a concorrência reduz os preços ao eliminar os preços monopolistas.

A Agencia Internacional de Energia (AIE) alerta que em 2024 em vários sistemas usando desregulação e forte participação de fontes intermitentes a frequência de ocorrência de preços negativos no mercado atacadista chega a 20%. Isso indica que o lado da procura não responde suficientemente aos preços e que não há armazenamento disponível suficiente. A frequência crescente de preços negativos envia um sinal urgente de que é necessária uma maior flexibilidade da oferta e da procura. Serão necessários novos tipos de regulação e conceções de mercado adequadas para permitir a adoção de soluções de flexibilidade, como a resposta à demanda e armazenamento.

Entretanto, mesmo depois de décadas da implantação da desregulação, apenas 16 estados implantaram desregulação completa para os mercados atacadista e varejista. Muitos implantaram desregulação apenas na geração de eletricidade (mercado atacadista) e mantiveram regulação total ou parcial do mercado varejista.

Estados com Mercados Regulados: visam garantir confiabilidade, priorizando a estabilidade e o planejamento de longo prazo em detrimento da concorrência imediata. Nestes mercados, as comissões de serviços públicos desempenham um papel fundamental na supervisão e controle de vários aspectos da indústria elétrica para garantir a prestação consistente de serviços.

Os defensores dos mercados regulados  reconhecem que oferecem um ambiente controlado onde as concessionárias recebem direitos exclusivos para operar dentro de territórios designados, no entanto, existe clara definição de responsabilidades quanto a qualidade e confiabilidade do suprimento. Esta exclusividade permite o planejamento a longo prazo e investir em atualizações para atender à crescente demanda e garantir o fornecimento ininterrupto e dentro dos padrões de qualidade e confiabilidade.  As agências governamentais estabelecem estruturas de preços baseadas em fatores como custo do investimento, operação e margens de lucro definidas e fiscalizam o fornecimento. Embora isto possa limitar as flutuações imediatas de preços, também pode retardar a adoção de novas tecnologias e desencorajar a inovação devido à falta de pressão competitiva.

O debate “desregulado versus regulado” está longe de ser uma escolha clara e ambos os modelos apresentam o seu próprio conjunto de desafios. Os mercados desregulados, embora promovam a concorrência, podem levar a uma potencial manipulação de mercado, à falta de planejamento a longo prazo, com decisões de investimento baseadas apenas em aspectos de curto prazo e à confusão de alguns consumidores devido a um número grande de opções. Por outro lado, os mercados regulados podem sufocar a inovação, desencorajar a eficiência e limitar a escolha do consumidor.

As tarifas de eletricidade nos EUA em 2024 mostram que os 10 estados com mais baixas tarifas médias mantiveram regulação no mercado varejista e os 10 estados com tarifas mais altas incluem 7 com desregulação total e 3 com regulação no mercado varejista. De forma global as tarifas médias foram: 20,27 cents/kWh nos estados desregulados e 14,18 cents/kWh nos estados com mercado varejista regulado.

Estados com Modelo Híbrido: Em resposta a estes desafios, alguns estados optaram por modelos híbridos, combinando elementos de ambas as abordagens. Por exemplo, um estado pode manter uma distribuição regulada, permitindo ao mesmo tempo uma concorrência desregulada ao nível da produção, porém efetuando um planejamento de longo prazo. Ou seja, ter um mercado competitivo a nível atacadista onde os geradores e revendedores e grandes consumidores negociam livremente a compra e venda de eletricidade resultante de investimentos definidos em um  planejamento técnico; e um mercado varejista onde, de forma regulada, os pequenos consumidores são supridos de eletricidade.

É o caso de Virgínia.

Antes de 1999, as concessionárias de energia elétrica da Virgínia eram regulamentadas pelo Capítulo 10 do Título 56 do código da Virgínia. Nos termos desse código, o “State Corporation Commission” (SCC) tinha autoridade para definir as tarifas dos serviços públicos de eletricidade com base nos custos de serviço dos serviços públicos. A SCC também tinha autoridade para estabelecer a taxa de retorno de uma empresa de serviços públicos, ou nível de lucro autorizado, após considerar fatores como o risco dos serviços e as condições econômicas gerais. A taxa de retorno de uma empresa de serviços públicos deve ser suficiente para atrair investidores para financiar as suas operações.

Em 1999, a Assembleia Geral aprovou uma lei que desregulou o mercado energético da Virgínia e trouxe a concorrência para a geração elétrica e para a comercialização. Contudo, passados ​​vários anos, a Assembleia Geral determinou que não se tinha desenvolvido concorrência suficiente e que a desregulação não havia alcançado os objetivos, especialmente de redução de tarifas e responsabilidade pela confiabilidade. Portanto, em 2007, a Assembleia Geral aprovou uma lei abrangente “re-regulamentando” o serviço de eletricidade.

A Lei de Reforma de 2007 é um sistema regulatório exclusivo de Virgínia e muito diferente do Capítulo 10 anterior. A Lei de Reforma estabeleceu novos procedimentos para a revisão das tarifas e receitas de cada serviço público. A lei também permitiu que as empresas de serviços públicos recuperassem certos custos, incluindo dinheiro gasto em novas centrais elétricas e programas de energias renováveis.

Em termos de planejamento, as concessionárias de energia elétrica devem apresentar Planos de Recursos Integrados (“IRPs”) ao SCC a cada três anos com a proposta da concessionária para fornecer um serviço confiável nos próximos 15 anos, incluindo construção de novas centrais elétricas, implementação de eficiência energética ou acordos de compra de energia. O SCC analisa e promove audiências públicas incluindo os produtores independentes de energia e representantes dos consumidores.

Em termos de operação, a Lei de Reforma exigiu que a Dominion e a APCo se unissem às Entidades Regionais de Transmissão (“RTEs”). Assim as duas concessionárias fazem parte do PJM (Pennsylvania-New Jersey-Maryland Interconnection). O PJM opera um mercado atacadista de eletricidade competitivo e gere a confiabilidade da rede de transmissão. O PJM fornece acesso aberto à transmissão e realiza planejamento de longo prazo. Ao gerenciar a rede, a PJM despacha centralmente a geração e gerencia o mercado de eletricidade no atacado em todos ou parte de 13 estados e no Distrito de Columbia. Os mercados da PJM incluem energia (para o dia seguinte e em tempo real), capacidade e serviços auxiliares.

O planejamento do sistema e a operação do mesmo são baseados em critérios de confiabilidade desenvolvidos e monitorados pela North American Electric Reliability Corporation (NERC).

A evolução do setor de energia elétrica quando passou de sistemas isolados para sistemas interconectados aumentou a confiabilidade e a economia, mas trouxe com isso dependência mútua – um problema em um sistema pode afetar sistemas vizinhos. Isto impulsionou a necessidade de uma cooperação cuidadosa e forte coordenação nas operações do sistema de padrões comuns de confiabilidade. Isso levou à formação da NERC.

Os Padrões de Confiabilidade NERC definem os requisitos de confiabilidade para o planejamento e operação dos sistemas interligados de energia elétrica americanos e são desenvolvidos usando uma abordagem baseada em resultados que se concentra no desempenho, no gerenciamento de riscos e nas capacidades dos executores. O Modelo Funcional de Confiabilidade define as funções que precisam ser executadas para garantir que o Sistema Elétrico Interligado opere de maneira confiável e é a base sobre a qual os Padrões de Confiabilidade se baseiam. Além de fornecer um Nível Adequado de Confiabilidade, os Padrões de Confiabilidade NERC devem ser escritos de modo que atinjam seu objetivo de confiabilidade sem causar restrições indevidas ou impactos adversos sobre os mercados de eletricidade.

Em termos de mercado, o Estado de Virgínia tem dois tipos de mercado de eletricidade: mercado atacadista e mercado varejista. O primeiro é um mercado competitivo como participante do PJM. O segundo é um mercado regulado para consumidores residenciais e um mercado competitivo para outros consumidores.

Atacadista: O mercado atacadista refere-se à compra e venda de energia entre geradores e revendedores. Os revendedores incluem empresas de serviços públicos de eletricidade e comerciantes de eletricidade. Para participar do mercado atacadista os geradores (concessionárias ou independentes) devem obter a aprovação necessária, se conectam à rede e aderem às regras do PJM. Igualmente os revendedores devem obter aprovação.  Ambas as concessionárias na Virgínia participam do mercado atacadista PJM.

O preço da eletricidade atacadista pode ser pré-determinado por um comprador e um vendedor através de um contrato bilateral (um contrato em que foi celebrado um acordo mútuo entre as partes) ou pode ser definido no mercado atacadista da PJM.

Varejista: no mercado varejista a grande maioria de consumidores são abastecidos pela concessionária responsável pela área onde está localizado o endereço de fornecimento dentro do mercado regulado com tarifas estabelecidas pela SCC. A Lei de Reforma estabeleceu revisão trienal de tarifas quando as receitas e rendimentos dos serviços públicos são revistos pelo SCC.

Além disso, os consumidores de eletricidade estão autorizados a comprar de concorrentes no mercado desregulado em duas situações.

Na primeira situação, grandes consumidores com uma demanda máxima superior a 5 MW podem comprar energia competitiva. Além disso, dois ou mais consumidores não residenciais podem requerer ao SCC a agregação de suas demandas para que, combinados, atinjam o limite de 5 MW necessário para contratar o serviço.

Na segunda situação, qualquer cliente pode comprar energia 100% renovável a um fornecedor licenciado se a concessionária monopolista do cliente não oferecer energia 100% renovável. Portanto, todos os seus consumidores estão atualmente autorizados a comprar geração renovável de fornecedores licenciados. Assim, geradores independentes de solar e eólica podem oferecer eletricidade a consumidores residenciais e não residenciais, sendo, no entanto, responsáveis pelo pagamento do uso do sistema de transmissão e distribuição e das responsabilidades de sistema correspondentes a confiabilidade.

Outra experiência interessante do framework utilizado na Virgínia é na geração descentralizada, eles são chamados de “consumidor-gerador elegível”. Isto significa um cliente que possui e opera, ou contrata outras pessoas para possuir, operar, ou ambos, uma instalação de geração elétrica que (i) tenha capacidade não superior a 20 quilowatts para consumidores residenciais e não superior a um megawatt para consumidores não residenciais; (ii) utiliza como fonte geradora total (100%) energia renovável; (iii) a instalação de geração renovável esteja localizada nas instalações do cliente e esteja conectado à fiação no lado do cliente de sua interligação com a distribuidora; (iv) esteja interligado e operado em paralelo com instalações de transmissão e distribuição de uma companhia elétrica.

A Lei de Reforma estabeleceu um programa especial de medição líquida para o “consumidor-gerador elegível.”  Qualquer energia “excedente” gerada por um consumidor-gerador em qualquer momento flui de volta para a rede elétrica. A medição líquida permite que os consumidores compensem todo ou parte do seu consumo de eletricidade. Os consumidores-geradores pagam apenas pelo uso “líquido” de energia. Além disso, os consumidores-geradores com instalações superiores a 10 kW deverão pagar uma tarifa de standby para compensar os custos de manutenção do sistema de distribuição.

RESUMO: A experiência do Estado de Virginia mostra que é possível implantar um modelo regulatório híbrido buscando conciliar as vantagens do modelo desregulado e do regulado. Assim a desregulação da geração permite competitividade na parte do setor elétrico onde essa competição pode trazer maiores ganhos, a geração de eletricidade. A responsabilidade pela confiabilidade (inclusive reservas de energia e capacidade) é  bem definida e assignada ao fornecedor de eletricidade, seja ele um gerador (concessionaria ou independente), uma concessionaria de distribuição, ou um fornecedor licenciado.  E a regulação no mercado varejista permite melhor confiabilidade técnica e previsibilidade comercial para o suprimento a consumidores. Essa mesma experiência mostra a importância de ter-se:

(a) uma agência reguladora que não necessite interferir frequentemente nas normas regulatórias;

(b) critérios de confiabilidade para geração, transmissão, e suprimento aos consumidores definidos de forma clara e estabelecendo relatórios de acompanhamento do desempenho da confiabilidade

(c) definição clara da assignação da responsabilidade dos agentes pelo cumprimento dos critérios de confiabilidade;

(d) uma agência para receber relatórios e acompanhar o desempenho da confiabilidade, com capacidade para recomendar ao regulador aplicação de penalidades ao agente;

(e) um pool operativo que, além do controle do despacho e operação dos sistema, efetue o planejamento da expansão da geração e transmissão, bem como o planejamento operacional.

(f) o pool também responsável por gerir o mercado atacadista;

(g) na distribuição, implantados dois mercados: (i) regulado para consumidores pequenos; e (ii) desregulado para consumidores de maior porte

(g) a geração distribuída seguindo procedimentos adequados, permitindo a instalação de painéis residenciais porém com regras definidas. E, permitir que Geradores Independentes de fontes renováveis possam suprir residências porém dentro de regras predefinidas incluindo responsabilidade de confiabilidade do sistema.

Armando Ribeiro de Araújo é Engenheiro Eletricista com Mestrado e Doutorado, foi Diretor de Procurement Policy do Banco Mundial, Secretário Nacional de Energia do Ministério de Infraestrutura, Presidente da Eletronorte, Membro do Conselho de Administração de Itaipu, Furnas, Chesf e Eletronorte.