Deplorável espetáculo deram os Estados Unidos ao mundo, e ainda estão dando, com repercussão e condenação generalizada, com o espetáculo das eleições e suas consequências para a democracia que ninguém pode avaliar ainda sua profundidade.
O sistema eleitoral americano está defasado no tempo e tem hoje procedimentos que não entram na cabeça de ninguém que desconheça a história americana. É um legado da história, e os americanos não desejam perder essa perspectiva. Esse sistema partiu de longo processo de construção, já que o país era uma Confederação com unidades independentes, que abdicaram de sua independência para juntar-se em uma Federação, sem perder essa mesma independência. Então, para aderirem, fizeram exigências que foram consolidadas na Constituição, aprovada em 1789, mesmo ano da Revolução Francesa. Daí surgiram os votos estaduais — delegados — e, para evitar que fossem tragados pelo voto geral, criaram o Colégio Eleitoral.
Com o tempo, evidentemente, essas circunstâncias desapareceram, mas na verdade é a Constituição mais antiga do mundo, que funciona admiravelmente há 239 anos.
Foi feita na Filadélfia, por 55 homens, sob a presidência de Washington — e não podiam dizer nada do que discutiam ali nem a suas famílias. Eram muito religiosos e muitas vezes interrompiam os trabalhos, quando o assunto era de difícil consenso, para pedir a Deus que os iluminasse.
Partiu-se de projetos estaduais, e hoje se sabe como foi construída. Renovam-se a cada ano os livros sobre o processo constituinte americano, principalmente a partir das anotações de Madison, em que se pode ver quase todas as ideias fundamentais que fizeram o texto final.
A democracia exemplar, que se baseou na vontade do povo — na expressão de Lincoln, “do povo, para o povo e pelo povo” —, foi uma ideia e um sistema tão poderoso que se difundiu e foi capaz de construir o maior país do mundo, a maior economia e assegurar a defesa da liberdade e dos direitos humanos como bandeira fundamental da Humanidade.
Agora, surge esse Trump e, em pleno século XXI, resolve desmoralizar seu país, ameaçando fazer aquilo que nem os caudilhos da América do Sul, nem os sobas da África fazem mais. Ameaça não respeitar o Estado de Direito, contesta as eleições, faz acusação de fraude na contagem dos votos, expõe seu país à vergonha internacional e incentiva os ditadores e a força a voltarem a fazer parte do processo de escolha do governo nos países.
Quem contesta o regime não são seus inimigos, mas o próprio presidente.
É claro que mesmo nos Estados Unidos muito se discute sobre o processo eleitoral arcaico. Basta ver que Biden tem quatro milhões de votos à frente — Hillary obteve três milhões; Biden, quatro! — e Trump tem a cara de pau de dizer que ganhou e foi roubado.
Numa análise simplista isso choca e é um absurdo, mas por outro lado mostra a força das instituições, com o povo comemorando a vitória de Biden e, na alternância do poder, depositam as esperanças de um mundo melhor.
Essa nação exemplar, sociedade complexa, cheia de grandes defeitos, cumpre a marcha de sua formação. E tem dado certo.
Só deu errado ao produzir um Trump, que jamais teve a noção da responsabilidade que pesa sobre seu país perante o mundo, como exemplo, como guia e como certeza de que a democracia, como dizia Churchill, “é o pior regime, mas não existe outro melhor”. Trump já é o passado, e Biden nos traz a esperança da retomada gloriosa do “sonho americano”. É um homem equilibrado, respeitado, bem composto. Esperamos que ele encerre a série de conflitos mundiais que o topete de seu antecessor espalhou pela comunidade internacional.