A realização deste Seminário sobre Roberto Campos é mais do que oportuna. Estamos no início de um governo que nega a importância da privatização, silencia sobre invasões de propriedades e quer submeter a vigilância da moeda às forças da política.
Estamos no início de um governo que pretende acabar com as desigualdades, ampliando cada vez mais as medidas assistencialistas na crença que isso promoverá a geração de emprego e renda para os assistidos. É um governo que não se importa em transformar um país de trabalhadores em um país de assistidos. [1]
Estamos diante de um governo, cujo partido, votou contra o texto final da Constituição (1988), contra o Plano Real (1998), contra o cambio flexível (1999), contra a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000) e contra a autonomia do Banco Central (2021).
O Partido dos Trabalhadores pode ser acusado de tudo, menos de incoerência. Desde a sua fundação em 1980, o PT acredita que o Estado é o melhor investidor e solucionador das desigualdades sociais como se o Estado fosse uma entidade benevolente e capaz de tudo.
Mas, para fazer justiça, a prática de políticas públicas equivocadas vem de longe. O Brasil é um celeiro de leis que deslavadamente promovem e reforçam a desigualdade. Cito aqui alguns exemplos, começando pelos mais antigos.
Os bancários são uma das categorias profissionais que tem salários bastante razoáveis quando comparados com o restante da força de trabalho do Brasil. Pois bem, por força do Decreto 23.322 de 1933, acolhido pelo artigo 224 da CLT de 1943, esses profissionais têm o privilégio de trabalhar apenas 6 horas por dia e 30 horas por semana enquanto a maior parte dos brasileiros trabalha 8 horas diárias e 44 semanais.
Essa desigualdade é garantida por lei. São leis desse tipo que promovem a desigualdade. Esse não é o único caso.
Por força da Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar 35/1979), um juiz condenado em todas as instâncias por corrupção e má conduta é “apenado” com uma régia aposentadoria até o fim da vida com salário integral. Um empregado que é despedido por justa causa recebe apenas as verbas rescisórias. A CLT não lhe dá o direito sequer ao seguro desemprego. Está aí: desigualdade criada por leis acintosas para a maioria dos brasileiros. Um verdadeiro deboche. Não temos vergonha de proteger os mais fortes e desproteger os mais fracos.
Como dizia Roberto Campos, “o bem que o Estado pode fazer é limitado; o mal é infinito”.
Faço aqui um parêntesis antes de prosseguir com os exemplos de desigualdades criadas por lei para examinar a raiz desse problema.
Acemoglu e Robinson, [2] com base em larga comprovação empírica mostram que as nações fracassam por força de leis que eles chamam de “extrativistas”. Leis extrativistas são as que enriquecem os grupos mais fortes à custa da extração de recursos dos mais fracos. Daí a expressão extrativista, que poderíamos chamar também de leis predatórias, injustas, perversas, numa palavra, desumanas.
Essas leis inundam os países onde os grupos de pressão e os parlamentares conseguem aprovar matérias importantes para si mesmo, pouco ligando para a sua malignidade.
O Brasil está repleto dessas leis. Muitas delas atendem grupos muito pequenos, mas bastante poderosos, como, por exemplo, os que conseguem concessões de radio e TV sem pagar um centavo aos cofres públicos.
Como diz Fernando Holanda Barbosa, “na economia de privilégios, o apetite dos grupos [extrativistas] por recursos públicos não tem limites e transborda para o déficit público… O discurso do predador social esconde suas verdadeiras intenções e sempre justifica a sua ação alegando o crescimento econômico e a justiça social.” [3]
Lembro aqui o Decreto 7.755 de 2012, assinado pela Presidente Dilma Rousseff que criou a Empresa de Planejamento e Logística (EPL) para implantar no Brasil o trem bala. O projeto foi abandonado há tempos, mas a empresa sobrevive até hoje, tendo consumido mais de meio bilhão de reais.
Como dizia Roberto Campos “Uma vez criada, as entidades burocráticas, como a matéria de Lavoisier, jamais acabam, apenas se transformam.”
Volto aos exemplos de leis que criam desigualdades. A Constituição de 1988 estabeleceu que os trabalhadores brasileiros têm direito a 30 dias de férias por ano enquanto os juízes e promotores desfrutam de 60 dias mais 15 de recesso, por força da já citada Lei Complementar 35/1979.
Quando me dizem que as instituições no Brasil funcionam, pergunto: funcionam para quem?
Citarei agora o caso recente da promulgação da Emenda Constitucional 103/2019. Essa Emenda teve o desplante de manter o valor da aposentadoria dos servidores públicos, em média, dez vezes maior do que a dos trabalhadores do setor privado.
Mais uma vez lembro o saudoso Roberto campos quando dizia: “Nossa Constituição é uma mistura de utopias com muitas maldades”. Vejam este outro exemplo.
Pela Lei 14.020/2021, os empregados celetistas podem sofrer cortes de jornada e salário e até a suspensão do contrato de trabalho em tempos de dificuldades. Pela Constituição Federal, isso não se aplica aos servidores públicos por pior que seja a situação do Erário. Assim reafirmou o Supremo Tribunal Federal no exame da ADI 2.238, durante plena pandemia da Covid-19, em 25 de junho de 2020. [4]
Cito ainda a regra constitucional que garante ensino superior gratuito nas universidades públicas para os jovens. Todos sabem que os estudantes das famílias mais abastadas frequentam escolas médias caríssimas para se prepararem para os vestibulares nas melhores universidades. Uma vez aprovados, nada têm de pagar, remetendo, indiretamente, os estudantes pobres para faculdades privadas de baixa qualidade e alta mensalidade.
São muitos os países em que os alunos abonados pagam por seus estudos ao mesmo tempo em que as escolas dão bolsas aos mais pobres. Entre nós, a Carta Magna garante a aprofunda as desigualdades.
Com seu espírito crítico, Roberto Campos classificava a Constituição de 1988 como “saudavelmente libertária no político, cruelmente liberticida no econômico, comoventemente utópica no social”.
Por que isso ocorre no Brasil? Por que tantas leis extrativistas para proteger os mais fortes? Afinal, de onde vem tanta desigualdade?
Essa pergunta foi feita a Jean-Jacques Rousseau em 1762. Ele respondeu: “quando me perguntam como puderam os homens chegar a tanta desigualdade, eu não sei responder. Mas, quando me perguntam como pôde tamanha desigualdade ser legitimada, isso eu sei responder… A legitimação vem das convenções criadas pelos próprios homens – as leis. [5]
Por trás de tanta desigualdade estão as promessas de caráter populista de direita e de esquerda que visam simplesmente fortalecer a base eleitoral dos políticos que prometem aos eleitores o que não pode ser entregue pelo Estado. Assim é a promessa de acabar com a fome no Brasil, de garantir uma redução de preços e juros por lei ou cortar impostos e aumentar salários com uma canetada.
O populismo tornou-se elemento de preocupação nas ultimas décadas devido a sua incidência também nos países desenvolvidos. Em todos eles, líderes populistas são legitimamente eleitos pela via democrática, mas, no exercício do poder laboram para corroer a própria democracia. Moisés Naím, em livro recente, registra os estragos do populismo em mais de 20 países, inclusive Brasil. [6]
O grande problema dos políticos populistas é a sua noção equivocada de que os direitos não têm custos. Eles insistem em ignorar que a falta de recursos impede a concretização de muitos sonhos. Como dizem Holmes e Sunstein, os direitos têm um custo econômico e também um custo social. [7] O artigo 7º da Constituição de 1988 enumera um conjunto de direitos no campo do trabalho que, devido ao seu alto custo, são frequentemente violados. Basta dizer que os encargos sociais gerados por aqueles direitos somam 102% do salário nominal. Ou seja, para a empresa que contrata um profissional por R$ 3.000 mensais o custo efetivo é de mais de R$ 6.000.
Não é a toda que pequenas e médias empresas empregam tanto na informalidade, o que é péssimo para o trabalhador, perigoso para o empresário e devastador para as finanças públicas. É um bom exemplo de um excesso de proteção que vira desproteção.
Lutar contra o populismo que não mede dificuldades para prometer o impossível foi a pregação permanente de Roberto Campos. E deve ser continuada por todos se quisermos construir uma boa democracia.
James Madison dizia que a democracia é um processo a ser trabalhado dia a dia. Ela só vai amadurecer na medida em que os governados apreendem a respeitar os governantes, os governantes apreendem a respeitar os governados e, sobretudo, os governados aprendem a controlar os governantes.
Ou seja, precisamos aumentar a nossa participação em favor da aprovação de politicas públicas responsáveis. Para tanto, temos de manter contato permanente com os Poderes Públicos e os formadores de opinião. Não podemos nos furtar a essa importante missão. Não temos desculpas para não agir. Mesmo porque nos dias atuais isso foi enormemente facilitado pelas novas tecnologias, em especial, pela gigantesca capacidade de comunicação proporcionada pela Internet. Portanto, aproveitemos essa força para acelerar mudanças sadias e melhorar a nossa infante democracia! Temos de relembrar a cada dia dos ensinamentos de Roberto Campos.
[1] Paulo Rabello de Castro, Escândalo: de trabalhadores a assistidos, Belo Horizonte: Estado de Minas, 03/12/2022.
[2] Daron Acemoglu e James A. Robinson, Por que as nações fracassam, Rio de Janeiro: Elsevier-Campos Editora, 2012.
[3] Fernando Holanda Barbosa, O flagelo da economia de privilégios: Brasil 1947-2020”, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2021.
[4] A Constituição Federal diz, no seu art. 37, XV, que “o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis”
[5] (Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a desigualdade, in Obras, Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1958).
[6] Moisés Naím, A Vingança do Poder, São Paulo: Editoras Cultrix, 2023.
[7] Stephen Holmes e Cass R. Sunstein, O custo dos direitos, São Paulo: Editora Martins Fontes, 2020.