Há mais de um mês que o país discute cenários, responsabilidades e a aprovação de um orçamento que ainda não foi apresentado. Que ainda não existe. Mas se a votação fosse hoje, o orçamento chumbaria e teríamos novas eleições em Portugal. As terceiras eleições em apenas três anos.
É uma novela que enche páginas de jornais e horas de televisão. Mas é mais importante do que parece. Mas não é uma birra ou um teatro. A eventual recusa do Partido Socialista em viabilizar o orçamento pode ser muito mais importante do que parece.
É cada vez mais raro discutir, explicitamente, ideologia. Ou justificar uma determinada posição com ideologia. Mas a ideologia está lá. Nas propostas e na forma como julgamos as propostas dos outros.
Quando foram apresentadas as linhas gerais do orçamento o PS cedo anunciou que votaria contra por causa de duas medidas do programa da AD: a redução de impostos para empresas (IRC) e a redução de impostos para os jovens (IRS jovem). Pode parecer estranho que um partido recuse reduções de impostos – que são sempre populares. Mas a explicação do líder dos socialistas, Pedro Nuno Santos, é profundamente doutrinária. O PS é contra a redução dos impostos sobre as empresas porque quer que essa receita sirva para apoiar empresas que o Estado considere estratégicas. Também é contra a redução do IRS nos jovens porque quer que essa receita seja utilizada para aumentar pensões de velhice. Este último tema é particularmente importante. Portugal tem um problema de retenção de talento. Segundo dados recentes 30% dos jovens portugueses trabalham no estrangeiro. E são jovens altamente qualificados: médicos, enfermeiros, gestores, programadores, engenheiros…
Pedro Nuno Santos prefere manter a tributação sobre as empresas para depois o Estado investir em empresas. Prefere manter a tributação sobre os jovens, para depois o Estado aumentar as pensões de velhice. Não são posições técnicas ou diferença ligeiras. São posições ideológicas que verbalizam a viragem acentuada à esquerda do Partido Socialista.
O Partido Socialista sempre foi um partido moderado e de centro-esquerda. Defensores da livre iniciativa no mercado. Mais próximo dos sociais-democratas europeus que dos socialistas latino-americanos. Mas tudo mudou. O PS tem encostado à esquerda e absorvido eleitorado que antes votava nos comunistas (PCP) e nos trotskistas (Bloco de Esquerda). E não é novo. Pedro Nuno Santos era um ministro, assumidamente, com políticas de esquerda. E sabe que este eleitorado nunca o perdoará se ele viabilizar o orçamento do estado. Este é o eleitorado que Pedro Nuno Santos quer conquistar e é a razão eleitoral para tanta incerteza. Quer ir para a esquerda, mas não pode deixar o centro vazio e à mercê do governo. E o governo quer ir para o centro, mas não pode deixar a direita vazia.
Ainda faltam quase dois meses para a votação do orçamento, mas discute-se muito mais do que o documento ou mesmo a existência de novas eleições. Discute-se a (re)arrumação do espaço político português. A ver vamos como fica.