O manezinho da ilha, como são chamados os nativos da ilha de Santa Catarina, usa uma expressão especial, ó-lhó-lhó! (olha só!), quando se surpreende com alguma coisa, com algo inacreditável. Ele tem motivos.

Nos últimos 20 anos o setor elétrico brasileiro (SEB) adquiriu uma característica que precisa ser estudada. Mesmo as ótimas notícias têm efeitos negativos. Como qualquer organismo, no fundo uma máquina construída para sobreviver, o SEB tem implícita uma importante fonte de ineficiência, que suga seu desempenho. Para identificá-la, e avaliar sua evolução, é necessário ir atrás do “gene” ou da porção do DNA que replica a ineficiência.

Não sei se você sabe, mas entre agosto e outubro de 2022 caiu muito o preço (da componente geração) no mercado livre de eletricidade. Excelente notícia. Foi de R$ 180/MWh para R$ 145/MWh. Em fevereiro de 2023 passou para R$ 100/MWh, mas é possível, em abril, adquirir energia por R$ 90/MWh, a depender da duração do contrato. A esses valores devem ser adicionados os demais custos da rede (transmissão, distribuição, subsídios e encargos), que representam cerca de R$ 250/MWh. Assim, os consumidores que possuem a pulseirinha VIP do mercado livre podem comprar energia por, no máximo, R$ 350/MWh. E ficará assim por pelo menos um par de anos.

É que, desde dezembro de 2022, é nulo o custo marginal de geração, ou o custo adicional para atender a um kWh a mais de consumo. Toda carga pode ser suprida com a capacidade instalada atual e sem a necessidade de acionar termelétricas – além das inflexíveis. Mais: durante este e o próximo ano são enormes as chances de a geração ser ainda mais subutilizada, tornando-a mais ineficiente.

O lado bom é que o preço do mercado de curto prazo, ou mercado spot, não se afastará do seu piso. O lado ruim é que tal mercado só pode ser acessado pelos consumidores livres, que não é o seu nem o meu caso – cativos da distribuidora. Esse piso, desde janeiro, é R$ 69/MWh, mas há uma decisão judicial que determina sua redução para R$ 15/MWh.

Na outra ponta, o consumidor cativo paga, em média, R$ 780/MWh (e mais de R$ 1.000/MWh em determinadas concessões, como as que têm índices elevados furtos), e pagará mais ainda nos próximos dois anos, mesmo sendo nulo o custo marginal de produzir um MWh. O consumidor cativo, em relação aos que estão no mercado livre, paga, em 2023, mais que o dobro. Um (vergonhoso) recorde.

Veja que interessante: em 2021, quando o custo de geração ultrapassou de R$ 2.500/MWh, em virtude do acionamento de termelétricas caríssimas, quase que movidas a “Chanel nº 5”, o consumidor cativo foi chamado a pagar uma conta de R$ 45 bilhões. Agora, na sobra, ele pagará novamente e não se beneficiará do baixíssimo preço no mercado livre.

Em outubro de 2021, ainda por conta da severa escassez de água, o governo organizou um Processo de Contratação Simplificado (PCS). Ter sido em outubro já indicaria um grave erro, pois era véspera do início do período de chuvas. Resultado: com o leilão realizado, adquiriu-se um volume insignificante de energia, mas que custará R$ 39 bilhões para um contrato de menos de cinco anos. Ou seja, o PCS custou muito caro e não resolveria o problema.

Só que, se fosse contratado quatro vezes mais do que foi, para, aí sim, resolver o problema (que já não existia em razão do enchimento dos reservatórios a partir de dezembro de 2021), custaria R$ 160 bilhões, um valor impagável. A conta de luz, no final, mais que dobraria. Mesmo sendo assim tão óbvio, ninguém quis pensar em analisar a “sanidade” do PCS. Deu no que deu.

Mas por que, ainda assim, o PCS foi adiante? Porque 2022 seria um ano eleitoral. Era impensável um racionamento. Nesse caso, a lógica é a do custo o que custar, como em 2013 com Medida Provisória 579. Fato semelhante aconteceu com as termelétricas inflexíveis da lei da Eletrobras e tantas outras normas ao longo de 20 anos, quando prevaleceu a cultura do oportunismo, um parasita da governança regulatória, o mesmo que um “parasita elétrico”.

Richard Dawkins, na edição de 1976 de “O gene egoísta”, sublinhou que o humano inovou no processo evolutivo. Os memes, lócus da transmissão cultural, são replicados de forma semelhante aos genes. E nós somos os veículos dos memes, dando-lhes vida, e não apenas metaforicamente. A cultura do oportunismo, ou parasita elétrico, formada ano após ano, e que vem em desprezo do consumidor e em benefício econômico e político de poucos, é o meme do setor elétrico.

Em outras palavras, o SEB é um organismo construído tal como uma máquina de gene, mas regulado e conduzido como uma máquina de memes, que prioriza seus criadores – dos memes.

O-lhó-lhó! Tás-tolo! (ficou loco!), diria o manezinho da ilha.

Não posso deixar de falar da Deputada Thainara Faria, vítima (inúmeras vezes num curto intervalo de tempo) de racismo na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Suponha que um jovem negro, ao perceber um branco ser assaltado na Faria Lima, vai em socorro, toma a arma e rende o assaltante, também um homem branco. A Polícia chega imediatamente. Quem você acha que levaria bala? E se, no instante do assalto, estivesse a passar um Juiz de Direito. A quem ele, se corajoso, daria voz de prisão? E você, se branco, o que faria? Responda a essas questões e saberás porquê a segurança da Alesp não viu na Thainara, uma jovem negra, uma parlamentar.

Entenderá também a razão de semanas antes desse episódio repugnante, a Suprema Corte ter começado a julgar a validade das (também repugnantes) provas policiais obtidas sob premissas racistas. Chamou a atenção o argumento da Procuradoria Geral da República (PGR): se o racismo for utilizado para anular as provas, todos (os negros) serão soltos. Vale o racismo, desde que seja como fundamento para prender, espancar e atirar no negro. O racismo é o parasita do hipócrita.