Tenho lembrado, com renovada admiração, dos imigrantes alemães e italianos que vieram para o Rio Grande do Sul. Os primeiros, a partir de 1824, se instalaram às margens do Rio dos Sinos, que Viana Moog viria a denominar de “rio que imita o Reno”. Os segundos, em 1875 ocuparam a Serra Gaúcha na região chamada “Campos dos Bugres”, hoje a pujante Caxias do Sul com quase meio milhão de habitantes. Uns e outros, graças à sua cultura de trabalho e seus valores, deram origem às mais prósperas regiões do meu estado. Qual seria nossa realidade hoje se, por ordem imperial, em algum momento, todos tivessem sido obrigados a entregar suas terras à inatividade dos nativos?
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Decorreram 14 anos desde certo fim de jornada do dia 19 de março de 2009. O STF encerrara longa deliberação sobre a Petição 3388. Ali, como diria Marx, o que era sólido desmanchava no ar. O que por muito tempo fora deixava de ser. As terras da Reserva Raposa Serra do Sol se tornavam contínuas. E ponto final.
Bem longe dos olhos e do coração, no norte do país, cidadãos brasileiros recebiam, viva voz e viva imagem, a notícia de sua expulsão imediata, emitida entre bocejos pelos senhores da Corte. Ao lixo os títulos de propriedade legítimos e os longos anos de árduo trabalho familiar naquele chão. Ao lixo suas lavouras plantadas e seus rebanhos no pasto. Ao lixo a brilhante aula de Historiologia e de Direito ministrada no voto do ministro Marco Aurélio a seus desatentos discípulos. Ponham-se na rua, todos, com suas famílias, moradias, máquinas e bens! A Corte decidira e, visivelmente, estava cansada.
Trabalho árduo, o da Corte! Moleza é plantar arroz no trópico e discutir historiologia e sociologia com militantes saturados de ideologia ou com padres que não evangelizam índios e que desevangelizam não-índios. Com essas duas categorias – índios e não-índios – se travara, ali, a luta de classes tropical!
Quando as luzes estavam por apagar, ocorreu a alguém indagar sobre a execução da ordem. Qual o prazo? Quando deveria ocorrer o êxodo dos não-índios? Enquanto advogados se comprimiam em torno da tribuna, a resposta veio consensual: a Corte não dava prazos; emitia ordens para execução imediata. Essas questões da arraia miúda causam fadiga às Cortes. Vamos para casa, pessoal! E os capinhas recuaram cadeiras para saída dos ministros.
Ao longo daquelas horas, eu senti o Brasil deixando de ser uma só nação e um só povo para se tornar um amontoado cujas questões essenciais estavam entregues a viventes de uma realidade paralela, com um conjunto de narrativas pré-fabricadas, tamanho único. O Brasil, como tal, não se alinhava entre suas preocupações. A decisão foi um desastre para os índios, que, hoje, passam fome sobre uma área que supera a de vários estados da Região Nordeste, e para os não-índios que perderam seu chão.
Agora, manhã de 21 de setembro de 2023, leio que o “STF está formando maioria”, já em 5 x 2, para derrubar o marco temporal referido à data da promulgação da Constituição, antevendo-se a goleada pela qual a esquerda anseia. É inimaginável a sequência de litígios determinada por uma simples mudança, não na Constituição, mas na sua interpretação segundo o bem querer ideológico dos senhores ministros. Diz a Carta de 1988:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Parece tão claro, não é mesmo? As expressões “são reconhecidos” e “tradicionalmente ocupam” não admitem leitura fora do tempo presente. É forçar a barra entender desse artigo algo como “Serão reconhecidos” e “tradicionalmente ocupavam”. A simples noção da amplitude que isso adquirirá espanta toda sua admissibilidade.
A atual composição do STF tem procedência conhecida e vem atuando conforme dela se poderia esperar. Não é o Supremo nem as ONGs amazônicas que surpreendem, mas os senadores que com tudo concordam e o silêncio do jornalismo militante.
Se toda essa sabedoria jurídica tivesse aflorado há um século, o que seria o Brasil? Uma revolução transcorre diante de nossos olhos e quem não gostar coma brioche.