O papel da contação de histórias no contexto hospitalar

A busca de um atendimento de saúde mais humanizado vai ao encontro das melhores práticas adotadas nos países mais avançados. O Brasil não é exceção à regra e, nesse contexto, está cada vez mais comprovada a importância da contação de histórias e do atendimento pedagógico hospitalar para a qualidade da assistência à saúde oferecida a crianças e jovens internados em hospitais do País.

Além de proporcionar acolhimento e atenuar os desconfortos relacionados à internação hospitalar, a contação de histórias pode ser importante ferramenta de despertar para os estudos. Por sua vez, a disponibilidade do atendimento pedagógico hospitalar (classes hospitalares) permite a pessoas que, por agravos à saúde, encontram-se impossibilitadas de frequentar a escola temporária ou definitivamente, possam dar continuidade aos estudos ou, até mesmo, ter o primeiro acesso à educação.

O contato com livros e histórias abre um espaço de comunicação e convivência, com criação de vínculos e aproximação da imaginação, por meio de técnicas de intervenção lúdica, que permitem correlacionar o real com o fictício. Além disso, promove a autoconexão pelo contato com as próprias emoções, estimula o hábito da leitura e o desenvolvimento da criatividade. Ou seja, mais do que uma atividade lúdica, a contação traz benefício educacional para crianças internadas, pois atua no desenvolvimento da inteligência, criatividade e socialização. Esse processo é ainda mais importante quando muitos consideram que o ambiente hospitalar é inóspito e não faz bem a maioria das pessoas.

A oferta de atividades recreativas no ambiente de internação hospitalar é útil para o desenvolvimento de habilidades cognitivas e psicoemocionais, mas não substitui a necessidade de atenção pedagógico-educacional, cuja intervenção é mais específica e individualizada, focada na construção do desenvolvimento psíquico.

O atendimento pedagógico hospitalar pode contribuir para a qualidade de vida dessas crianças e jovens à medida que fomenta sua autonomia, mesmo diante de um contexto de privação do convívio social, como o cenário de uma internação. A partir de movimentos internacionais, a implantação de uma política de inclusão de alunos com necessidades especiais no sistema regular de ensino, denominado classe hospitalar, tornou-se um compromisso universal.

No Brasil, esse atendimento começou por volta de 1931, na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Entretanto, apenas em 1950 oficializou-se a primeira classe hospitalar no Hospital Municipal Jesus. Apesar dos primeiros passos em 1950, o início de um leve crescimento desta importante modalidade de atenção hospitalar só se deu, de fato, com os constantes movimentos dos Direitos das Crianças e Adolescentes. A Constituição Federal do Brasil, de 5 de outubro de 1988, além de estabelecer o direito de todos à saúde, também o faz em relação à educação. Portanto, todos, sem exceção, têm direito à educação.

O relato do caso a seguir representa à reflexão sobre a importância de estímulos que possibilitam a melhora da qualidade de vida e bem-estar para todas as crianças e adolescentes internados. Além disso, o objetivo é oferecer subsídios que possam contribuir para o reconhecimento da relevância da contação de histórias e do atendimento pedagógico hospitalar no cenário educacional brasileiro.

Lucas Gabriel Barbosa Santos tinha um ano e sete meses de idade quando foi diagnosticado com a incurável e degenerativa doença de Pompe, também conhecida como glicogenose tipo II. Trata-se de um distúrbio neuromuscular raro, de origem genética, caracterizado por fraqueza muscular progressiva e alterações respiratórias que, em estágios avançados, impossibilita qualquer movimento. A enfermidade faria com que ele ficasse internado por 19 anos, num leito de hospital em São Paulo.

Aos 2 anos e 6 meses, a doença de Lucas evolui com sinais de insuficiência respiratórias, exigindo o uso permanente de ventilação mecânica. A despeito da limitação de mobilidade imposta por esta condição, ele sempre recebeu estímulos das mais variadas formas, incluindo a contação de histórias e participação em brincadeiras propostas por voluntárias contadoras de histórias da Associação Viva e Deixe Viver, que o visitavam diariamente no hospital. Estimulado pelas histórias que ouvia frequentemente, apresentou interesse crescente pela leitura. Lucas foi alfabetizado pelas próprias contadoras, o que mudou completamente sua forma de ver o mundo, bem como de se relacionar com as pessoas e sua aceitação sobre a própria condição de saúde. E como ele mesmo dizia: “Meu corpo físico não funciona, mas a minha cabeça está preservada. E a única coisa que a gente vai levar daqui é o conhecimento”.

O grupo Nariz de Palhaço atuando no Hospital Regional de Planaltina, no DF.

Após anos de piora progressiva do comprometimento muscular, aos 19 anos, ele estava totalmente dependente, restrito ao leito hospitalar. Apesar da complexidade clínica e todas as limitações impostas pela doença, Lucas tinha plena capacidade cognitiva: lia diariamente, escrevia peças de teatro e mantinha relacionamento regular com muitas pessoas, tanto no hospital quanto por meio de redes sociais na internet. Ele também atualizava frequentemente seu blog e um canal de comunicação no YouTube. Tornou-se um jovem ocupado não só com as redes sociais, mas também com seus planos de tornar-se físico, como seu ídolo, Stephen Hawking.

Diante de seu interesse pelos estudos e fascinação pela Física, alunos do Curso de Medicina da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, por meio de um projeto chamado “Retaguarda do Aprender”, resolveram lecionar voluntariamente para ele. A meta dessa jornada era a obtenção do seu certificado de conclusão do Ensino Fundamental. Para tanto, estudou por quatro meses ininterruptos todo o conteúdo que uma criança estuda em oito anos de Ensino Fundamental, visando prestar o Exame Nacional de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), avaliação voluntária e gratuita oferecida pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), destinado a jovens e adultos que não tiveram oportunidade de concluir os Ensinos Fundamental e Médio na idade apropriada. O Encceja é considerado o segundo maior exame, em número de inscritos, depois do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

Uma vez que teve oportunidade de estudar com professores da classe hospitalar, atuantes na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, Lucas estava habilitado a pleitear a certificação de conclusão do Ensino Fundamental aos 18 anos.

A prova foi realizada em nove horas e, depois, Lucas aguardou seis meses até receber a notícia da aprovação. Ele faleceu em julho de 2019 e, antes disso, cedeu sua imagem para um abaixo assinado em favor das classes hospitalares, que reuniu mais de 120 mil assinaturas.

Diferente da maioria de crianças e jovens impedidos de estudar formalmente, temporária ou definitivamente, devido a doenças crônicas, a história dele mostra como a contação de histórias pode ser um gatilho para despertar o interesse por aprender, sendo ferramenta de suporte à educação inclusiva.

Regulamentadas pelo Ministério da Educação (MEC), as classes hospitalares estão ligadas a escolas da rede estadual e municipal, que fornecem os professores. Funcionam em hospitais e casas de apoio para garantir o direito à educação de crianças impossibilitadas de frequentar a rede de ensino regular por motivo de saúde.

Os hospitais têm a responsabilidade de ceder espaços físicos aos professores para a atuação pedagógico-educacional, enquanto à Secretaria da Educação compete atender solicitações de hospitais para o serviço de atendimento pedagógico hospitalar e domiciliar, contratar e capacitar professores e prover recursos financeiros e materiais para os referidos atendimentos.

No entanto, a maioria dos hospitais do País não possui espaços físicos apropriados para as classes hospitalares e, tampouco, recebe recursos financeiros e materiais para este fim. E, embora a escola seja um fator externo à patologia, é por meio das atividades da classe hospitalar que a criança manterá vínculo com seu mundo exterior, buscando recuperar a socialização por um processo de inclusão, dando continuidade à aprendizagem.

Existe uma questão ímpar entre educação e saúde, ou seja, ambos têm o mesmo propósito de atendimento, que é proporcionar bem-estar físico, mental e social. Porém, há ainda que se levar em conta a necessidade de conciliação de interesses da saúde e da educação. Quando não conciliados estes interesses se tornam seriamente conflitantes e comprometedores de direitos básicos e do futuro das crianças e adolescentes envolvidos.

Apesar da constituição brasileira afirmar o direito universal à educação e dos progressos relacionados à educação inclusiva para crianças hospitalizadas, o acesso à pedagogia hospitalar ainda é limitado. Tal fato restringe essas crianças de exercerem plenamente sua cidadania. Na prática, poucas são as crianças que têm este direito atendido, pois, ainda, um número pequeno de hospitais no Brasil conta com classes hospitalares.

Luciana Bernardo é diretora executiva da Associação Viva e Deixe Viver.