Três sentimentos moveram Darcy politicamente. O primeiro foi sua própria condição de mineiridade, ou melhor, sem querer ofender os mineiros, a luta por transcender essa condição. No caso, a mineiridade é um jeito político de ser em que a cultura básica do apego à parentela, da ação do compadrio, da amizade cultivada no interesse mútuo e do patronalismo e clientelismo condicionam os agentes de uma forma inelutável. Tais condicionamentos fazem parte da cultura política brasileira, sem dúvida nenhuma, e se manifesta vividamente em outras formações político-culturais brasileiras, a exemplo do Nordeste, mas em Minas ela é elevada a um arte de ser. Eis porque de Minas têm saído tão hábeis políticos no Brasil, alguns dos quais foram homens de ação. Eis porque, em consequência do paroquialismo, muitos políticos mineiros são nacionalistas.
Tendo nascido no segmento da elite tradicional brasileira, Darcy buscou transcender sua mineiridade da mesma forma que tentou transcender sua condição de classe. Em ambos os casos a saída que viu foi a opção política pela esquerda. Darcy costumava dizer que nos tempos da Segunda Guerra ele se viu balançar entre o comunismo e o integralismo, entre um internacionalismo revolucionário e um nacionalismo provinciano, e escolheu ser comunista. Tal escolha o conectou com o mundo, com os problemas de todos os homens, para os quais ele, como todo comunista à época, se sentia responsável. Ao mesmo tempo o conectou com as classes oprimidas brasileiras, com o povo em geral, cuja cultura e visão de mundo ele intentou entender a vida inteira. Dadas as abissais diferenças políticas e culturais de classe existentes no Brasil, cabia ao político que não vem do povo ao menos buscar se identificar com o povo, além de, quando no serviço público, trabalhar com honestidade e dedicação. Este último aspecto, deve-se dizer, fazia parte dos princípios de uma boa parte da elite patricial brasileira desde a incepção da república positivista, algo que foi destroçado de vez pela ditadura militar de 1964 e pelo neoliberalismo. Nos muitos anos em que foi ministro e secretário de governo, bem como na direção de diversas instituições públicas, jamais Darcy cometeu um deslize de ordem ética ou administrativa.
O terceiro leitmotiv político de Darcy nasceu, qual estalo de Vieira, no dia em que Getúlio se suicidou. Naquele momento, Darcy se dedicava à sua carreira de intelectual acadêmico, licenciado do PCB, embora mantendo o pensamento e desejo de ação na direção de uma utopia revolucionária. A morte trágica de Getúlio e a aclamação popular que lhe sucedeu fizeram com que Darcy se desse conta de que o que se vinha fazendo no Brasil desde a Revolução de 30 tinha algo de genuinamente revolucionário e que Getúlio e seu nacionalismo é que eram os responsáveis. Daí se deu sua passagem para ativista reformista, negociador, sempre mantendo uma fidelidade a princípios da forma mais radical possível.
Entretanto, há que se comprender que o nacionalismo de Darcy não é exclusivamente de ordem política, uma estratégia para o poder. Além de sua mineiridade inata, muito antes de virar nacionalista politicamente, isto é, de se aliar aos próceres e herdeiros da Revolução de 30, Darcy, no trabalho de antropólogo que vive entre índios e caboclos, já vinha sentindo que havia algo de diferente na condição do povo brasileiro. As heranças indígena e africana, sob a égide lusitana, se amalgamaram em uma cultura multifacetada mas integral. Alienada da condição de agente político para si, o povo brasileiro sobrevivia à margem da história, porém nunca tão longe dela e sempre querendo entrar nela. Aqui não havia um feudalismo a ser quebrado, mas um povo novo, nascido das contradições do mercantilismo salvacionista português, pronto para entrar na história, não necessariamente por uma via européia-capitalista, mas por um atalho político-cultural a ser construído.
Assim, antes de político, o nacionalismo de Darcy é cultural. No decorrer de sua vida Darcy se esmerou em tentar equilibrar esses dois pesos de seu nacionalismo. Havia, antes de tudo, um forte sentimento de amor pelo Brasil, que Darcy considerava o melhor lugar do mundo para se viver (e o Rio de Janeiro era a cidade esculpida por Deus num momento especial de alegria), o país com as maiores condições para criar e se tornar não só uma, mas a nova civilização do futuro. Sua imagem favorita era a de que o Brasil se constituía uma espécie de Nova Roma, isto é, uma extensão da civilização romana, a qual passara momentaneamente por Portugal e viera se estabelecer nos trópicos sul-americanos. Mais ainda, o Brasil seria uma Roma mais bem feita, mais humana e feliz, precisamente porque era mestiço, fruto da junção de três raças originais e de mais quantas apareceram para se amalgamar e formar um só povo.
O livro O Povo Brasileiro (1995), o qual Darcy vinha escrevendo desde 1967 e concluiu nos primeiros meses de 1995, é a declaração de amor maior de Darcy pelo Brasil. Fruto de muitos anos de reflexão e comparação com a história de outros países, especialmente das Américas, esse livro veio a lume não só como uma declarada opus magna do autor, mas também como um brado anti-globalizante, uma recusa a aceitar que a história do mundo estivesse sendo feita por um processo irrecusável de homogeneização cultural e de destruição de etnias e nações.
Para Darcy, o mundo podia estar passando por um processo intenso de amalgamento de culturas, através da dominação hegemônica da cultura americana, mas isto se dava ao mesmo tempo com o florescer de novas culturas, ou ao menos com o ressurgimento de etnias que antes haviam sido subjugadas e obliteradas pelo processo de colonização que vinha ocorrendo desde o período das descobertas. No mais, ele confiava que o Brasil, que havia se formado pelo processo de expansão européia, às custas da destruição da maioria dos povos indígenas e do gasto de alguns milhões de escravos africanos, se firmara como uma cultura singular, sustentada por um povo que tinha ganas de ter um lugar especial no mundo moderno. Por tudo isso, Darcy não temia pelo Brasil a longo prazo, nem acreditava teoricamente na força de permanência da globalização que vinha sendo apregoada nos últimos anos de sua vida.
Por ser cultural, o nacionalismo de Darcy não se prendia efetivamente a injunções políticas. Daí é que, estendendo seu amor e confiança para a América Latina, Darcy se desvanecia com a idéia de que a América Latina iria um dia se congregar em uma só nação, tal como sonhara Simon Bolívar, o herói da independência das nações andinas, sob a base cultural de sua herança colonial comum. Esse sentimento se não nasceu se consolidou na convivência que Darcy teve com uma grande parte de políticos e intelectuais latino-americanos nos anos 60 e 70, quando de seu exílio político. Entre estes sobressaía Salvador Allende, a quem Darcy dedicou uma admiração sem par. Sua experiência como conselheiro do presidente Alvarado e coordenador de um projeto de renovação do sistema educacional, no Peru revolucionário (1978-75), também contribuiu para que Darcy achasse viável uma aliança latino-americana. Entretanto, as proposições teóricas feitas no seu livro As Américas e a Civilização em que distinguia culturalmente os povos latino-americanos de acordo com as suas diversas formações étnicas constituíam sem dúvida um empecilho à conceituação da Pátria Grande. Só mais tarde, já na década de 1990, quando acabava-se a bipolaridade mundial, é que Darcy iria formular a idéia de que as nações iriam se alinhar não mais por convicções de ordem político-ideológica, mas por blocos de identidade de acordo com suas formações étnico-culturais. Haveria de surgir um bloco eslavo, um chinês, um árabe, o europeu, e por certo o latino-americano, todos se defendendo da hegemonia americana. Assim, resgatava teoricamente a possibilidade de formação do bloco latino-americano, se não talvez de um próprio bloco latino, agregando os países latinos da Europa.
Como tal bloco poderia se formar? Naturalmente Darcy sabia que os Estados Unidos não queriam tal aliança, pelo contrário, estavam fazendo de tudo para minar quaisquer possibilidades de arranjos regionais que não estivessem sob sua hegemonia. O próprio Mercosul era sinal dos tempos. Assim, um tal arranjo só poderia nascer da força político-cultural de um dos seus membros, o que por certo só poderia ser o Brasil. O Brasil é que deveria ser o fulcro, aglutinador e líder da formação do bloco latino no futuro. Quando Orestes Quércia convidou Darcy para conceituar o Memorial da América Latina em São Paulo, ele se entregou à tarefa na certeza de que estava contribuindo para a formação do futuro bloco latino, e que São Paulo deveria se projetar como a futura capital desse bloco.
O nacionalismo de Darcy, tanto o político quanto o cultural, portanto, não era incompatível com seu sentimento de latinoamericanidade. Ao contrário, parecia que um e outro só poderiam fazer sentido em complementação. Sua convicção maior era que o Brasil tinha um destino a cumprir no mundo, de trazer as bases de uma nova civilização mundial. Talvez isto só pudesse acontecer por um desígnio político em que envolvia a formação da Pátria Grande sonhada por Bolívar. Só os parvos chamariam isso de “imperialismo brasileño”.