Nos últimos dois anos, numa série de artigos no Diário do Poder, venho abordando a ação estabanada e imprudente do governo do Presidente Jair Bolsonaro na esfera da política externa. Primeiro, manifestei estranheza sobre algumas das prioridades estabelecidas para essa área; depois, fui contra o descalabro na condução de nossa diplomacia, com o Presidente, seus filhos e ministros de Estado, que como uma banda enfurecida passaram a disparar mensagens vazadas em termos absolutamente inaceitáveis contra países tradicionais parceiros do Brasil. Finalmente, perguntei-me para onde tinham ido o pragmatismo e a responsabilidade que sempre foram nossa marca registrada na atuação externa.
Políticas externas às quais faltam pé e cabeça e atuação diplomática capenga agridem a memória do País, cuja sociedade, ao longo de quase dois séculos de vida independente, acostumou-se a ter no Itamaraty um farol-guia nos momentos mais conturbados da vida internacional. Em períodos críticos o Itamaraty usou da imprensa para informar e orientar a opinião pública, tendo mesmo o Barão do Rio Branco atuado como comentarista regular.
Atrelamentos incondicionais a qualquer país não fazem parte da sabedoria e dos bons costumes da diplomacia brasileira, pela razão óbvia de que nos diminui a margem de manobra para a defesa de nossos interesses. Por isso, em fevereiro de 2019 alertava para a necessidade de que o ‘relacionamento carnal’ (tomando de empréstimo a expressão argentina) com os Estados Unidos não prejudicasse nossas boas relações com outras partes do mundo.
Disse, então, que não era razoável se pensar que os interesses do Brasil seriam sempre coincidentes com o dos Estados Unidos, uma potência com interesses estratégicos globais, e que deveríamos, portanto, “fazer o que sempre soubemos fazer com muita competência: atuar com serenidade na arena internacional, buscando identificar e defender nossos interesses, sem estardalhaço, sem vínculo a ideologias disparatadas e sem a excessiva falação de nossas autoridades, o que tem mais atrapalhado do que ajudado” .
No ano passado, em maio, quando já a Covid-19 conquistara o mundo, apontei reações no quadro internacional que dificultavam a indispensável colaboração global para o combate da pandemia. Países como o Brasil, escrevi então, deveriam agir com cautela: “Temos interesses concretos em manter um bom relacionamento com a China, não apenas nosso principal parceiro comercial, mas também o parceiro com o qual obtemos um superávit comercial grande o suficiente para cobrir o déficit da conta de serviços em nossa conta corrente da balança de pagamentos”.
Quando a diplomacia de um país busca definir o que seja o interesse nacional, para estabelecer sua agenda externa, atentará em particular aos aspectos de natureza econômica e comercial. Outros vínculos podem e devem ser considerados – estratégicos, de segurança, culturais, históricos, políticos -, mas raramente serão decisivos, em particular para países emergentes como o Brasil.
Para infelicidade nossa, do Brasil, repetiu-se no governo Bolsonaro uma distorção que começou nos governos do Partido dos Trabalhadores. Deixou-se de lado uma avaliação realista de nossos verdadeiros interesses, aceitando-se que as prioridades de política externa fossem ditadas por alguns poucos ideólogos, cuja reflexão esteve contaminada pelos paradigmas dos extremos do espectro político. Os primeiros, excessivamente encantados com Cuba, os últimos, enfeitiçados pelos Estados Unidos.
Foram, portanto, cerca de 15 anos desperdiçados na esfera internacional, por não terem servido aos verdadeiros interesses do País, cuja população de cerca de 210 milhões de habitantes aspira pelo crescimento economia e por melhores oportunidades e condições de vida. Não foi o que se conseguiu com a cartilha ultrapassada de Marco Aurélio Garcia – o chanceler de fato nos governos Lula e Dilma –, nem com as ideias heterodoxas e obscurantistas, já no governo Bolsonaro, da dupla Olavo de Carvalho e Ernesto Araújo. No interregno, governo tampão de Temer, tivemos uma diplomacia em banho-maria.
Diplomatas, e em particular os Ministros de Estado das Relações Exteriores, existem para orientar os Presidentes da República na definição e condução da política externa. Deles, dos Chanceleres, espera-se que tenham bom-senso, equilíbrio, discernimento e, é bom que se ressalve, uma boa dose de altivez. Um Chanceler, como sabem todos os terceiro-secretários (classe inicial da carreira) não pode aceitar ser mera decoração de vitrina, um pau-mandado. Um Ministério como o Itamaraty simplesmente não pode servir de joguete nas mãos de pessoas que não conheçam e respeitem suas tradições, nem partir para aventuras como a que agora se concluiu com a saída de Donald Trump da Presidência nos EUA.
Como intelectual, Olavo de Carvalho, pode pensar e dizer o que bem quiser. Cabe ao funcionário graduado, que exerce a função de mando na Chancelaria, separar o joio do trigo, buscando sempre auscultar a sociedade para o estabelecimento da rota e eventuais correções de curso, sob o risco de se perseguir uma política externa desconjuntada. Foi isso que aconteceu, embarcou Ernesto na canoa de Olavo. E é por isso que surge o clamor pela destituição de Ernesto Araújo.
Não foi por falta de aviso e bom conselho que o Brasil do presidente Bolsonaro chegou, em termos de relações internacionais, à patética situação de isolamento em que hoje se encontra. Com o fim da era Trump – cujas extravagâncias e desatinos desorganizaram o mundo -, perdeu nosso Presidente a muleta única que ainda lhe dava a sensação de alguma relevância no cenário externo.
Ao longo dos últimos dois anos, sem razão que o justificasse, Bolsonaro, seu chanceler e outros de seus próximos, não apenas desprezaram duzentos anos de boa tradição diplomática, mas também os guias mais elementares de boas maneiras. Se ‘tweeteres’ podem produzir efeitos momentâneos na esfera da política interna, seu uso não se coaduna com o decoro e a reflexão exigidas nas relações internacionais.
Não deixa, portanto, de ser irônico que os Estados Unidos – país ao qual o governo Bolsonaro atribuiu quase exclusiva prioridade, e em relação ao qual adotou uma postura de veneração, quase de subserviência – tenha perdido muito de sua importância efetiva para o Brasil, como aconteceu nos últimos dois anos. Ainda que no período os EUA tenham continuado a ser nosso segundo principal parceiro comercial, com só fizemos perder espaço. Os níveis do comércio bilateral têm diminuído acentuadamente e com os Estados Unidos continuamos a ser deficitários balança do comércio e, principalmente, na de serviços.
Sem justificativa, guiados apenas pelos impulsos heterodoxos de Olavo de Carvalho e Ernesto Araújo, o governo e alguns de seus adeptos, descuidaram de tratar com correção parceiros tradicionais do Brasil, que em muitos casos foram esnobados, ignorados ou ofendidos. Não foi, também, ideia razoável a de acompanhar a marcha de Trump na crítica e distanciamento de entidades multilaterais, âmbito no qual os países que não são potência utilizam para defender seus direitos e aspirações.