“A retaliação, via sanções e restrições impostas ao invasor, parece eficaz. Mas tem efeitos colaterais. Todos, e não só os russos, sofreremos com o olho por olho”. Foi o que escrevi no Valor em 11 de março (O mundo em queda (quase) livre).
E completei: “no Dilema do Prisioneiro, clássico da teoria dos jogos, a retaliação, ou tit for tat, mesmo sendo uma estratégia de equilíbrio, só é prática quando é impossível a cooperação”. A cooperação deve prevalecer, e não a retaliação. Os diplomatas faltaram a essa aula.
Ou, quem sabe, as autoridades russas e europeias acreditam num dito popular, do gosto dos arruaceiros, que dariam um boi para entrar numa briga, e não aceitariam uma boiada para sair. Mas isso é tão verdade quanto o amor de Bolsonaro a Lula, e vice-versa. Os soldados russos e ucranianos, no front, pagam muito mais que uma boiada para que a guerra acabe, e mais ainda para nela não entrar.
É perdedora a estratégia do Ocidente para reagir à invasão da Rússia. E era previsível. Homens e mulheres brancas, inebriados pelo poder econômico da União Europeia e bélico da Organização do Tratado do Atlântico Norte, não perceberam a fragilidade do olho por olho.
Por saber da vulnerabilidade da Europa ao gás, era evidente que ali estaria o foco da jogada seguinte de Putin. Sua reação, com restrições e até a completa interrupção do fornecimento de gás natural, foi mais eficaz que o bloqueio de contas, limites ao fluxo de dinheiro, confisco de bens de bilionários e proibição de atletas e artistas participarem de eventos internacionais.
E depois de sete meses de conflito e mais de 6.000 civis mortos na Ucrânia, Putin dobrou a aposta – ou será um blefe, uma fraquejada? Convocou 300 mil reservistas e ameaçou usar armas nucleares. Esses reservistas, com efeito, iniciaram fuga para a Finlândia. “Não encontrei motivos para morrer”, disse um deles.
As consequências da primeira resposta russa são medidas na elevação dos custos da energia, que triplicou em certos países. E se agravará no inverno. O europeu, em especial o mais pobre, terá mais dificuldade para pagar a conta de luz e da calefação.
Mas esse não é o pior resultado. O desabastecimento de gás natural, um insumo essencial para a indústria, tende a provocar uma recessão na Europa só comparável à da crise do Subprime. E, claro, refletirá em outros países, com ênfase nos supridores de comodities.
Como os reflexos mais visíveis da crise, para a Europa, estão na área de energia, era de esperar que especialistas formadores de opinião questionassem a prioridade na transição energética. Usinas nucleares estão novamente em operação e já se fala em programas de expansão aqui e acolá. Termelétricas a carvão estão a ser reativadas e são adiados os planos de desligamento definitivo. São previsíveis os danos para o meio ambiente, com o agravamento dos efeitos das mudanças climáticas.
Para esses especialistas, o ritmo de alteração da matriz elétrica, que privilegiou as fontes renováveis em desfavor dos combustíveis fósseis, seria a causa da crise energética, quando é o contrário. O excesso de confiança no gás russo é a razão das agruras e da encruzilhada em que se envolveram os europeus. Karsten Neuhoff, da Universidade de Cambridge, deu detalhes disso em texto de 15 de setembro.
Mesmo que a guerra acabe amanhã e seja regularizado o fornecimento de gás, não haverá confiança na efetividade do comércio de insumos estratégicos, como o gás. Os efeitos das sucessivas retaliações acentuaram o poder de negociação da Rússia. Cresceram de forma extraordinário os custos de transação, ou os custos para se proteger da barganha ou oportunismo no suprimento de energético tão crítico.
Se, para a humanidade, não há outra trajetória (e não há) a não ser descarbonizar a matriz elétrica, de modo a minimizar os efeitos das mudanças climáticas, as fontes renováveis são o caminho mais razoável, por isso escolhido. Contudo, tal escolha não elimina o uso de outras fontes.
Um sistema elétrico não fica de pé só com eólica e solar. Se há, em dado instante, vento e radiação solar, essas fontes são acionadas compulsoriamente, quando o usual seria o sistema de potência, para a minimizar os custos totais, definir quanto e quando utilizar dessa ou daquela usina.
A estratégia passará a ser outra. O foco mudará, e rapidamente. A diversificação da matriz elétrica modificará a operação do sistema. A flexibilidade, e não mais a energia (kWh), é o bem escasso. A rede, como é hoje, com suas grandes usinas e imponentes sistemas de transmissão, será provedora de segurança do fornecimento, que é função da flexibilidade.
Assegurar flexibilidade é, assim, o desafio. E assegurar flexibilidade sem o gás russo (na Europa) e proporcionalmente menos hidrelétricas com reservatórios (no Brasil) requer um salto tecnológico e, em especial, uma nova maneira de organizar o sistema de potência.
A descentralização, como na geração distribuída, exigirá cooperação, com os consumidores organizados em “microgrids” de renováveis. Mas a competição, onde possível, será preservada. É um design que reúne cooperação e competição, numa “coopetição elétrica”.
A invasão russa, portanto, impulsionará guinadas nos sistemas elétricos, o que não surpreende. As grandes crises são indutoras de mudanças. Já foi iniciada uma corrida, por enquanto silenciosa, para acelerar mais ainda o desenvolvimento de equipamentos menos eletrointensivos. Reguladores e afins já se estruturam para o estudo de novos designs para os modelos elétricos.
E o mundo tem pressa. A Austrália, que mesmo sem guerra sofreu sérios apagões este ano, já deu os primeiros passos, e são promissores. Enquanto isso no Brasil, com problemas tão graves quanto, perde-se tempo precioso para desarmar artefatos parlamentares, os jabutis, com elevado poder de destruição.