Corrupção, prevenção e desigualdade (XV)

Os mecanismos de combate à corrupção

Nesta série de textos abordarei, de forma sucinta, vários temas relacionados com um dos mais relevantes problemas da realidade brasileira: a corrupção sistêmica. Não é o maior dos nossos problemas (a extrema desigualdade socioeconômica ocupa esse posto). Também não é momentâneo ou transitório (está presente em todos os governos, sem exceção, desde que Cabral chegou por aqui). Não está circunscrito a um partido ou grupamento político (manifesta-se de forma ampla no espectro político-partidário). Não está presente somente no espaço público (a corrupção na seara privada é igualmente significativa). Não será extinta ou reduzida a níveis mínimos com cruzadas morais ou foco exclusivo na repressão (será preciso uma ação planejada, organizada e institucional em torno de uma série de medidas preventivas). Não obstante esses traços característicos, tenho uma forte convicção. A construção de uma sociedade democrática, justa, solidária e sustentável, centrada na dignidade da pessoa humana em suas múltiplas facetas e manifestações, exige um combate firme, consistente e eficiente a essa relevantíssima mazela do perverso cenário tupiniquim.

A literatura especializada costuma mencionar cinco mecanismos de combate à corrupção. São eles: a) prevenção; b) detecção; c) investigação; d) correção e e) monitoramento. Creio que é válido pontuar a existência e importância de mecanismos que, apesar de não integrarem diretamente o ciclo de ações contra a corrupção, criam um contexto refratário às práticas em questão. Nessa última seara são fundamentais: a) capacitação dos agentes administrativos, tanto nas searas técnicas quanto éticas; b) visibilidade dos instrumentos fiscalizatórios, permitindo a criação de uma expectativa de controle e c) gestão adequada das rotinas e procedimentos administrativos, notadamente com definição e publicização impessoal.

Os mecanismos mencionados podem ser desdobrados em elementos ou componentes. A título de exemplo, podem ser arrolados os seguintes componentes do mecanismo de prevenção: a) gestão da ética e integridade; b) controles preventivos e c) transparência.

Cada um dos elementos ou componentes podem ser detalhados, no plano operacional, por práticas ou ações específicas. Assim, a elaboração e divulgação de um código de ética e conduta, com a fixação de valores, princípios e comportamentos esperados, é um bom exemplo de prática preventiva amplamente disseminada nas organizações públicas e privadas.

Deve ser destacado que a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembléia-Geral das ONU em 31 de outubro de 2003, contempla, com diferenças de denominação, os referidos mecanismos de combate à corrupção. A aludida convenção foi assinada pelo Brasil em 9 de dezembro de 2003 e promulgada internamente por força do Decreto n. 5.687, de 31 de janeiro de 2006.

A convenção e os Estados partes que subscrevem o documento reconhecem a gravidade do problema da corrupção e das ameaças decorrentes para a estabilidade e a segurança das sociedades. Menciona-se expressamente o enfraquecimento das instituições e dos valores da democracia, da ética e da justiça e o comprometimento do desenvolvimento sustentável e do Estado de Direito. Também são ressaltados os vínculos entre a corrupção e outras formas de delinqüência, em particular o crime organizado e a corrupção econômica, incluindo a lavagem de dinheiro.

Afirma-se que a corrupção deixou de ser um problema local para converter-se em um fenômeno transnacional que afeta todas as sociedades e economias. Pugna-se pela necessária cooperação internacional e um enfoque amplo e multidisciplinar para preveni-la e lutar contra a corrupção.

Nessa linha, o acordo foi muito além de uma mera carta de intenções ou mesmo de um conjunto de princípios com elevado grau de indeterminação. Medidas, antes identificadas como práticas ou ações, foram apontadas com razoável grau de especificação nas vertentes da prevenção, investigação e punição. Entre elas pode ser sublinhadas: a) políticas e práticas de prevenção da corrupção (artigo 5); b) órgão ou órgãos de prevenção à corrupção (artigo 6); c) códigos de conduta para funcionários públicos (artigo 8); d) informação pública (artigo 10); e) participação da sociedade (artigo 13); f) medidas para prevenir a lavagem de dinheiro (artigo 14); g) penalização e aplicação da lei (capítulo III); h) processo, sentença e sanções (artigo 30); i) embargo preventivo, apreensão e confisco (artigo 31); j) proteção aos denunciantes (artigo 33); k) investigações conjuntas (artigo 49);  l) técnicas especiais de investigação (artigo 50); m) recuperação de ativos (capítulo V); n) departamento de inteligência financeira (artigo 58) e o) assistência técnica e intercâmbio de informações (capítulo VI).

Com abrangências substanciais menores, quando considerado o amplo quadro dos mecanismos de combate a corrupção, temos mais dois importantes documentos internacionais anticorrupção. Um deles foi elaborado pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O outro foi gestado pela Organização dos Estados Americanos (OEA).

A Convenção sobre Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais foi celebrada no dia 17 de dezembro de 1997.  O Decreto n. 3.678, de 30 de novembro de 2000, promulgou o acordo no Brasil. O texto da convenção aborda especificamente o delito de corrupção de funcionários públicos estrangeiros, definindo, entre outros pontos: a) responsabilidade de pessoas jurídicas (artigo 2); b) sanções (artigo 3); c) execução (artigo 5); d) lavagem de dinheiro (artigo 7); e) contabilidade (artigo 8); f) assistência jurídica recíproca (artigo  9) e g) monitoramento e acompanhamento (artigo 12).

A Convenção Interamericana contra a Corrupção foi adotada pelos Estados membros da OEA em 29 de março de 1996. O Decreto n. 4.410, de 7 de outubro de 2002, promulgou a referida convenção no Brasil. O documento trata, entre outros assuntos: a) medidas preventivas (artigo III); b) suborno transnacional (artigo VIII); c) enriquecimento ilícito (artigo IX) ; d) assistência e cooperação (artigo XIV); e) medidas sobre bens (artigo XV) e f) sigilo bancário (artigo XVI).

As mencionadas convenções internacionais de combate à corrupção foram incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro com status supralegal. Assim, são importantes parâmetros de controle das normas legais, notadamente quando essas últimas militam no sentido do enfraquecimento do aparato jurídico de enfrentamento da corrupção, como operado pela Lei n. 14.230, de 2021, em relação à Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.429, de 1992).

Ademais, é possível afirmar que existe, já no plano internacional, uma construção consistente acerca dos caminhos a serem percorridos no longo e trabalhoso processo de combate à corrupção e malversações correlatas. Além de conceitos, classificações, princípios e diretrizes, podem ser facilmente encontrados um rol de práticas, medidas ou ações a serem desenvolvidas para eliminar ou minimizar as práticas corruptas e assemelhadas.

Aldemario Araujo Castro é advogado, mestre em Direito e procurador da Fazenda Nacional.