Assunção, Paraguai. Final dos anos 80. O voo da VARIG, vindo do Rio, chegou na hora, 13:00hs. No salão de desembarque nos esperava com o discurso pronto e as chaves no bolso. Era o meu chefe na nova missão, Consulado-Geral do Brasil em Assunção.
Deu-nos boas vindas. E anunciou-me que estava saindo de férias extraordinárias de quatro meses. E mais: estava embarcando para o Rio dali a momentos, naquele mesmo avião pelo qual eu chegara. Ofereceu-me um aperto de mão e as chaves do Consulado. Era um domingo. Fomos para o Gran Hotel del Paraguay, na época em fase decadente.
No dia seguinte, cheguei ao trabalho bem cedo. Plaza Nuestra Senhora de la Assuncion, em frente ao Hotel Guarany. Quarto andar. Cheguei de taxi e experimentei as chaves. Tudo certo. Embora decerto já sabedores da minha chegada, fui recebido com alguma surpresa pelos funcionários. Meses depois, eu já estava instalado na minha moradia definitiva.
A baratinha (MP Lafer) andava nos jardins da casa situada na calle Campos Cervera esquina Motta, Bairro de Villamora, Assunção.
Delícia de domingo, com piscina e churrasco de rabadilla, o bom corte paraguaio. No “quincho” típico (caramanchão) a churrasqueira, a beira da piscina, o som de Gal e Tim Maia em “Um dia de domingo”. A gente se apega as artes da época. Um diplomata brasileiro com as minhas origens, em rota de regresso, depois de um ciclo de serviço no exterior, andava nessa época, como diziam lá em casa, numa fase, digamos, “brega” em matéria de música, adaptando-me aos novos tempos, nova vida. Comecei a gostar de Wando e seu sucesso:
- “Deixa eu te amar, faz de conta que sou o primeiro…”
No trabalho, eu tinha certamente o pior emprego. Cônsul-adjunto, Encarregado do CG durante quase todo o tempo. Ao cabo dos quatro meses, o Chefe reassumiu. Em poucos dias veio o veredicto final. De acordo com as regras de então, completada a idade limite e não tendo sido promovido, o Chefe passou para o Quadro Especial e teve que deixar o posto. Voltei a ser o Chefe.
O Consulado-Geral era uma verdadeira Delegacia de Polícia. Eu era o único diplomata no posto e tive que praticamente organizar uma equipe de funcionários, entre eles o inesquecível Severiano do Brasil Manique Jr., uma boa tropa de choque.
Como sabem, o Consulado-Geral era (e ainda é) independente da Embaixada.
Sobrevivi a duras penas ao trabalho insano e pouco nobre. Ganhei coragem, acabei montando uma rede de contatos locais que se revelaram valiosos. Fui mais além do que a função pedia de mim. Hoje vejo que fui irresponsável. Quiçá eficiente, mas francamente irresponsável.
Com a ajuda de Manique, estabeleci contatos com receptadores de carros roubados no Brasil, com o Chefe de Polícia, Generais, Ministro da Justiça maçom, Dona de casa de lenocínio, onde, apresentado por um amigo, batia ponto quase toda sexta-feira no final do expediente (quando não ia ao bar e restaurante Pérgola Jardim) e, enquanto fazia charme pra “Madame” argentina, bebericava umas doses de Old Parr, que ela nunca cobrava. Tudo pra conseguir informações sobre o paradeiro deste ou daquele “cabrito” (como eram chamados os veículos roubados). Até consegui localizar um caminhão do então Chanceler, roubado no interior de São Paulo, da Fazenda Jamaica. Uma operação arriscada, de madrugada, usando uma canoa e barqueiro contratado na região, revelou por meio de binóculos, a mim e ao enviado do do ilustre dono do caminhão, que o veículo de Sua Excelência estava numa fazenda remota, na posse de um importante líder político da área de comunicação. Eu decerto não era autoridade policial e achei que tinha cumprido minha parte.
Também já interrompi meu almoço de domingo para auxiliar um figurão brasileiro e sua esposa, cujos passaportes haviam sido apreendidos. Graças às boas relações com o Chefe de Polícia, tudo foi resolvido. Uma outra vez consegui que dois soldados escoltassem um jornalista do JB até a fontreira na então Puerto Stroessner, pois o rapaz fora fazer matéria sobre roubo de carros brasileiros e correu pra pedir ajuda quando sentiu que sua vida corria perigo.
Não fui um mau Cônsul. Ao contrário. Pelo menos era o que dizia o Embaixador, muito satisfeito com a maneira como eu resolvia consularmente alguns “pepinos” que – caso contrário – teriam adquirido caráter político de alguma sensibilidade e teriam que ser tratados na Embaixada. O que eu fazia era trabalhar muito para sobreviver ao insana e quer sempre pouco nobre rotina. Por essas e por outras sobreveio depois o medo, pois vi quanto risco corri. No Natal, se fazia uma “vaquinha” para proporcionar uma ceia minimamente digna aa comunidade de presos brasileiros no presídio de Tacumbu.
Mas, num domingo normal a baratinha andava no imenso jardim da casa, com André dando seus primeiros passos no volante e eu punha Eduardo no colo e rodopiava com o calhambeque pela grama. Como diria a musiquinha da Roberto Carlos:
- O Calhambeque, bi-bi
Quero buzinar o Calhambeque, bi-bi