[Objetivo: recomendar renúncia; finalidade: declaração a colegas de carreira]
Diplomata EA [Ernesto Araújo],
Eu estava, recentemente, revisando a lista de minhas resenhas de livros – eu fiz centenas delas – e deparei-me com esta aqui, que na verdade nunca teve divulgação plena, pois a RBPI só publicava resenhas curtas, e eu sempre fiz resenhas-artigos, no modelo da The New York Review of Books, uma jornal literário da esquerda americana, que tenho certeza é do seu conhecimento. A ficha desta resenha, que acabo de publicar em sua íntegra, é esta aqui (e tenho certeza de que você também conhece o meu blog, muito crítico como sempre):
- “O Mercosul por quem o fez”, Brasília, 17 março 1996, 3 p. Resenha de Sérgio Abreu e Lima Florêncio e Ernesto Henrique Fraga Araújo: Mercosul Hoje (São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1996). Inédito na versão completa. Publicado em versão resumida na Revista Brasileira de Política Internacional (vol. 39, n. 1, janeiro-julho 1996, p. 175-177). Divulgado em versão integral blog Diplomatizzando (27/01/2021; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/01/o-mercosul-por-quem-o-fez-resenha-do.html). Relação de Publicados n. 194.
Ao reler a avaliação bastante positiva que fiz desse livro, constatei que, até o final de 2018, nunca mais havia lido qualquer coisa inteligível saída de sua pluma. Ouvi falar de dois ou três romances bizarros mas nenhum colega soube me dizer algo inteligível sobre eles, e a única resenha que li – de um jornalista da revista Época, logo ao início deste governo – não me motivou a buscá-los para tomar conhecimento do que poderia haver de interessante neles. Também deve ser de seu conhecimento que durante quase duas décadas eu assinei a seção Prata da Casa na revista da nossa Associação, resenhando a cada número quatro ou seis obras de diplomatas, mas nunca tive a oportunidade de receber esses “romances” para resenhar. Falha sua, pois quem sabe eu teria algo de inteligente a dizer sobre coisas antigas, quando o Brasil, ainda que ameaçado pela turma do Foro de S. Paulo e pelo marxismo cultural, parecia ser um país mais normal do que atualmente.
Em todo caso, quando voltei a lê-lo novamente, num blog de nome aparentemente inspirado nos círculos wagnerianos – Metapolítica 17: contra o globalismo –, confesso que fiquei estarrecido pelo conjunto de afirmações absurdas e propostas estapafúrdias. Foi tal o choque, que desandei imediatamente a formular argumentos contrários em meu blog Diplomatizzando – que eu chamo de quilombo de resistência intelectual –, o que deve tê-lo motivado a me exonerar do cargo de diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais numa segunda-feira de Carnaval, uma data estranha para gesto já tão esperado. O choque e o estranhamento foram tais – não só daqueles escritos vitriólicos, mas também das entrevistas raivosas, dos discursos excêntricos, das aulas estranhas para os alunos do Instituto Rio Branco – que eu fiz aquilo que sempre faço quando me deparo com algo fora do normal: ponho-me logo a registrar minhas impressões e contra-argumentos.
Até aqui foram quatro livros sobre essa estranha fase de nossa diplomacia, uma verdadeira Era dos Absurdos (a EA, que deve entrar para a história), o que me ocupou de uma forma absolutamente inútil, tendo em vista pesquisas sérias e livros mais consistentes que eu poderia estar escrevendo e publicando. Tenho certeza de que você também já tomou conhecimento desses livros, que podem tranquilamente ser acessados no meu citado blog, quaisquer que sejam seus sentimentos e reações a eles. Creio até que foi o primeiro desses livros – Miséria da Diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (2019) – que o motivou a tomar novas medidas punitivas contra mim, até por meio de ilegalidades, como o fato de cortar meu salário do mês de janeiro de 2020, a pretexto de “faltas injustificadas”, quando eu havia justificado cada uma delas (em duas, aliás, estávamos juntos em eventos dos bravos militares, no Forte Apache e no próprio Ministério da Defesa). Eu poderia lhe dizer que a raiva não é boa conselheira, mas não creio que adiantasse muito, pois desde a Guerra de Troia, ela já produziu muitos gestos insensatos nas relações humanas.
Pois foi quando “redescobri” essa resenha nunca publicada integralmente que tomei a decisão de escrever-lhe uma carta aberta, como convém num caso de interesse público, como é essa horrível gestão sua à frente de nosso tão infeliz ministério. Nunca assistimos, em 200 anos de construção do Brasil pela sua diplomacia – parafraseando a obra já clássica de um colega, o embaixador Rubens Ricupero, que também deve fazer parte de sua biblioteca, tenho certeza disso – um itinerário tão desastroso na condução de nossa política externa. Sei que muito disso é devido aos aloprados no poder, aquela família de crenças ultrapassadas, e até mesmo reacionárias, e não a seus sentimentos profundos.
Mas, ao fim e a cabo, é o seu nome que está em causa, numa quase unanimidade da mídia, como associado à pior gestão do Itamaraty desde o início sob a responsabilidade de um dos pais da pátria e ao longo de dois séculos de lento estabelecimento de uma diplomacia reconhecida como excelente por todos os nossos parceiros externos, a começar pelos vizinhos e todas as grandes potências. Não é mais o caso atualmente, tanto é que assistimos incrédulos ao seu discurso do Dia do Diplomata de 2020, quando, de sua própria boca, saiu a fatídica palavra: “sejamos párias”. Foi uma declaração original em 200 anos de independência, como todos saberemos reconhecer; talvez tenha sido o ponto mais baixo de sua desastrosa gestão, uma espécie de epitáfio que há de permanecer como a marca única e distintiva de um período vergonhoso, mas que ocupará mais algumas páginas de um futura obra que devo ainda escrever: uma história sincera do Itamaraty, na qual relatarei os pontos mais baixos de sua horrorosa gestão.
Pois é com base em todas essas constatações que eu me permito recomendar-lhe a única coisa decente que você ainda poderia fazer para aliviar nossas agruras de diplomatas de carreira: renuncie EA, faça isso em benefício da Casa que o acolheu tão bem nas últimas três décadas, mas que agora se encontra deprimida pelo pavoroso cenário de fracassos evidentes e de alucinações delirantes. Reparou que eu sequer o chamei de “chanceler acidental”, o que fiz de forma consciente ao longo dos últimos dois anos? Acredito que o adjetivo é plenamente devido, mas o substantivo não lhe cabe, pois essa qualificação só se aplica a quem conduz, de fato, a implementação da política externa, o que nunca foi o seu caso.
Para sua tranquilidade, e antes que o seu caso se agrave ainda mais, renuncie, para o alívio da quase totalidade de seus colegas, e até de certos membros da família, que levam o terrível constrangimento de verem destruídos os fundamentos da política externa pela qual tanto lutaram, entre ventos e marés, inclusive a diplomacia blindada do regime militar. Sua gestão é um desastre, suas ideias são anacrônicas ou delirantes, seu servilismo a dirigentes estrangeiros é uma vergonha não só para os diplomatas, mas para todos os brasileiros. Salve o que pode ainda ser salvo de sua carreira renunciando, inclusive para não me obrigar a escrever um quinto livro sobre esta Era dos Absurdos diplomáticos.