Análise: médicas Yamaguchi e Mayra na CPI

Devo renovar a minha veneração pelo Congresso Nacional, que considero o altar da democracia.

Lá estive seis legislaturas e aprendi muito. Uma verdadeira pós-graduação.

Desempenhei relatorias altamente polêmicas, como da lei de patente, CPI do salário mínimo, CPI dos genéricos e medicamentos em geral, Emenda Constitucional que alterou conceito de empresa estrangeira (artigo 171), contratos de riscos na Petrobras.

Na implantação do Plano Real e MERCOSUL atuei como Presidente da comissão mista, além da presidência da CCJ e outras.

Faço essa introdução para dar o depoimento, de que os debates e posições políticas aguerridas sempre existiram, sobretudo em relação àqueles que eram convidados para prestar depoimentos, ou participar de audiências públicas no Parlamento.

O intuito do texto não é repreender, nem criticar ninguém, até porque a autonomia do parlamentar é direito sagrado.

Ao manifestar opiniões sobre o andamento da CPI da Covid tenho como fundamento o inciso 5°, IX, da Constituição federal (liberdade de expressão).

Desde a proposta da CPI, concordei com o senador Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, que não invalidava a investigação, porém defendia maior foco no combate à pandemia.

As possíveis irregularidades e crimes durante a pandemia já estavam sendo investigados pelo STF, PF e MP.

Essa tese não vingou e instalou-se a CPI.

O desejo geral é que no final dos trabalhos haja contribuição positiva para erradicar o vírus no país.

Até hoje, a CPI tem sido o palco da polarização entre Lula e Bolsonaro.

Tudo se resume na utilização de regras de procedimentos agressivas, radicais, unilaterais, de lado a lado. O clima é de guerra e não de investigação parlamentar.

O que se observa é que uns vão para um lado e outros para o outro, enquanto a Internet dá voz às pessoas, gerando versões distorcidas sobre os fatos.

Vários exemplos de exorbitância no exercício dos poderes investigativos poderiam ser citados.

Tomemos como base os depoimentos recentes das médicas Mayra Pinheiro, que chegou já apelidada de “capitã cloroquina” e da cientista Nise Yamaguchi.

Ambas profissionais da medicina, foram acusadas de defensoras do uso da hidroxicloroquina e cloroquina como tratamento de pacientes infectados pela Covid.

Perante os senadores justificaram as suas posições profissionais.

O Conselho Federal de Medicina (Parecer nº 04/2020), diante da excepcionalidade da pandemia, deixou a critério médico o uso da hidroxicloroquina e cloroquina.

Tal decisão, certa ou errada, é originária do CRM, órgão de classe, regulado pela lei federal 3.268/57.

Esse Conselho exclui a hipótese de considerar crime a recomendação de tais medicamentos, desde que prescritos por receita médica.

Não existe delito no Código Penal brasileiro, nem legislação vigente, que puna o procedimento defendido pelas médicas Mayra Pinheiro e Nise Yamaguchi.

O relator e membros da CPI têm o direito de discordar e optarem por estudos, que contestem tal tese.

Afinal, a única certeza da ciência é a dúvida, sendo normal e até saudável existirem discordâncias.

O que não se justificam são críticas e repetidas acusações de “mentiras”, que se assemelham ao comportamento do personagem do “Tzar” de ferro, na obra de Tolstói.

Em nome da objetividade os indagantes exigem o “sim” ou “não” da testemunha, sem direito a explicações, que sejam absolutamente necessárias.

Não esclarecer é o mesmo que auto se incriminar.

Os fatos investigados são públicos e notórios, logo se aplica subsidiariamente à CPI, o artigo 213 do CPP que proíbe exigir da testemunha, ou convidado, manifestações e apreciações de ordem pessoal, de amizades, de contatos, fora da órbita do que é investigado.

No caso da doutora Nise Yamaguchi, em determinado momento, ela fez a diferença entre vacinar e tratamento precoce, sendo advertida, com veemência, que estava mentindo e orientando o país, de forma criminosa, para aumentar o número de vítimas.

O curioso é que tal repreensão foi acompanhada da declaração, de que o indagante confessava não ser médico, nem entender do assunto.

Quem critica o presidente Bolsonaro de ter mandado as pessoas comprarem vacina “na casa da mãe”, termina usando metáfora semelhante.

Ir a fundo na investigação, sobretudo com perguntas, é absolutamente necessário.

Porém, há os limites do respeito para não constranger a testemunha.
Têm sido comuns, os cortes no meio das respostas das testemunhas, desde que a frase dita não atenda ao indagante.

É esquecido que o depoente tem o direito de esclarecer a sua narração em detalhes, se quiser, independente de tempo.

Por fim, reconheço que a maioria da CPI deseja servir ao país. Por tal razão muitos desvios de comportamento ainda poderão ser ajustados, com base na legalidade.

O que está em jogo nesta CPI é a credibilidade do Senado Federal, que não pode perder a características de ser uma Casa republicana, gerida pelos princípios da verdade e das liberdades democráticas.

Ney Lopes – jornalista, advogado, ex-deputado federal; ex-presidente do Parlamento Latino Americano (PARLATINO); e- Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara; procurador federal; professor de Direito Constitucional da UFRN – nl@neylopes.com.br – blogdoneylopes.com.br