A concepção e construção das chamadas Funções Essenciais à Justiça (Ministério Público, Advocacia Pública, Defensoria Pública e Advocacia), importantíssima novidade na organização do Estado brasileiro, integra uma tendência, de âmbito mundial, de superação, sem abandono, da clássica tripartição dos poderes estatais (Executivo, Legislativo e Judiciário).
Infelizmente, depois de 36 (trinta e seis) anos de edição da Constituição de 1988, percebe-se que a Advocacia Pública é a mais desvalorizada das Funções Essenciais à Justiça. Em rápidas considerações, busca-se demonstrar que a estratégica e enorme importância da Advocacia-Geral da União (AGU), como a mais relevante instituição de Estado da Advocacia Pública, não está adequadamente regulada nos planos constitucional e legal.
No Brasil, quase tudo que é relevante na Administração Pública é tratado pela Advocacia Pública em suas atividades de assessoria jurídica, consultoria jurídica e representação judicial do Poder Público. Praticamente nenhum ato administrativo, contrato, convênio, política pública ou movimento arrecadatório escapa de algum tipo de atuação, com extremo rigor técnico e ético, dos advogados públicos.
No caso específico da AGU, observam-se enormes incompreensões e restrições ao exercício escorreito da Advocacia Pública por Advogados da União, Procuradores da Fazenda Nacional, Procuradores Federais e Procuradores do Banco Central do Brasil. Em escrito recente, resumi as atuais dificuldades no âmbito da AGU nos seguintes elementos: a) não goza da autonomia necessária e experimentada por outras Funções Essenciais à Justiça; b) possui uma lei orgânica tímida e completamente anacrônica; c) não convive com um conjunto decente de prerrogativas e garantias para os seus membros; d) experimenta uma instável e distorcida composição remuneratória para os integrantes de suas carreiras jurídicas; e) não conta com uma carreira de apoio administrativo especializada; f) ainda não incorporou amplamente sua identidade institucional como Advocacia de Estado construtiva e g) observa uma inaceitável hipertrofia do papel do Advogado-Geral da União.
Quando os advogados públicos são diminuídos, desprestigiados e tolhidos no seu enorme potencial republicano de atuação, quem mais sofre é Estado Democrático de Direito e a sociedade brasileira. Afinal, os custos, de várias ordens, não só financeiros, da atuação estatal aumentam na proporção do enfraquecimento de seu corpo de advogados.
Uma das ausências mais sentidas, como antes destacado, é a autonomia institucional da Advocacia-Geral da União. Deve ser registrado que, em passado recente, houve uma forte tentativa de suprir essa falta. Em setembro de 2013, o Movimento Nacional Pela Advocacia Pública apoiou a aprovação da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) n. 82, de 2007. A proposição, de autoria do então Deputado Federal Flávio Dino, assegurava autonomias funcional, administrativa e financeira, bem como o poder de iniciativa de suas políticas remuneratórias e das propostas orçamentárias anuais, dentro dos limites estabelecidos na Lei de Diretrizes Orçamentárias, à Advocacia Pública (em seus vários níveis federativos). A proposta conferia, ainda, uma série de prerrogativas aos membros da Advocacia Pública.
A mencionada PEC não prosperou, no sentido de sua aprovação pelo Poder Constituinte Derivado. Portanto, continua inconcluso o trabalho do Poder Constituinte Originário em relação à Advocacia Pública e à AGU, em particular. Registre-se que, em relação à Defensoria Pública, a omissão foi sanada por intermédio das Emendas Constitucionais ns. 45/2004, 74/2013 e 80/2014.
A autonomia institucional (funcional, administrativa e financeira) tenderia a equacionar vários dos problemas antes listados. Ademais, criaria as condições para a revisão e modernização da Lei Orgânica da AGU, encaminhando soluções para outra parte dos problemas aludidos.
Entre as providências a serem adotadas por uma nova Lei Orgânica da AGU estariam: a) a fixação de um conjunto de prerrogativas e garantias para os membros da instituição, viabilizando o exercício funcional independente de pressões descabidas; b) a criação de um Conselho Superior com competências para estabelecer as diretrizes fundamentais de organização e funcionamento da instituição, além de adotar as decisões mais importantes em termos de repercussões internas e externas e c) por fim a indesejável hipertrofia de atribuições do Advogado-Geral da União, dirigente máximo da instituição.
Simpatizo muito com a ideia de um Conselho Superior da AGU composto por indicados pelos chefes do Executivo, Legislativo, Judiciário, Ministério Público Federal, Defensoria Pública da União, Tribunal de Contas da União e Conselho Federal da OAB. Caberia a esse colegiado escolher o Advogado-Geral entre os membros da instituição. Uma das vantagens dessa solução, ou algo assemelhado, é afastar de vez a imprópria qualificação e condição do dirigente máximo da AGU como Ministro de Estado.
O arranjo institucional resultante da combinação da autonomia institucional e de uma lei orgânica moderna e adequada à natureza da AGU conferiria efetividade à noção de Advocacia de Estado, praticamente eliminando a possibilidade de captura da instituição para a realização de projetos político-partidários ou pessoais indevidos.
Ademais, restaria clara a essência, o ethos, a identidade da AGU, independentemente do governo de plantão, como uma Advocacia essencialmente construtiva. Uma Advocacia construtiva não concorda com toda e qualquer pretensão ou capricho do governo instalado. Também não se coloca como permanente entrave ao desenvolvimento das decisões políticas mais estratégicas. A Advocacia construtiva é aquela que, fortemente escorada na constitucionalidade e na legalidade, busca viabilizar as soluções mais seguras e consistentes para a realização das politicas públicas do governo eleito. Cada “não” (ou impossibilidade apontada para o gestor ou governante) é cuidadosamente avaliado como inevitável (falta de requisito legal ou quando o “caminho” pretendido está claramente interditado pela ordem jurídica, por exemplo). Os meios de superação dos entraves são necessariamente apontados (como alterar normas infralegais, infraconstitucionais e até mesmo a Lei Maior). Comporta, uma Advocacia construtiva, a análise e demonstração de riscos, ante a doutrina e a jurisprudência existente sobre a matéria. Reclama, ademais, uniformização de atuações e posicionamentos para fora dos órgãos jurídicos, por razões de eficiência e isonomia. A aludida atuação construtiva não significa a concretização de uma independência técnica absoluta ou ilimitada, uma prerrogativa pela prerrogativa, sem relação estreita com o interesse público.
Obviamente, a identidade construtiva da Advocacia Pública não tem nada a ver com a deletéria Advocacia de Governo. Essa vertente, incompatível com a Constituição de 1988, objetiva atender de forma acrítica interesses dos gestores, simplesmente por serem interesses dos administradores. Busca-se, nessa triste perspectiva, a implementação de ambientes funcionais autoritários, centrados no fortalecimento da hierarquia administrativa, composta por cargos comissionados preenchidos com bastante cuidado para viabilizar ou dar sustentação jurídica a decisões já tomadas.
Caminhar no sentido de conferir autonomia institucional à AGU e dotá-la de uma lei orgânica moderna e em sintonia com a aludida autonomia, antes de ser um formidável ganho para o órgão e seus membros, é um enorme avanço para o funcionamento do Estado Democrático de Direito e um instrumento inestimável para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3o, inciso I, da Constituição).