Um ensaio de interpretação mito-antropológica
Apresentação
A campanha política que resultou na vitória eleitoral de Jair Bolsonaro é dos mais brilhantes feitos pessoais já realizados no Brasil. Com o mínimo de recursos financeiros e com a ajuda de alguns amigos e uma penca de seguidores que havia conquistado algum tempo antes, Jair Bolsonaro batalhou pela confiança de milhões de brasileiros usando de uma linguagem simples e direta, que calou fundo na alma de quem há muito sofria de opressão social e cultural e vivia meio desorientado no mar de novidades extravagantes e práticas amorais. Ao final, alcançou uma vitória retumbante nas urnas de 2018. E o Brasil entrou em êxtase para muitos e desespero para os demais.
Como um homem simples, de origem caipira (modalidade italiana), com conhecimento e estudos limitados sobre o Brasil e o mundo, formado sob a disciplina moral e política de uma instituição conhecida pela rigidez doutrinária, conseguiu alçar-se a tão alto posto na política nacional no intervalo de tempo tão curto e tão de súbito, sem nenhum sinal de aviso, premonição, ou desígnio?
Evidentemente porque ele tem dentro de si um gênio intenso e indefinido de percepção humana, sagacidade e astúcia que o faz alcançar em alto grau o entendimento e a comunicação com seus semelhantes, e dar-lhes segurança moral e sentimento de pertinência, além de uma irrefreável vontade de poder que o guia por um caminho estreito e áspero que o fortalece para suportar as agruras do desapreço e os ataques viciosos de toda sorte de inimigos. Esse gênio foi moldado na vivência crua e autêntica da cultura do povo brasileiro rural e semiurbano – intuitiva, desconfiada, modesta, honesta, tinhosa e transcendental. Por fim, ao contrário de tantos outros que almejaram igual destino, Bolsonaro tem fortuna! Aquela fortuna que só uns poucos recebem das forças da natureza e da cultura, que é mérito do acaso e da sorte, que vem dos deuses ou dos espíritos do mundo. Ou, no melhor do entendimento de Bolsonaro, que vem de Deus Todo-Poderoso, criador do Céu e da Terra. Nisso têm razão seus seguidores mais religiosos: Deus derramou suas maiores graças sobre Bolsonaro!
Junto ao gênio irrefreável, ao alcançar esse posto de proeminência inigualável no Brasil, tido popularmente como um homem raçudo, imprudente e desmedido, Bolsonaro se manteve igual, exatamente o mesmo, ao chegar à presidência da República, como se o Palácio da Alvorada fosse sua casa e seu lar, e o Palácio do Planalto seu escritório particular de ofício.
Lutando para cumprir as metas que traçou em sua campanha Bolsonaro vem mantendo seu eleitorado cativo e embevecido, como sempre, por sua verve estridente e contundente, sem fazer concessões aos bons termos de negociação e sem se importar com a liturgia do cargo supremo. Contudo, concomitantemente, incorreu na reação cruenta e depreciativa dos poderosos perdedores, as gentes do establishment social dominante ciosas de seus privilégios e inconformadas com a ascensão de um representante assumido das classes sociais depreciadas por sua origem, sua humildade social e suas carências educacionais (gente brega e grosseira), uma imprensa gananciosa, porém depreciada e desdenhada, as desvigoradas e viciadas instituições da república – um congresso nacional a serviço de si mesmo, um STF opulento, quase solipsista e desarvorado, e um Judiciário de todo desatento ao juízo e ao cumprimento de seus deveres – todas, nos últimos anos, desafiadas a se auto-reconstituírem por uma nova ética e uma nova governança que sejam propícias às exigências dos novos tempos, ainda indefinidos, porém, sem dúvidas, temerários, ou então, a receber o menoscabo da população e o ímpeto indignado do moralista-mor da República.
Sem adotar qualquer estratégia de recuo ou conciliação, resfolegado por sua intuição política, Bolsonaro persistiu com veemência na sua indômita e inglória luta para manter sua palavra firme na execução das políticas públicas prometidas em campanha – desde a mais simples e elementar até as mais ousadas e sofisticadas – e para fazer recuar ou submeter os adversários e os companheiros de jornada à sua inconciliável vontade. Em troca, as forças que se agregaram contra o concebido salvador da pátria se assomaram cada vez mais ousadas e reptilianas para este agraciado da fortuna. Neste meio termo da pandemia que assola o Brasil e a inocente humanidade, maio de 2020, Bolsonaro alcançou seu ápice de efervescência pessoal e moral ao forçar a destituição do seu ministro da justiça, o insigne ex-juiz Sérgio Moro, que fora responsável pelo dinamismo da Operação Lava Jato e, por consequência, entre tantos outros atos de sentenciar, pela condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por incontornáveis provas de corrupção quando no exercício da presidência da República.
No cômputo parcial dessa aventura ainda inconclusa, parece que o bom homem encontrou o momento de sua verdade, da verdade de sua existência e de seu destino. Do nada subiu aos céus, e do alcançado céu parece querer tombar de chofre à mísera terra. A fortuna sorriu-lhe, mas agora parece arreganhar sua cruel carranca. Aspergido tantas vezes pelas benemerências dos deuses mitológicos, filhos desmedidos de Zeus, agora as Parcas estão soltas no seu encalço.
Não sabemos, ninguém pode saber do que acontecerá a Bolsonaro nos próximos meses de seu mandato. Ou bem se segurará como um político habilidoso, capaz de arregimentar forças políticas na população e no Congresso Nacional para apoiá-lo contra os ataques que se acumulam a cada dia desde as consequências jurídicas da demissão do ex-ministro Sergio Moro e do acúmulo disparado de outros atos intempestivos já ocorridos e certamente a ocorrer, ou bem sucumbirá lentamente, ou talvez de súbito, cortado pela foice inescapável de um impeachment.
Nesse tempos de resguardo, entocados em nossas casas, mal vislumbrando o mundo em funesta inação, acompanhando os acontecimentos e mirando para o futuro, vamos excogitar um pouco melhor sobre Bolsonaro, seu gênio e seu caráter brasileiro, sobre o Brasil que Bolsonaro nos arreganhou com seus gestos desabridos, atitudes toscas e lutas quixóticas, um Brasil que teima em rebater e se esquivar de tudo e qualquer coisa para permanecer o mesmo, sem perder nem os dedos nem os anéis, e que não medirá consequências para suprimir os adversários reais e imaginários.
O mundo caipira do jovem Jair
Na década de 1950 São Paulo, capital e estado, já haviam se estabelecido como a cidade e o estado mais importantes do país, tanto por sua agilidade política, sua consolidação urbana e afirmação de urbanidade e modernidade, quanto pelo crescimento efetivo e equilibrado, entre pequenas e médias fábricas e uma agricultura e pecuária consistentes, de suas cidades interioranas. A capital e sua área metropolitana atraiam novos imigrantes de todo o Brasil, especialmente dos estados vizinhos e do Nordeste, e logo iriam consolidar uma posição central na industrialização pela concentração de fábricas de automóveis, utensílios domésticos e derivados. Os demais estados brasileiros, em menor escala, também efervesciam em diversificação econômica e ampliação de serviços de todas as naturezas. Desde fins do século XIX São Paulo vinha dando provas irrefutáveis de sua capacidade de crescimento e amplitude, mas foi nos anos pós-guerra que o salto maior ocorreu e transformou cidade e estado nos dínamos do desenvolvimento da nação. São Paulo e o Brasil, nos anos 1950 e seguintes, vivenciaram uma época de criação e criatividade, esperança e oferta de muitas novas oportunidades para a gente pobre e desvalida, rural e semiurbana, que se classificava agora como classe trabalhadora, para as classes médias ansiosas por participação ampliada e, sobretudo, para os jovens de todas as estirpes que cresciam, adquiriam formação e buscavam trabalho, e os meninos e meninas que pululavam num mundo novo e promissor.
Foi em 1955 que nasceu Jair, de uma família de descendentes de quinta geração de imigrantes italianos que haviam chegado ao interior de São Paulo para trabalhar como colonos nas fazendas de café, na esperança de um dia se tornarem proprietários de suas próprias terras, ou de se tornarem negociantes ou mesmo gente de bons modos. Os cafeicultores que dominavam a economia paulista desde meados do século XIX sabiam que o trabalho escravo estava inevitavelmente condenado, tanto pela censura mundial e cada vez mais nacional a esse opróbio, quanto pela certeza de sua ineficiência e baixa produtividade em comparação com o trabalho livre. Por isso, ao pensarem no iminente fim do trabalho escravo, criaram para a lavoura o sistema de trabalho conhecido como “colonato”, pelo qual os trabalhadores seriam gente livre, viveriam em moradias providenciadas pela fazenda, receberiam em adiantamento, cujo valor seria descontado de seu salário e emolumentos, os instrumentos de trabalho, alimentação, utensílios domésticos, vestuário e demais necessidades básicas, e ficariam encarregados de cuidar do plantio, limpeza e colheita de certo trecho da plantação. O sistema permitiu a sobrevivência física e a integração social e cultural dos muitos imigrantes, entretanto, sem favorecer vantagens suficientes para a maioria alcançar algum dia acesso à sua própria terra. Ao longo dos decênios, a melhoria dos meios de produção do café provocou a diminuição da quantidade da mão de obra e assim favoreceu a muitos saírem do regime de colonato. Integrados com os caipiras tradicionais que foram os principais responsáveis pela expansão da nova cultura luso-brasileira pelo interior do país, descendentes da mestiçagem entre portugueses e indígenas subjugados como gente servil, e acrescentados de negros escravos e ex-escravos, que haviam de fato colonizado as terras paulistas pelo seu suor e pela permanência na terra, os italianos e outros imigrantes do final do século XIX se amalgamaram de tal sorte que pouco ficou de suas bases culturais, a não ser a influência gramatical sobre o sotaque, a adaptação do milho à tradicional cozinha italiana e, certamente, um certo modo brincalhão e despachado de ser. Um pouco das características culturais caipiras podem ser conhecidas em livros de romance e de dissertações sociológicas e antropológicas, bem como vistas popularmente em filmes de Mazzaropi, em cantos e toadas caipiras, em Tonico e Tinoco, em Adoniran Barbosa e em muitos outros do nosso mundo mais recente.
A emigração desesperada de italianos e outros europeus se deve ao desenvolvimento da mecanização e a reorganização da produção e comercialização de produtos agrícolas na Europa, que causaram uma diminuição expressiva na necessidade de mão de obra e, em consequência, levaram à perda de muitos postos de trabalho na lavoura e, ao cabo, na saída e até expulsão de uma imensa quantidade de lavradores, camponeses de origens medievais e até romanas, “servos da gleba”, do sistema agrícola europeu.
Crescia, para a grande preocupação da elite política e administrativa das cidades europeias, desde os países nórdicos ao Sul europeu, passando pela Alemanha, Inglaterra e outros países, o contingente de pessoas destituídas de meios de sobrevivência, apesar da crescente industrialização e ampliação de serviços, e aumentava assustadoramente o número de desocupados e esfomeados pelas ruas. Em meio século a Europa iria empurrar para fora cerca de 50 milhões de excedentes populacionais, que migraram para as Américas e Oceania. Uma parte de dois a três milhões tiveram por destino o Brasil. Para alguns historiadores esse largo contingente populacional descartado teria resguardado a Europa de revoltas e rebeliões e quiçá de uma possivelmente inevitável revolução social, muito antes da revolução comunista que criou a União Soviética.
Para os países receptores, como o Brasil, essa nova população remodelou seu perfil racial, social e econômico, dando-lhe feições mais europeias e diminuindo, sobretudo nas regiões Sul e Sudeste, a presença proporcionalmente mais maciça de negros, caboclos e mestiços sobretudo na camada popular. O Brasil embranquecia, para gáudio dos muitos que queriam um país mais europeizado, menos mulato e menos mestiço. Nesse final do século XIX, o Brasil se vergava sob o peso nefasto das ideias e do movimento conhecido com darwinismo social, pelo qual se supunha que as raças e etnias humanas estariam num ordenamento hierárquico de valorização física, intelectual e moral. Os brancos chamados caucasianos estariam no topo da escada evolucionista, que descia pelas ribanceiras dos eslavos, latinos, árabes, asiáticos até alcançar o nadir de valorização racial entre os negros africanos e os indígenas americanos. E o pior é que essa pseudociência construída em ideologia racial propunha ainda que a mestiçagem desvalorizava as raças constituintes, isto é, o mestiço já nascia degenerado e, portanto, inferior aos pais. O Brasil, pela quantidade de negros e mestiços, estaria em tal posição social que, com lamentações despicientes as mais excruciantes, não teria outra saída senão importar estrangeiros de bons genes, ou, na urgência, de qualquer lugar, menos naturalmente da África. Assim, terminaram vindo também, já nos primeiros decênios do século XX, gente do Oriente Médio – judeus, sírios, libaneses, armênios – fugindo dos rigores decadentes do Império Otomano e da sovietização da Europa oriental; e igualmente da China e do Japão, que também sofriam de excesso populacional com parcos meios de sobrevivência.
Assim, juntando a fome com a vontade de comer, a procura por gente europeia e de outros rincões coincidia com sua plena disponibilidade, bem como casava com a política governamental, fruto da pressão dos cientistas da época, de melhoria da raça. Eugenia racial para uma eugenia social, diriam alguns cientistas tomados pela ideologia racial.
Temos então que os antecessores de Jair Bolsonaro vieram da Itália nessa primeira condição de colonos, assentaram sua existência no interior de São Paulo e se agregaram a cultura tradicional de mestiços formados nos períodos históricos anteriores para constituir novas características de mestiçagem cultural brasileira, no caso, o caipira paulista com fortes características indígenas, africanas e europeias. Este é o caldo de cultura em que se desenvolveu a família Bolsonaro nas gerações seguintes até chegar ao pai e à mãe de Jair Bolsonaro que cresceram pelo interior de São Paulo desde então como lavradores em potencial cuidando de pequenas glebas de terra, chácaras, no máximo, quase sempre agregados dependentes do serviço nas grandes fazendeiros. Aqueles que vieram com formação e ofício e decidiram desde cedo a serem urbanos foram abrindo seus espaços nos interstícios da sociedade dominante, adquirindo profissões em ascensão, de engraxates e motoristas a mecânicos em fábricas, mascates, vendedores, até pequenos e grandes empresários. Autonomia e riqueza é o que todos buscavam para suas vidas.
O propósito de embranquecer a população brasileira por meio de imigrantes trouxe benefícios que fizeram intensificar em São Paulo um espírito empresarial singular, uma síntese hiperdialética do bandeirante com o caipira e com o novo imigrante dentro do contexto de mudanças econômicas estruturantes, o qual, talvez, carecia, ou ao menos era menos intenso, em outras regiões do Brasil. São Paulo, já rico do café, estava pronto para dar o salto industrial. Mas a cultura caipira presente no século XIX era já tão sólida e potente que não se desfez nem se desmilinguiu com os imigrantes. Manteve-se firme e forte em suas visões de mundo, em sua fluência social, em sua persistência existencial, em sua virtude moral, em sua sagacidade e em sua desconfiança calejada sobre os poderes constituídos, em sua desarmonia malemolente com a natureza. Esta cultura caipira tradicional, pré-imigrantes europeus e asiáticos, não era constituída exclusivamente do pobre coitado sem-terra, de pé no chão, mascando fumo, pescando traíras nos córregos e caçando tatu nas roças de mandioca, mas se estendia como uma dimensão espiritual da elite local, que mandava nos pobres, certamente, mas também tinha deveres para com eles. Um desses deveres era o cumprimento honrado da palavra dada. Outro era o papel de conciliador e juiz que dirime as controvérsias internas e as disputas entre grupos. Incluída nessa elite estava a sempiterna e ubíqua Igreja Católica, bafejando autoridade em seus dogmas, mas autoritária só de boca para fora, pois dentro de cada vigário dormia uma parte da alma indígena tolerante, do ex-escravo sofrido e benfazejo, de um cristianismo diluído pelas crenças africanas importadas e as crenças dos antigos índios tornado caipiras. E assim essa sólida cultura caipira atraiu os imigrantes, se mesclou com seu jeitão de camponeses desbocados, senza paura, que esperavam mais da vida do que a malemolência, a brutalidade do senhor fazendeiro e a sacanagem fingida dos padres. É aí então que essa mesclagem se torna uma síntese cheia de potenciais de fé, esperança e vontade de lutar, e também de muitas contradições, disputas, desgostos, reclamações e maldades perversas.
Os antepassados de Jair Bolsonaro eram italianos do Vêneto, norte da Itália, gente branca de olhos claros. Eis o seu último e atual rebento, hígido, esguio, lábios finos, olhos esverdeados, cabelos claros e lisos, com quase nenhuma característica indígena ou negra. As trisavós, os bisavós e avós e os pais de Jair parece que em realidade fizeram o possível para não misturar sangue com os caipiras tradicionais. Como assim, que tipo de discriminação é essa? Porque Jair não ganhou nada do negro ou do índio, se é mesmo que não tenha ganhado, pelo aparente que vemos. A convivência dos membros dessa cultura mestiça não traria necessariamente a mistura biológica? Bem, quase certo que sim. Mas não necessariamente em todas as ocasiões e para todos os tipos. Os casamentos entre gente trigueira com brancos italianos aconteceram, sim, de acordo com as circunstâncias amorosas e sociais. Mas sempre houve e permaneceu até os dias de hoje o senso de que brancura é sinal de “nobreza”, alguma nobreza qualquer, alguma distinção biológica qualquer que mostre porque alguém pode se sentir superior a outra. Isso vale, às vezes vale muito, mas às vezes não significa nada. As faces trigueiras, os cabelos pretos e lisos ou encaracolados ou pixains, os narizes e lábios grossos, as maçãs do rosto largas, em comparação com as mesmas características brancas, não perturbam o sono ou a honra das famílias nas comunidades, nos bairros rurais caipiras. Eles apontam para uma ascendência de muito longe, pensam todos, que um dia significou algo, mas que já não têm mais nada a ver com a vida atual e cotidiana. Você, branco de olho azul, quer casar-se com uma igual a si mesmo, tudo bem. Mas no meio do caminho surge uma negrinha ou uma cabrocha que lhe atrai e você sucumbe e muda de ideia sem nenhum problema. A família pode até dizer que a raça vai piorar, mas quando seu filho nascer ele será seu filho lindo, moreninho ou trigueiro. Terá sangue da terra ou da raça.
Evidentemente que nessa cultura caipira pós-imigrante a tez clara da pele continua a ser símbolo de alguma superioridade, de alguma ascendência, ao menos, sobre quem tem a pele escura-preta ou trigueira. Mas, até que ponto da sociabilidade e do bem-estar econômico isto se dá, e que importa, se, ao final, é algum trigueiro quem sobe na vida e carrega consigo filhas e filhos para casar?!
Voltando à família de Jair, não obstante, sempre se pode sugerir que seus pais e seus avós, de algum modo, talvez tivessem uma autoconsciência de sua origem europeia, mesmo que, no decorrer dos anos, essa memória não tenha feito mais qualquer sentido ou não lhes tenha granjeado qualquer vantagem social ou econômica. Esse olhar e esse porte branco-italiano, que vemos nas fotos de Jair e seus irmãos, talvez tenha sido um diferencial para o menino Jair, que, solto no redemoinho do caipiral paulista, tenha tido ganas para subir na vida por saltos quânticos, não por sabedoria caipira, que provavelmente tinham seu pai e sua mãe, mas por aquele quantum de existência passada que o empurrava para sair da vida em que se afundara sua família desde sempre. O camponês italiano quisera se engajar no exército de Garibaldi, o caipira de calça curta que aparece aos seis ou sete anos numa foto com seu pai, exibindo fisgado em uma vara um baita de um trairão, sorriso feliz e atento, parecendo sonhar, sem saber que, por mais que gostasse de tudo que vivia, queria pular fora e procurar outro meio de vida.
Com efeito, alguns anos depois Jair estaria fora da cidadezinha de Eldorado Paulista, localizada no pacato e abandonado vale do Ribeira, zona pobre do sul do estado de São Paulo, para onde seu pai tinha levado a família em busca de melhores condições de vida. Aí, aos 15 anos, em 1970, o adolescente Jair, conhecedor dos lugares ao longo do rio Ribeira, se apresentou para ajudar a uma equipe do Exército a procurar onde estaria o perigoso guerrilheiro Carlos Lamarca e seu grupo que tentavam se instalar na região com o propósito de criar um foco de guerrilha para combater as forças militares da ditadura. Não chegaram a encontrar o guerrilheiro, que logrou fugir para a Bahia, não sem antes furar o cerco bem pelo centro de Eldorado, num tiroteio em que vários se feriram e onde ao lado, no colégio, estava o adolescente Jair Bolsonaro. Lamarca saiu incólume e iria se refugiar no interior da Bahia onde eventualmente iria encarar seu destino final. Nesse interim, Jair se sentiu atraído para entrar no Exército e assim o fez. Sua vida mudaria fatalmente.
O adolescente Jair dá de cara com seu destino
Quando uma tropa de militares do Exército, com suas fardas de caqui, suas botas engraxadas, seus apetrechos e armas tinindo e reluzindo, os óculos escuros, bem treinados para agradar e se impor, chega a uma pequena cidade, abre-se ao seu redor uma aura de poder e mistificação por onde quer que passe. As moças querem ver se são jovens e bonitos, os pais ficam com sentimentos dúbios, os meninos não se envergonham de espiá-los, os homens se sentem ameaçados, e os jovens rapazes partem para o frenesi de saber o que os forasteiros vieram fazer, com que meios, instrumentos e armas, e como poderiam se aproximar para empunhar uma arma com suas próprias mãos, quem sabe dar uns tiros de treinamento, ou, na grande sorte, acompanhar a tropa em alguma expedição. Bem, o rapaz Jair ganhou a sorte grande – fez excursões com a tropa pelo rio e pelo interior da mata bruta, onde tantas vezes foi pescar e caçar, com seu pai ou camaradas. Apesar de jovem, conhecia muitos atalhos nos caminhos, muitos poções de pesca no rio Ribeira e muitas paragens por onde passavam caças grandes e miúdas, alguns coitos ideais para se esconder, talvez.
A cidadezinha de Eldorado tivera desde sempre uma vida pacata de pequenos agricultores, plantadores de bananas, palmiteiros e criadores de gado, uns surtos ocasionais de garimpagem, com um pequeno comércio para atrair freguesia de fora e oferecer serviços urbanos básicos – armazém de secos e molhados, uma ou duas farmácias modestas, armarinhos de miudezas e costura, lojas de materiais de construção, de roupas, de tecidos, de aparelhos domésticos, um modesto tabelionato, um cinema, cabeleireiro, barbearia, e alguns serviços de saúde, um médico com visitas semanais e alguns perdidos ou itinerantes dentistas práticos. Naqueles anos, sua conexão com outras cidades da região era precária por estrada de barro frequentada por tropeiros, cavaleiros e caminhões carregando mercadorias e passageiros. O pai do menino Jair, Sr. Percy Geraldo Bolsonaro, homem sem posses, mas de possibilidades, gostava por tudo de ser caipira, e entre tantas tarefas que seu gênio virador lhe favorecera uma delas era ser prático de dentista, ofício que adquirira como ajudante de dentista quando moravam em Campinas ou Jundiaí, uma das várias cidades em que morou com sua família. Seu filho Jair também se virava bem, desde tenra idade, além de frequentar com entusiasmo a escola, em tirar palmito, pescar para consumo e para vender na rua, roçar, derrubar capoeira, fazer aceiro de roça, capinar por empleitada, tudo em quanto de serviço de roça, e até garimpar pelas barrancas do rio Ribeira e seus córregos, o jovem era capaz de fazer.
Porém, do quê mais gostava em seus jovens anos era pescar e caçar. Gente de cidade grande não faz ideia do que produz na alma do caipira, do caboclo, da gente rural, o entusiasmo de acordar às quatro da madrugada, acender o candeeiro, dar uma checada nas mochilas e trouxas já arrumadas, nas varas de pescar, nos carretéis de linha e anzóis variados, e nas espingardas, conferir no surrado bornal a caixinha de espoleta, os cartuchos de pólvora, os molhos de bucha de cordame e os saquinhos de chumbo, tomar uma xícara de café com rapadura que sua mãe, já desperta, acabara de fazer, e sair no frio da madrugada, sem capote, para se encontrar com colegas e camaradas e partir de montaria ou a pé para o mato, para o rio, para os roçados, para as capoeiras velhas para pescar ou caçar, ou fazer as duas coisas alternadamente, e também aproveitar a viagem para tirar palmito ou colher maracujá do mato. Sentir o frêmito do peixe grande fisgado a puxar forte a linha, arrastar o peixe de supetão e dar-lhe cabo com uma porretada na cabeça; ou enrijecer-se de repente com o estalido de uma folha suavemente pisada por um veado ou uma paca ou uma simples cotia, de retorno à sua dormida diurna no oco de uma centenária árvore caída há dezenas de anos, concentrar toda sua energia sensual nos ouvidos, depois nos olhos, depois paulatinamente agasalhar a espingarda pica-pau entre as mãos e a coronha firme no recosto da junção do ombro com o sovaco, apontar a mira do cano no rumo de onde sentiu vir o crepitar de folhas secas, de repente enxergar o vulto do animal já desconfiado, em passo lento, nervoso, respirar fundo ou não respirar, enquanto a adrenalina sobe ao cérebro e enche o pulmão, garganta seca e olhos que se embaçam e perdem o foco, até que, sem mais se mexer, puxar o cão com o polegar em dois movimentos curtos, mirar para a mancha escura onde imagina esteja o animal, puxar o gatilho duro e sentir o disparo com um estrondo que lhe fere os ouvidos, espirra pólvora queimada nas narinas e o coice da corona no peito e, por um átimo de segundo, já não saber onde está ou o que houve. Breves segundos, pois logo se escuta o estrebuchar das pernas do animal em estertores e corre-se para dar-lhe com uma coronhada ou uma facada na garganta o benefício de pouco sofrimento para a morte.
Muitos brasileiros, exceção aos urbanoides regulamentados, entretanto, tiveram e, pois, ainda podem ter oportunidades de experimentar momentos como esse descrito, momentos que fizeram parte e constituíram elementos essenciais da moral profunda da cultura brasileira, quando ela era ainda íntegra e consistente com a vida urbana e respondia pelos desafios das transformações sociais. Em 1970, só os mais neurastênicos se esquivavam de entender a alegria de caçar, bem como o ato de matar animais domésticos. Em 2020, se contam deles aos milhões. A cultura brasileira está sofridamente dividida entre uma moral tradicional, compatível com um passado construído e, de certo modo, com a moral das culturas tradicionais do mundo inteiro, e uma ética nova, imposta de cima para baixo, de fora para dentro, como tentativa de criar novas modalidades de comportamento que sejam compatíveis com o que se acredita serem as grandes mudanças contemporâneas nascidas da intensidade do desenvolvimento social e econômico e da globalização. Pena e compaixão pelo sofrimento dos animais virou nos últimos tempos horror e nojo pela morte imposta pelos homens aos animais, como se de outro modo fosse possível ao homem encontrar seu alimento fundamental. Essa divisão explica muito da crise brasileira da atualidade.
A chegada dos homens do Exército a Eldorado fez presente toda a verdade do regime político em voga. Que havia um dissenso político no país se sabia por notícias e se sentia à flor da pele. Que havia grupos de guerrilheiros cometendo atrocidades nas cidades, roubando bancos e explodindo quartéis, se sabia pelas notícias televisivas e pelo rádio. Mas que um foco de guerrilheiros estivesse tentando fincar raízes no vale do Ribeira, aproveitando a densidade da mata que caracteriza a região, ninguém fazia ideia, nem por quê, nem precisamente para quê, nem muito menos por que meios. Estaria esse foco de guerrilha criando um exército particular, construindo um forte, cercando uma área de terras, abrindo um campo de aviação? Iria invadir as casas dos moradores, dominá-los, prendê-los, torturá-los, roubá-los, escravizá-los? Teria esse foco poder para invadir São Paulo, tomar o Rio de Janeiro, marchar sobre Brasília? Ou estava simplesmente criando confusão na população, exibindo arrogância e tolices, perturbando a ordem social corriqueira? Se fossem poucos, deveriam ser varridos do seu esconderijo, serem interrogados, torturados, serem mortos, ou, por outra, serem presos, levados para a cidade grande, julgados e condenados à cadeia? A população local nem por um momento cogitou de que os guerrilheiros teriam vindo para liberá-la da opressão ou para criar um experimento social para servir de base a um novo modelo socioeconômico e, quiçá, a uma nova forma de regime político, uma nova democracia com intensa participação dos trabalhadores rurais, da gente oprimida e destituída de seus meios de sobrevivência, quem sabe um regime socialista ou comunista. Tais pensamentos podiam até ter passado pela cabeça de um ou outro, talvez a família de um dos fazendeiros mais abastados e mais bem conectados politicamente, talvez a professora local que fora instruída numa cidade maior e sonhava com ação política no seu município. Para a imensa maioria da população essa notícia de guerrilheiros dentro da mata soara como uma aberração, algo para ser destruído em nome do governo e da paz social.
O certo é que, de acordo com o próprio Bolsonaro, algumas pessoas foram contatadas e se voluntariaram para servir de escoteiros e batedores e levar a equipe do Exército para alguns lugares possíveis de servirem de coito, onde esse bando de guerrilheiros poderia se esconder e se preparar para as futuras batalhas. E o jovem Bolsonaro foi um deles.
A experiência pessoal de Jair nesse acontecimento foi crucial para mudar de rumo na vida, na verdade, encontrar um rumo para a sua vida. Desses soldados e oficiais com olhares confiantes e atitudes concisas e certeiras, com fala de autoridade e visão de futuro, com alojamento, comida e proteção à disposição, havia, sim, um futuro para o jovem sincero, intimorato e virador. Não haveria mais retorno à cidade acanhada, ao desfrute desabrido da natureza, à domesticidade da vida caipira, com suas farras e desafios, suas gozações, suas grosserias rasteiras, seu rastaquerismo, suas impertinências, sua ingenuidade e insciência e, enfim, sua fortitude e capacidade de recuperação diante dos infortúnios. Tudo de bom e de ruim já estavam marcados a ferro e fogo no seu peito e o iriam orientar seus passos nas vitórias e pelos percalços da vida. Jair saberia ver e valorizar nos outros as qualidades e falhas que pareciam com as suas, e confiaria sobretudo em quem lhe parecesse demonstrar ter ares de alma gêmea.
Jair vira militar
O que Bolsonaro aprendeu no Exército foi fundamentalmente que sua vida poderia sempre ser melhor do que fora e do que antes lhe parecera. Dentro de uma disciplina rígida, de um modo de pensar doutrinário, de uma estreiteza comportamental, havia margem para almejar muitas coisas, para ser ambicioso, para sonhar com algo mais – especificamente, para ser líder. E Bolsonaro soube se destacar a cada ano passado como aspirante a oficial na Academia Militar de Agulhas Negras (AMAN), localizada em Rezende, RJ. Depois, como oficial, tenente e até alcançar o posto de capitão, demonstrou ter disciplina, mas também ousadia, a ponto de receber elogios escritos de vários de seus superiores.
Doutrinariamente, Bolsonaro aprendeu que as Forças Armadas são disciplinadas para defender a soberania do Brasil, custe o que custar, inclusive a própria vida de cada militar, e que assim o haviam feito, em conjunto com as forças democráticas, em março de 1964, e continuavam a fazê-lo combatendo grupos guerrilheiros em todas os seus fronts, bem como todos aqueles que pretendessem subverter a ordem política e social. Bolsonaro aprendeu de modo resumido o que estava em jogo na luta política, tanto no plano nacional quanto no plano internacional. Para ele foi ficando claro e decisivo que interessava estar ao lado dos militares contra os subversivos, os comunistas, os liberais irresponsáveis, e toda a chusma canalha dos corruptos – que eram muitos e estavam em todas as partes. A simplicidade dessa doutrina não obscurecia a complexidade de outras questões. Uma delas seria saber que o regime de quartel cria sua própria subversão moral, com uma permanente tendência dos escalões superiores para a pequena corrupção, o aproveitamento de vantagens apenas implícitas, o enrijecimento da hierarquia para uma maior e desnecessária subordinação dos escalões inferiores, e outras coisas mais.
Por fim, o que se via como algo cada vez mais absurdo era a disparidade entre os quadros permanentes e os recrutas, e entre os oficiais de médios e alto escalão em relação aos de patente mais baixa. Os privilégios de direitos de moradia, subvenções, privilégios corporativos, tempo para se reformar eram claramente desproporcionais em favor de altos escalões. O descontentamento sempre existira entre os escalões inferiores, mas agora, já sendo largamente discutido a chegada do prazo de validade do poder dos militares sobre o governo civil, os ressentimentos começavam a aflorar nas reclamações dos baixos escalões, sobretudo em relação às diferenças salariais. Em dado momento, em 1986, o tenente Bolsonaro de repente surge a lume de um modo muito contundente, explicitamente subversivo à ordem. No bojo de reclamações generalizadas por parte do funcionalismo público contra o governo Sarney, o primeiro presidente pós-regime militar, especialmente em relação a defasagem salarial, Bolsonaro escreve uma carta contundente que a revista Veja publica em que denuncia a defasagem salarial como o principal motivo por que tantos aspirantes da AMAN estariam abandonando suas carreiras, e não sendo expulsos por causa de supostos roubos ou indisciplina, ou saindo voluntariamente por outros descontentamentos. O caso catapultou, como diria o próprio anos depois, Bolsonaro ao público e eventualmente à política, e levou o Exército a intervir e disciplinar o tenente Bolsonaro com uma punição de 15 dias de prisão em quartel.
Entretanto, não era mais para Bolsonaro ficar quieto. Quando ele encasqueta com algo, ele vai adiante senza paura, como se não houvesse perigo à frente. Esse comportamento o iria caracterizar na política e na moral pelo resto da vida.
Em 1987, uma jornalista da revista Veja iria fazer uma matéria particularmente escandalosa, e até certo ponto perigosa para a situação política um tanto dúbia em que o novo regime democrático do país ainda se encontrava, em que expunha um certo plano ou esquema feito por dois oficiais egressos da AMAN que objetiva explodir diversos pontos estratégicos na região metropolitana do Rio de Janeiro. Havia inclusive um croquis, supostamente desenhado pelo próprio Tenente Bolsonaro, que delineava explosivos no aqueduto do rio Gamboa, que abastece a cidade do Rio de Janeiro. A jornalista e a revista Veja estavam absolutamente seguros da veracidade da matéria e, na iminência de uma crise entre o Exército e o novo regime político representado pelo presidente Sarney, passado o primeiro passo em que Bolsonaro fora julgado por uma comissão de inquérito do Exército, que empatara na contagem dos votos sobre a inocência do tenente, o caso foi levado ao Supremo Tribunal Militar. Depois de seis meses de idas e vindas, acusações e defesas, matérias e notícias em todos os jornais, Bolsonaro afinal foi considerado inocente. Quer dizer, não teria havido complô algum, o croquis não havia sido desenhado por Bolsonaro, tudo não passara de uma fantasia de uma repórter e da sanha por notícias de uma revista.
Bolsonaro havia se tornado uma figura nacional como um militar que defende a corporação, especialmente justos salários. As Forças Armadas se deram conta de que tinham um problema a resolver e o resolveram promovendo o tenente a capitão e, em pouco tempo, dando oportunidade para ele requerer sua reforma remunerada. Com efeito, Bolsonaro virou capitão em agosto de 1988, já candidato, elegeu-se vereador do Rio de Janeiro em 15 de novembro, com pouco mais de 11.000 votos, e foi reformado em dezembro do mesmo ano.
O legado militar na personalidade de Bolsonaro
Quem vê Bolsonaro em pé, perfilado, hígido como uma estátua, sem pestanejar ou resfolegar, sente que o homem vem da casta militar. A postura perfilada é para Bolsonaro o símbolo máximo de tudo que representa o Exército brasileiro: seriedade, hombridade, auto-sacrifício, doutrinarismo, mando e obediência, submissão e autoridade. Quem o escuta falando em compasso, discursando de improviso ou lendo um discurso redigido, sabe que foi no Exército, lendo a ordem do dia, que ele verdadeiramente aprendeu a ler e a escrever, como se fosse um autômato, um ser da ordem, da corporação. O modo natural de falar em público é proferindo sentenças, rebatendo contradições com firmeza, rebarbativo. Não há diálogo com Bolsonaro, a não ser, talvez, no íntimo de sua família ou entre amigos próximos. Anos de presença política, de fazer campanhas eleitorais e Bolsonaro jamais diminuiu o seu ímpeto rebarbativo com eleitores. Ele não pretende ganhar eleitores pela suavidade e sim pela imposição, e sabe que há muitos e muitos eleitores que querem exatamente isso, essa atitude, pois assim é que são os homens de honra e de palavra.
O positivismo como modo de raciocinar
O positivismo arraigado no militarismo brasileiro que favorece a criação do pensamento como doutrina tem um efeito rígido e inescapável no modo de pensar dos militares ou de quem passa por escolas militares. Já se escreveu bastante sobre esse tema, mas aqui faz-se necessário retoma-lo para darmos um novo foco. A disposição explanativa do positivismo militar pode ser vislumbrada como se fosse um gráfico ou um organograma feitos por um engenheiro ou um administrador de empresas. Aqui temos delineados em caixinhas uma série de conceitos básicos, em geral sem comprovação factual ou abertura à reavaliação, que se distribuem em ordem de causalidade direta, e que vão sendo demonstradas passo a passo até sua conclusão final, a qual vai resultar numa frase grandiloquente que é tomada como a certeza e a verdade doutrinária. Tipo: A soberania nacional depende da guarda das fronteiras. Como se algum país da América do Sul tivesse qualquer peso para invadir o Brasil. Isto vai valer para qualquer tema, desde estratégia e táticas de guerra, passando por concepções da História, até lições de patriotismo, política, ética e religião. Antíteses, nuanças, contradições, ambiguidades, inconsistências e conexões entre os elementos considerados e com outros elementos de natureza díspar a serem incluídos no esquema, e que ganham significado só por meio de outras formas de raciocínio lógico, são necessariamente negados e/ou desconsiderados. Assim o mundo fica claro e compreensível para qualquer um que não se perturbe com a obrigação de se responsabilizar pelos erros e equívocos dessa forma de pensar.
Eis como funciona o positivismo como base lógica na expressão filosófica militar. A bem da verdade, essa forma de raciocínio não é exclusiva aos militares. O positivismo como forma de raciocínio está presente na cultura média brasileira, como se fosse parte do próprio modo de pensar do brasileiro. Ele penetrou e se expandiu na cultura média brasileira com ares de raciocínio intelectual e científico desde o terceiro quartel do século XIX e assim foi responsável pela formação de boa parte da inteligência nacional desde então. Frequentemente o modo positivista de pensar entra em conflito com modos mais complexos ou sofisticados, tais como a dialética e as lógicas da diferença e paraconsistentes, não só em debates epistemológicos nas universidades, mas até em calorosas discussões populares, em mesa de bar, discutindo futebol. Mas a tendência modernosa do brasileiro de não querer discutir quantos anjos cabem na cabeça de um alfinete, ou temas cabulosos e detalhados leva o modo positivista a exercer seu forte apelo de decisão ao resolver as disputas de um modo definitivo. Está mais do que comprovado, isto é verdade, conclui por fim o arguidor vencedor.
No caso Bolsonaro, sua passagem pelo militarismo o assegurou da validade de sua tradição de pensar e argumentar e o fez mais confiante de que discutir nuanças sobre qualquer tema é um desperdício de inteligência. Muitas vezes suas atitudes bruscas parecem autoritarismo em disfarces, mas é só lógica positivista em ação. Quando mais e melhores argumentos lhe são interpostos ele é capaz de recuar de suas opiniões prévias, ponderar e adquirir novas convicções.
A redenção dos militares
Bolsonaro entrou na vida militar em 1972 ao passar num concurso para a Escola Preparatória de Cadetes do Exército, em Campinas, SP, onde ficou por um ano até que, em março de 1973, com 18 anos, passou em novo concurso e foi para a AMAN com a ideia de se tornar militar definitivamente. Era um tempo em que o prestígio do governo militar e dos militares estava no auge, com crescimento econômico às alturas e presidente popular frequentando estádios de futebol. Não obstante, a pauleira comia solta pelos interstícios da política nacional, como focos de guerrilha em vários locais, especialmente no sul do Pará, e batidas de grupos oficiais e paramilitares exercendo a repressão sem dó nem piedade. E deixou o Exército, em 1988, nos primeiros anos da redemocratização, ao mesmo tempo em que os militares caíam no fundo do poço em falta de prestígio e respeitabilidade.
Bolsonaro efetivamente dá sinais claros de que continua a pensar que a redenção dos militares é essencial para o bem-estar do Brasil. Quer reconhecimento da positividade do papel que exerceram nos anos do regime militar, e briga exasperadamente contra quem continua a atacar esse período. Dá a clara impressão de que acredita que um regime militar, pelo menos daquele tipo que foi exercido no nosso país, é mais eficiente do que uma democracia corriqueira, sobretudo uma como a brasileira. Quando surgiram os primeiros sinais de um complô militar, liderado por Chávez, na Venezuela, Bolsonaro soltou vivas de satisfação. Depois, mudou de opinião, talvez porque visse que tinha características da esquerda comunista.
Entretanto, não parece ser esse gosto pelo militarismo uma convicção natural, e sim reativa, pois suas atitudes individualistas, sua vontade de liberdade para fazer o que for possível dentro de uma medida de respeito a terceiros, parece-lhe ser de mais genuína convicção. Por exemplo: pescar em águas marinhas desde um promontório em Mangaratiba, RJ, é considerado por ele uma atitude de liberdade, enquanto ser multado pelo órgão fiscalizador lhe um ato arbitrário do Estado e suas leis, consideradas um tanto espúrias. Que história é essa de um simples pescador de vara e carretilha ter poder para levar à depleção o estoque de tal ou qual peixe do mar? Ou, por outra, por que de tantos pardais, sinais de multa, nas rodovias, senão só para pegar caminhoneiro distraído?
Enfim, não é que se possa dizer que Bolsonaro seja um democrata convicto, que daria a vida por essa forma de regime político, tal qual um Péricles de Atenas, ou, quem sabe, um Ulysses Guimarães (sic), mas é que Bolsonaro é fruto de uma cultura aberta e dada a extravagâncias individualistas, como o é a cultura caipira paulista, que aceita até autoritarismo, porém sob medida, mas não arbitrariedade aleatória, ao gosto de uma cúpula qualquer de Estado. Essa posição política libertária favorece a Bolsonaro uma flexibilidade para entender e encaminhar ideias morais e comportamentais que o grande segmento do povo brasileiro, que vive a cultura tradicional de base, ou que advém dela e dela sente falta, capta e saca com intensa convicção e força d’alma. Uma dessas ideias é a de que o sentimentalismo, a autocomiseração, o mimimi são perda de tempo e desrespeito aos outros. Como diz a letra de Vinicius de Moraes, que certamente não estaria com Chico Buarque nesse desprezo a Bolsonaro, “prá que chorar, prá que sofrer, se há sempre um novo amor, cada novo amanhecer …”
A ojeriza ao comunismo aumenta
Por uma tremenda ironia do destino, a redenção dos militares brasileiros que deram o golpe de 1964 e construíram o regime militar, de cunho ditatorial, se revela ultimamente com mais precisão no aumento que se observa no Brasil e mundo afora de uma clara ojeriza ao comunismo, seja como forma de governo, seja como doutrinação. Como forma de governo, todos os países que adotaram ou lhes foram impostos regimes comunistas deles se safaram para seu próprio bem. Até Cuba, que permaneceu por mais tempo na imaginação da sociedade brasileira como um país bom para seu povo, precisamente por ser comunista, vem perdendo essa aura de graça e de modelo, mesmo em festejados aspectos sociais, como escolaridade para todos e medicina popular. O colapso da União Soviética, em 1991, e a reviravolta capitalista da China desmoralizaram a ideia de que regimes comunistas e economias comunistas são ideais para a humanidade, e assim já não fazem a cabeça de qualquer jovem ingênuo entrando em universidade pública brasileira. “‘Pera aí, ainda faz, sim, mas com menos vigor e convicção.”
Pois que, a doutrinação comunista, vista como toda análise derivada dos textos de Karl Marx, seus epígonos e seus debatedores, que trata de questões da sociologia, da ciência política, da antropologia, da filosofia, bem como de suas aplicações nas áreas da psicologia e da pedagogia, predomina nas universidades e continua a ser elaborada na mesma linguagem marxista de desde os anos 1960. Esta doutrinação é reconhecidamente um fenômeno mundial e tem sido comentada por muitos filósofos e sociólogos e outros cientistas sociais de cunho conservador desde talvez a chegada nas universidades europeias e americanas dos textos críticos ao comunismo elaborados por autores como o filósofo polonês Leszek Kolakowski até os últimos escritos do inglês Roger Scruton. Nos últimos tempos, tais comentários e críticas se consolidaram como a base de uma espécie de renascimento de um modo de pensar conservador, que havia sido praticamente rejeitado desde o fim da Segunda Guerra Mundial. No Brasil, que já teve conceituados pensadores conservadores no passado, como Mário Ferreira dos Santos, Miguel Reale e, de certa forma, Antônio Paim, esse renascimento aconteceu graças à inteligência, dedicação e persistência do filósofo Olavo de Carvalho, não sem ter pago um alto preço por sua ousadia intelectual.
Entretanto, o pensamento conservador, que certamente inspirou Bolsonaro nos últimos quatro ou cinco anos de sua vida política, graças à relação de seus filhos com Olavo de Carvalho, é ainda tão somente um ponto de luz azulada na vermelhidão esplendoroso do pensamento esquerdista hegemônico. Pelo tanto que as consequências desse pensamento ocasionou de negativo ao mundo, o fenômeno dessa continuidade se apresenta como um enigma a ser esclarecido. Por que, afinal, depois da debacle comunista, ainda há tanta gente da sociologia e da ciência política que continua a acreditar que as ideias que levam ao comunismo são merecedoras de estudo preponderante e de doutrinação? Há algo nesse mundo da pós-modernidade que necessita da dialética exclusiva para se entender ou se conformar consigo mesmo?
O Capitão Bolsonaro entra para a política
Aos 33 anos de idade, o capitão Bolsonaro se viu subitamente levado a se reformar, não se sabe se a contragosto. Porém, bem ou mal, com uma renda vitalícia, e logo com uma vontade imensa de crescer na política. O privilégio de ganhar uma renda vitalícia em tão tenra idade só se compara com aquele que o futuro presidente da república Fernando Henrique Cardoso recebera por sua aposentadoria compulsória da USP, em 1969, ao arbítrio do AI-5, aos 37 anos de idade.
Bolsonaro ainda estava no Exército quando se candidatou e se elegeu na primeira tentativa a vereador do Rio de Janeiro, com mais de 11.000 votos, quase todos obtidos na zona norte e oeste da cidade, particularmente nos bairros onde se encontram instituições, instalações e residências militares. Dois anos depois ele se candidataria a deputado federal e seria eleito com 76.000 votos, e daí por diante sua votação iria ser crescente em quase toda eleição. Quer dizer, ao longo de 29 anos, Bolsonaro manteve e ampliou seu eleitorado pela atenção que lhe dava e pelo tanto de exposição de controvérsias que criou ao longo do tempo. Sua personalidade política se amoldou pela estridência com que apresentava ideias, em geral de ordem comportamental ou moral, rebatia opiniões sobre política e sobre suas atitudes verbais, criticava com veemência a imprensa pelo viés supostamente sempre negativo dado às autoridades, às polícias, enquanto pareciam favoráveis aos criminosos, aos jovens delinquentes, sempre em nome dos direitos humanos. E mantinha-se limpo de qualquer convivência com empresários ou funcionários públicos que lhe pretendesse levar ao caminho da corrupção.
Para quem pertence às classes médias urbanas, com perfil de classe média e alta, sentindo-se possuidor de educação e etiqueta, especialmente no Rio de Janeiro, Bolsonaro parecia um sujeito desequilibrado, com mentalidade autoritária e comportamento fascistoide, defendendo o regime militar, já passado e a ser expungido da história, visto por ele como se tivesse sido a nona maravilha do universo político. Entretanto, para a maioria da população que se sentia cada vez mais excluída das inovações tecnológicas e comportamentais, o comportamento cru e desavergonhado, aparentando honestidade e sinceridade, e as falas francas e diretas de Bolsonaro foram ressoando cada vez mais persuasivas e envolventes, na medida em que a população ia se dando conta de que o desassossego, os crimes e os despautérios que dominavam a vida em seus bairros e comunidades tinham ultrapassado quaisquer atitudes de tolerância ou leniência, independente do papel de ajuda das gangues de bandidos aos que necessitavam, razão pela qual os grupos criminosos tinham crescido e ampliado suas ações nas comunidades e a conformidade por parte da população pobre, desassistida e em geral destituída de razoáveis condições de existência. Os novos e crescentes eleitores de Bolsonaro a princípio aparentavam vir de um estrato social médio-baixo, gente de bairros esquecidos pelo poder público ou desapreciados pelos bairros superiores da cidade, porém em geral com empregos mais ou menos garantidos ou, como se diz correntemente, com capacidade de se virar e criar uma família. Por fim, novos eleitores foram surgindo dos bairros mais pobres e das favelas, onde as condições de vida são duras e sofridas, lugares abandonados pelo serviço público e maltratados pela bandidagem efervescente. Em determinado momento, Bolsonaro alcançou o segmento dos evangélicos pelas posições moralistas contra o aborto e sua veemente contrariedade à leniência do Estado a traficantes, às milícias e a delinquentes em menoridade.
Por um bom tempo, uma boa parte dos eleitores de Bolsonaro sentia que não podia abrir o jogo de ter votado nele ou de gostar de suas posições e opiniões, pelo tanto que eram criticadas na imprensa e pela ojeriza dos segmentos sociais de classe média e alta do Rio de Janeiro. Comportavam-se com humildade e vergonha diante das críticas e gozações, sem conseguir articular um argumento sequer que não resultasse na condenação e no opróbio de seu vizinho ou colega de trabalho mais fino e educado. Os evangélicos tinham a si mesmos, a proteção grupal, a voz dos pastores e a fé desabrida para encarar as injúrias, e foram eles, efetivamente, que deram um imenso impulso às pretensões mais altas de Bolsonaro. Consequentemente, para Bolsonaro não sobrou nenhuma outra alternativa senão abandonar sua tradicional e cultural religião católica para se imbuir de uma nova fé e da caridade cristãs e se tornar evangélico, pela graça de Deus, o Deus dos judeus, do Velho Testamento. E foi lá, em Israel, nas águas do rio Jordão, que o futuro presidente iria ser ritualmente batizado por um dos mais conceituados e afamados pastores brasileiros.
A mudança de compromisso religioso tem a ver também com a persuasão gentil e de boa fé de uma evangélica que lhe trouxe um novo alento ao coração, sua esposa Michelle Bolsonaro, para quem ele fez até uma operação de reversão de vasectomia para poder gerar uma filha. A trajetória amorosa de Bolsonaro não interessa nesse ensaio, a não ser para registrar o papel de seus filhos em sua carreira política mais recente. Seus três filhos do primeiro casamento, Flávio, Carlos e Eduardo, são há alguns anos políticos e conselheiros do presidente, tendo exercido papéis invulgares na ascensão do pai na campanha presidencial. Seu quarto filho, Renan, do segundo casamento, é ambicioso aluno de uma faculdade de Direito, e sua filha Luiza, já entrando na adolescência, acalenta a benevolência paterna em residência no Palácio Alvorada.
Ao longo de sete eleições consecutivas, com votações crescentes até alcançar o pico de 460.000 votos em 2014, sendo o primeiro mais bem votado deputado federal do estado do Estado do Rio de Janeiro, Bolsonaro trilhou um caminho de atuação parlamentar mais para o lado do medíocre do que de brilhantismo. Era contado como membro do baixo clero parlamentar, aquele imenso e multipartidário coletivo de deputados que têm muito pouco a dizer ou acrescentar nas pautas legislativas, e que servem muito mais para acompanhar votações distraidamente e fazer número. Os poucos PLs apresentados pelo assíduo, porém infértil, deputado não são dignos de quaisquer comentários airosos. Seu ressalto se dá, de forma consistente, pela discussões que frequentemente provoca, ou de que frequentemente é vítima, nos debates que se dão nas reuniões de comissões sobre temas como violação de direitos humanos, movimentos sociais, políticas protetivas a minorias, feminismo e feminicídio, direitos difusos, ditadura militar, violência policial e, mais recentemente, políticas educacionais para minorias, questões de gênero, direito ao aborto e outros tais temas do mesmo jaez. Nesses debates o Dep. Bolsonaro se destaca pela contundência de suas falas e pela estridência rebarbativa com que se apresenta. Não parece haver meneios e contemporizações entre Bolsonaro e seus debatedores. Ele não parece jamais favorecer espaço para conciliações e meios-termos, nem durante, nem após os debates. Por vezes, o calor dos debates se estende para fora dos salões e chega aos corredores da Câmara dos Deputados. Alguns dos debatedores de Bolsonaro, quase sempre dos partidos de esquerda, também não lhe dão folga, nem remissão, mas aproveitam de toda e qualquer circunstância para atacar e difamar suas posições pelos meios a que têm acesso privilegiado, como as emissoras de rádios e televisão. Alguns deles ficaram notórios nacionalmente graças a esses entreveros pessoais com o deputado. Invariavelmente mal falado, mal comentado e excessivamente vilipendiado como um ser destemperado e de mau caráter, Bolsonaro só começou a melhorar sua posição de contendor na esteira das mídias sociais, o que quer dizer, praticamente, de 2011 ou 2012 ao presente. Aí então o público passou a saber os contextos das discussões, os teores das falas e o valor argumentativo delas, e assim obteve melhores condições, dados e informações para fazer suas avaliações. Bolsonaro passou então a ser mais ouvido e observado e suas falas passaram a ressoar mais substantivas e razoáveis.
Entre os tantos tais entreveros, pode-se destacar dois como de grande contundência. O primeiro é aquele com a Deputada Maria do Rosário, do PT-RS, a propósito do índice de violência a mulher, estupros e feminicídio no Brasil. O debate já fora acalorado na comissão, mas quanto chegou nos corredores a verve de ambos os deputados ganhou ares de briga de botequim. Acusado não só de machista e estuprador, este segundo epíteto evidentemente inaceitável para qualquer inocente, Bolsonaro partiu para os finalmentes ao gritar para a deputada Maria do Rosário que ele, Bolsonaro, só não a estuprava porque ela não valia a pena!
Difícil achar algo de mais escrachado do que essa frase, realmente. Mas houve outro incidente igualmente escandaloso e ominoso, para se dizer o mínimo, quando, durante a votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016, o Dep. Jean Wyllis, do PSOL-RJ, se esgueirou entre os colegas deputados e tascou uma cusparada no rosto de Jair Bolsonaro, e rapidamente se desembaraçou por entre os colegas e escapou de uma contra-ataque. Isto aconteceu sob as lentes das câmeras de televisão, divulgando o evento ao vivo. O mesmo deputado depois murmurou aos colegas correligionários, espumando orgulho e satisfação com seu feito, que fizera aquilo para rebater a atitude imperdoável de Bolsonaro, na ocasião de pronunciar seu voto pelo impeachment, ao homenagear descaradamente o falecido Coronel Carlos Alberto Ustra, que ficara notório pela acusação de ter participado de torturas a presos políticos durante o processo da repressão policial aos guerrilheiros esquerdistas, entre 1967 e 1977, aproximadamente. Esse coronel era médico e também teria coonestado práticas de tortura em diversos outros casos. É certo que Bolsonaro e Jean Wyllis nunca de bom grado viajaram no mesmo voo e jamais iriam se dar bem daí por diante. A esse propósito, e antecipando o que caberia dizer mais adiante, fala-se à boca pequena que o ódio de Jean Wyllis seria tão grande e desvairado que ele pode ter sido o deputado do PSOL que teria incitado, em alguma suposta conversa nas dependências da Câmara dos Deputados – sem querer, querendo – a Adélio Bispo a atentar contra a vida de Bolsonaro, o que viria a acontecer em setembro de 2018, no auge da campanha presidencial, em Juiz de Fora. A política brasileira tem de um tudo, mas assassinatos de figuras expressivas são raros. Desde Pinheiro Machado, notório senador pelo Rio Grande do Sul, apunhalado nas costas, no Rio de Janeiro, em 1918, e João Pessoa, governador da Paraíba, candidato a vice-presidente na chapa derrotada do candidato a presidente Getúlio Vargas, baleado em Recife, em 1930, – que não havia crimes de tão largo porte no Brasil. No caso em tela, Bolsonaro por pouco não morreu, mas sua fortuna o levou à vitória presidencial.
Sendo o primeiro exemplo uma amostra da indignidade explícita do comportamento de Bolsonaro, já o segundo pode parecer um momento de sacrifício e, de algum modo, de redenção. O certo é que ambos os incidentes marcaram um momento do Brasil e da história política de Bolsonaro. Os dois deputados contendores, é certo, perderam bastante votos na eleição de 2018, enquanto Bolsonaro se elegeu presidente, mas ambos foram eleitos. Jean Wyllis, por misteriosas razões desconhecidas, renunciou ao seu mandato e se auto-exilou na Europa. Seu substituto e suplente, David Miranda, também do PSOL, com votação irrisória, igualmente faz parte do movimento gay, sendo casado com o notório jornalista americano, aclamado como divulgador de notícias obtidas de hackeamento de celulares e bancos de dados, Glenn Greenwald.
Para os colegas políticos, Bolsonaro se apresenta como um sujeito afável e bem-humorado, com atitudes e brincadeiras de companheirismo, porém com um certo claro distanciamento ou superficialidade de sociabilidade, ainda que isto pareça algo como timidez ou humildade. O jornalista e ex-deputado Fernando Gabeira traçou em breves linhas um perfil de Bolsonaro, de quem foi colega por três mandatos, ambos do estado do Rio de Janeiro, mesmo sendo oriundos de outros estados, perfil este que acentua as características de cordialidade, interesse e discrição. Além da capacidade de ouvir e absorver considerações. Em nenhum momento Gabeira ou qualquer outro colega deputado ou alguma cigana vaticinante teria conjecturado a possibilidade de Bolsonaro um dia pretender seriamente se candidatar e muito menos se tornar presidente da república, tal vinha sendo considerado seu trabalho parlamentar como abaixo da mediocridade, praticamente reativo, raramente proativo. Mas a história, como sabemos, tem caminhos largos e caminhos estreitos, veredas e atalhos, e poucos têm a fortuna de saber qual deles trilhar e em qual momento. Bolsonaro soube.
Bolsonaro e os partidos políticos
Consta no currículo de Bolsonaro que ele já foi membro de sete partidos, e hoje, maio de 2020, está sem partido, ao que parece à espera do registro no Supremo Tribunal Eleitoral de um novo partido que possa chamar de seu, exclusivo. Realmente, é muito inconsistência partidária, muita indecisão, ou melhor, descrença, sobre em que consistem manifestos, missões, declarações, objetivos políticos, análise de conjuntura e como se comportar politicamente em convivência com colegas. Tudo de partido lhe parece pessoal, altissonante, falso, insincero, mentiroso. Para que fazer o jogo? Com efeito, Bolsonaro não tem nem cultiva correligionários, o que ele tem e espera obter cada vez mais são seguidores, sem ou com pouca capacidade e iniciativa de tomar decisões fora de sua alçada.
Por outro lado, ao que parece, de nenhum desses sete partidos Bolsonaro saiu brigado, intrigado ou com inimigos. Seu conforto e satisfação em cada partido parecem ser de curta duração, e para ele parece indiferente o esforço de, a cada novo momento político, sair à procura de novos companheiros em novos partidos. Difícil imaginar as razões dessa inconsistência, quando é evidente que ele tem uma boa disposição para se manter leal a hábitos, convicções e ideias. Imaginem que Bolsonaro tem se servido do mesmo cômodo e simples barbeiro, localizado num bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, há mais de 20 anos! Por que não uns mesmos colegas políticos?
Os partidos aos quais Bolsonaro foi filiado pertencem àquele lado da política chamada de conservadora, ou de direita. Nesse lado pululam dezenas de partidos, quase todos comandados por uma figura política forte e hábil, ou por um pequeno e seleto grupo de correligionários, isto é, de gente que tem os mesmos interesses político-financeiros. Diversos desses partidos estão no rol daqueles que praticavam com afinco e destreza (até serem surpreendidos com as mãos nas botijas) a arte de dar apoio aos governantes em troca de benefícios em verbas a serem usadas em seus currais eleitorais, empregos para seus apaniguados e vantagens financeiras de ordem pessoal, em tudo e por tudo configurando atos considerados corrupção. Entretanto, em nenhum deles Bolsonaro foi jamais visto como alguém que participou de conluios e acordos para auferir benefícios financeiros, seja para suas campanhas políticas, seja para uso pessoal. São poucos os políticos no Brasil que não caíram nessa tentação tão arraigada. A aura de político honesto corresponde ao figurino.
Pelo tanto de experiência que adquiriu em sua carreira política Bolsonaro certamente conhece os meandros de como se dão as trocas de favores e os meios que produzem a corrupção política. Entretanto, em momento algum ele jamais veio a público para denunciar alguém explicitamente como corrupto, muito menos companheiros de partido. Essa discrição corresponde a uma atitude de autonomia individual e respeito ou indiferença ao que outros políticos pensam e fazem. Bolsonaro tem um forte sentimento de que cada pessoa é responsável por si mesma, em primeiro lugar, e só secundariamente pelo coletivo em que participa. Com os que praticaram corrupção Bolsonaro evita se relacionar politicamente, mas não evita o relacionamento pessoal. Certamente que ele tem certo senso dos motivos mais profundos das falhas humanas e do perdão necessário a ser concedido, após o devido arrependimento, por quem de direito. Deve ter algo de sentido cristão nessa atitude, mas, em relação aos seus folgados e desbocados inimigos, Bolsonaro é bem menos aquiescente. São tantos as contradições e ambiguidades do ser humano!
Ao se sentir acossado com cada vez mais intensidade pela mídias e figuras importantes das instituições públicas e privadas, Bolsonaro tem usado a estratégia de não demonstrar recuo, mas rebater a cada momento que puder. Contudo, tem chegado a tais momentos de estridência e ameaças ao seu mandato que uma turma de ministros e congressistas amigos entram no meio para tentar apaziguar os ânimos e procurar resolver as discordâncias e rabugices pela ideia de que são pendências a serem resolvidas. Tem sido assim sua relação com os presidentes da Câmara e do Senado e com o presidente do STF e até com seus ministros mais importantes, como Sergio Moro e Paulo Guedes. Mas não há paz com dirigentes de órgãos como a Associação Brasileira de Imprensa, a Ordem dos Advogados do Brasil e outras de menor escalão político.
Bolsonaro e as mídias digitais
Foi numa visita de trabalho a Fortaleza, em 2015, que Bolsonaro se deu conta que suas falas e suas atitudes perante as questões nacionais discutidas no Congresso e na mídia tradicional tinham chegado a uma camada da população que normalmente não lê nem vê com assiduidade esses veículos de informação. De onde essa gente o teria descoberto? Por que estavam tão entusiasmados com a chegada dele no Aeroporto Pinto Martins?
As mídias digitais, novidades de comunicação muito recentes, com capacidade de exposição crua e chula de fatos e contra-fatos, com facilidade e meneios para persuadir participantes e ganhar aderentes e militantes—WhatsApp, Twitter, Facebook, YouTube e Instagram, principalmente—têm sido o fator fundamental na divulgação das ideias e atitudes de Bolsonaro. Elas que lhe propiciaram o epíteto “mito”, que é gritado com força de fé pelas multidões que o recebem onde quer que vá. Sua eleição de 2018 se deve em boa parte ao papel exercido por essas mídias. Até 2014, quando teve uma votação expressiva para deputado federal pelo Rio de Janeiro, seu nome circulava na mídia tradicional e no boca a boca ainda como um nome execrado, impronunciável, a não ser com derrisão, nos círculos dos bem-pensantes. As mídias digitais desfizeram esse mal-estar embalando as pessoas a não terem vergonha de serem o que são, de estarem descobrindo o que no fundo sempre sentiram de si mesmas, como numa catarse pisco-sociológica de auto-afirmação de si mesmas. Daí por que a gritaria coletiva— mito, mito, mito!!!!!!— produz um clima de ritual religioso, de afirmação de pertencimento e de fé em alguma coisa, em um movimento coletivo, em Bolsonaro.
Assim, Bolsonaro se tornou, sem qualquer prova real de mérito político e com pouquíssimas evidências de elevação moral, uma figura mítica, digamos, ao menos, à moda americana, “icônica”, no sentido de representar virtudes reais ou potenciais de caráter mágico ou profético.
Tudo isso se deu com uma rapidez estonteante e quase inacreditável. Bolsonaro é realmente um fenômeno da pós-modernidade, da era das incertezas e inconsistências humanas. Como já o fora Lula, em tempo recente e talvez um pouco mais arrastado e demorado.
Hoje, o presidente Bolsonaro não precisa dos jornais tradicionais para dizer o que quiser, para passar a mensagem que bem entender. Ele aparece em qualquer lugar, na rampa do Palácio do Planalto, no portão do Palácio da Alvorada, numa caminhada célere com um grupo de ministros e empresários em direção ao STF, e solta o verbo para ser divulgado de imediato pelas redes sociais. Ele e, por consequência direta, uma penca de seus ministros não precisam mais bajular jornalista tradicional nem pagar propaganda aos jornalões sequiosos de verbas públicas para se manter. Neste caso, é possível que a animosidade indobrável de Bolsonaro contra a imprensa tradicional venha a produzir, por reação, uma imprensa revigorada no Brasil, autônoma em suas convicções por se ter tornada autônoma de benefícios financeiros públicos. Seria uma especial ironia fruto do gênio despiroquetado do capitão.
O que está acontecendo na mídia digital brasileira da atualidade é algo digno de assombro para uma geração de gente mais comportada até um passado bem recente. O Twitter, em especial, é um botequim digital de beira de calçada do mais fino estilo brasileiro. Nenhuma declaração bem colocada, bem desenvolvida em argumentos, ponderada e tolerante, sustenta mais do que três “likes” antes de receber uma troletada de escárnio e palavrões em siglas— fdp e VTCN sendo os mais comuns.
Por sua vez, cada lado do confronto se assume como probo, correto e verdadeiro e pespega no outro lado a pecha de desonesto, enganoso e falso. Notícias fajutas, maquinadas, o tradicional boato e os fuxicos viraram “fake news”, assim ganhando um ar de dignidade pós-moderna, já que ninguém quer se sentir fora da onda globalista de bons modos de comportamento.
As fake news viraram a nova besta-fera da enganação e da mentira, porém só os outros têm esse mal costume de produzi-las e divulgá-las. Declara um lado peremptoriamente que Bolsonaro ganhou a eleição presidencial à base de fake news e com a ajuda maquínica de um novo mensageiro não muito angelical, pois também simulador, o robô da internet, o bot, para os que acompanham o linguajar em inglês. Este é um programinha de computador, com o nome matemático-informacional de algoritmo, que é capaz de simular situações e até diálogos com quem com ele interage, e replicar notícias ou escritos ou gráficos ou GIFs quaisquer por milhares e milhares de vezes (como se fosse um irmãozinho do coronavirus) em milhares de aparelhos receptores ligados no aplicativo onde ele foi gerado. Ou além!
O conteúdo das fake news é onde está o problema filosófico mais caliente, digamos assim, dos nossos tempos. Se antes a busca da verdade era uma prerrogativa de quem fazia muita ascese mental, de quem se dedicava a vida inteira, sob o risco de nem conseguir uma esposa ou um marido digno, ou ao menos ricos, ou uma casa decente para morar, agora os Sócrates brasileiros estão bem refastelados em confortáveis poltronas dirimindo a torto e a direito o que é a verdade dos fatos, o que pode ser julgado notícia verdadeira ou falsa, e como os mensageiros dessas fake news podem ser arrancados e conduzidos de suas casas e escritórios, por ordem judicial ou sob vara de marmelo, se necessário for, destituídos do direito de usar das mídias sociais, apartados, quais bezerros em desmame, da frente de seus computadores e celulares, e arrastados a juízo para serem devidamente escrutinados, julgados e punidos a bem da justeza da nova filosofia fabricada na bancada úpsilon do STF pelos nossos doutores Simões Bacamartes redivivos na magistratura, previamente escoladas nas artes protetoras de seus patrícios e patronos, ungidos na França e na Alemanha, que é onde se fazem grandes causídicos, em plantão permanente, a toda hora do dia e da noite, fins de semana, feriados e licenças médicas e tudo.
Os seguidores de Bolsonaro, mas também os não seguidores, estão pagando um preço por suas ousadias de plantarem fofocas e boatos nas mídias digitais especialmente porque estão transformando todo mundo em zumbis e replicantes de fake news. Só ressuscitando Mikonjequison para fazer uma nova versão de Thriller.
Se isto não for uma infâmia, é muita dedicação ao culto misterioso aos deuses da engabelação nacional.
Bolsonaro e os filhos na política
Muita gente fala que a tríade de filhos do progenitor Bolsonaro – o senador Flávio, o vereador na cidade do Rio de Janeiro, Carlos, e o deputado federal por São Paulo, Eduardo – são, na melhor das hipóteses, calos inflamados nas joanetes políticas do pai. Ninguém mais, a não ser os mais próximos e os cupinchas, tem paciência com eles. O mais velho, o atual senador pelo Rio de Janeiro, Flávio Bolsonaro, que começou sua carreira como deputado estadual, fazendo dobradinha com o pai, anda de tal modo encrencado com o processo da “rachadinha” que havia no seu gabinete de deputado estadual que nunca adquiriu a fluidez política para atuar com desenvoltura no Senado Federal. Investigações feitas durante o ano de 2018 demonstram que seu gabinete de deputado era dirigido por um ex-policial militar, Edson Queiróz, que antes trabalhara com o próprio Jair Bolsonaro, ex-colega de Exército, acusado de ter íntimas conexões com milicianos da pesada, controladores de algumas favelas do Rio de Janeiro, como a Favela das Pedrinhas. Queiroz era o encarregado de arrecadar as porcentagens dos salários dos funcionários do gabinete de Flávio para serem entregues ao próprio. Por suposto, com esses recursos Flávio teria amealhado um bom dinheiro com o qual fizera investimentos imobiliários e em uma loja de chocolates.
É certo que “rachadinhas” constituem um crime ou dolo menor, no conjunto das obras delituosas da política brasileira, pois tem sido praticado com assiduidade e denodo por muitos políticos em todos os níveis e cargos de carreira. O inquérito que levou à investigação contra Flávio Bolsonaro revelou que havia ao menos 15 deputados estaduais na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro que tinham contas com iguais suspeitas de rachadinhas, algumas com somas que iam até 30 e 40 milhões de reais, quando o caso de Flávio chegava tão-somente a 1,2 milhões de reais. Mal consolo e péssima justificativa, mas é o que sobrará disso tudo, se é que o processo continuará no mesmo passo que vem tendo desde então.
O segundo filho é o Carlos, o “pit-bull” do pai. Dono de uma personalidade exasperada, afeto a rebater toda e qualquer crítica ao pai, sem sopesar relevância ou conveniência, o vereador Carlos começou sua trajetória de escândalos quando se aboletou, contra toda a liturgia da posse do pai Bolsonaro, no mesmo carro em que desfilavam o presidente e sua esposa pela Esplanada de Brasília, no dia 1º de janeiro de 2019, sob a crença alarmista de que só ele seria capaz de fazer a defesa pessoal do pai em caso de atentado. Carlos é o filho que comanda a mídia pessoal do pai, seu Twitter e WhatsApp, e esse comando tem trazido ao pai muitos momentos de embaraço e mal-estar político pelo despropósito de muitas mensagens postadas. É possível que o pai e os demais membros da família acreditem que Carlos tenha um agudo instinto de sobrevivência e percepção e entenda melhor do que a maioria como a maldade humana age ou pretende agir, especialmente em relação ao pai. Este, já entregue aos caprichos e bizarrices do filho, atua com surpreendente condescendência e delicadeza, aparentemente para não o desgostar.
O terceiro filho, Eduardo, foi eleito com a maior votação jamais obtida por um deputado federal na história brasileira, algo em torno de dois milhões de votos, no estado de São Paulo. Nascido e criado no Rio de Janeiro, de índole e hábitos cariocas, sua entrada na política de São Paulo, desde sua primeira eleição a deputado federal, em 2014, demonstra o quanto de capacidade de transferência de prestígio tem o seu pai. Eduardo parece ser um sujeito simpático e diligente, o que talvez tenha levado seu pai a acreditar que ele poderia se tornar o embaixador brasileiro junto ao governo americano, em Washington. O presidente Bolsonaro fez de tudo para viabilizar o filho nesse cargo, inclusive levando-o para uma audiência pessoal com o presidente Donald Trump. O filho fez de tudo para se mostrar apto ao cargo, inclusive fazendo declarações as mais cândidas possíveis, como a de que sua expertise na língua inglesa seria bastante bom porque teria passado algum tempo nos Estados Unidos, inclusive trabalhando em fritar hambúrgueres em uma cafeteria no Colorado. Também estaria tomando lições de história diplomática e política internacional como preparativo para sua audiência com a banca de senadores avalistas das nomeações presidenciais a tão distinto posto diplomático. Após quase três meses de exposição nacional e internacional, na maior parte com críticas ácidas e frequentemente debochadas, o pai, usando de seu melhor alvitre, sentiu que o filho lhe seria mais útil ajudando na liça política interna, e a nomeação foi cancela.
Para o presidente Bolsonaro seus três filhos são uns bons meninos que só querem o bem da nação. Sua complacência parece ser infinita e seu espanto de que os demais brasileiros não sintam o mesmo lhe assombra como injusto, unfair, mas não havia nada mais a fazer. A mídia tem sido bastante cruel com o presidente Bolsonaro, sobre todo e qualquer tema, mas, com os filhos ela amolou sua peixeira ao extremo: não perdoa nem a rachadinha do Flávio, se verdadeiro for, um crime sem dolo que acomete nove em cada dez políticos estaduais de todo o Brasil, nem muito menos a aspereza de Carlos, sua bravura e suas bravatas, enquanto Eduardo é tratado como um bobo alegre que eventualmente contribuirá para envenenar o prestígio do pai no estado de São Paulo. E o show só acabou de começar!
Bolsonaro e o filósofo Olavo de Carvalho
Na noite da vitória do segundo turno da eleição presidencial, 28 de outubro de 2018, Bolsonaro se apresentou em live, de seu modesto quartel-general da campanha, para agradecer e comemorar seu grande feito, tendo visíveis e conspícuos sobre a mesa três livros para mostrar suas inspirações principais. Um livro era a Bíblia Sagrada, naturalmente, o outro uma biografia de Winston Churchill, um pouco surpreendente, e o terceiro um livro de ensaios ou diatribes político-filosóficos chamado “O imbecil coletivo”, do filósofo e escritor Olavo de Carvalho. Mas, que maluquice é essa, deve ter caído o queixo da metade dos brasileiros que se dão a pachorra de ler e acompanhar as discussões sobre temas da cultura, história, política, ideologia, literatura e filosofia brasileiros, por onde o nome de Olavo já teria circulado, para o bem ou para o mal. Como é que Bolsonaro teria chegado a esse cara?
Olavo de Carvalho é antes de tudo aquilo que os ingleses chamam de “critic”, ou talvez, ensaísta, um intelectual de largo espectro, não necessariamente ligado ao sistema acadêmico, capaz de analisar, discutir e propor ideias sobre temas variados como cultura, literatura, política, filosofia, poesia e ciências sociais, além de filosofia. Sua carreira como intelectual começa cedo, quando aos 19 anos, pelos idos de 1966, tendo abandonado os estudos secundários e nunca entrado na universidade, atraído pelas ideias do Partido Comunista Brasileiro, em sua versão mais democrática e corporativa, embarca no ofício de jornalista, a partir das simples tarefas de aprendiz, como editor de textos, repórter, resenhista de livros, indo aos poucos crescendo para redigir seus próprios textos e comentários. Seu primeiro jornal foi a Folha de São Paulo (hoje aquele que tanto ele como Bolsonaro mais detestam) e daí para uma dezenas de jornais e revistas, uma ruma de publicações importantes ou interessantes, até se mudar para os Estados Unidos, em 2005, onde faz residência na cidade de Richmond, capital do estado de Virginia, a cerca de 100 milhas de Washington, DC. Ainda nos anos 1960 renega seus ideais comunistas, passa a se interessar por temas esdrúxulos, como ocultismo, astrologia e islamismo e embarca em aventuras religiosas, parapsicológicas e astrológicas que resultam na publicação de seus primeiros livros. Desse período, que vai até fins da década de 1980 Olavo ganhou dos adversários e inimigos a pecha despiciente de astrólogo e ocultista, algo que ele retruca com correspondente desprezo. Nesse meio tempo dedica-se a ler, estudar as obras e frequentar autores com um viés mais conservador e liberal. Faz amizades com diversos deles, como Antônio Paim, Miguel Reale, Mário Vieira dos Santos e Bruno Tolentino, em São Paulo, e, já morando no Rio de Janeiro, com Paulo Mercadante, Roberto Campos, Padre Stanislavs Ladusans, reitor da Pontifícia Universidade Católica, José Guilherme Merquior, José Mário Pereira e outros mais.
Na década de 1990 é que Olavo de Carvalho surge com extrema ousadia no campo intelectual brasileiro escrevendo artigos críticos sobre temas do momento, com profundidade de intelectual ilustrado e viés liberal para conservador, e depois uma série de livros com grande capacidade de levantar controvérsias e debates, tais como A nova era e a revolução cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci; O jardim das aflições: de Epicuro à ressurreição de César – Ensaio sobre o materialismo e a religião civil; e O imbecil coletivo: atualidades inculturais brasileiras; todos seguidos de novas edições pelo tanto de polêmicas e interesses que suscitaram. Em 1994, escreve uma primeira versão de seus estudos sobre Aristóteles, que havia tomado como objeto a partir das aulas e seminários que lhe haviam sido dadas pelo Pe. Stanislavs. Em 1996 sai uma versão mais completa desses estudos em que propõe uma visão nova sobre dois livros de Aristóteles que só teriam vindo a lume praticamente no Renascimento, um sobre poesia e o outro sobre retórica, e propõe que eles fazem parte de um possível sistema de discursos (ou lógicas, como veremos) do grande estagirista. Tal ideia brilhou com um ar de novidade e ousadia, um feito digno de um filósofo que precisava ser levado em consideração. Entretanto, dada a disposição do autor à polêmica e a de filósofos e cientistas brasileiros a se enclausurarem em seus feudos, a obra foi recebida com a atitude tradicional da academia brasileira, primeiro, aos tapas e arranhões, depois, pelo silencioso olvido sepulcral. Não obstante, o livro Aristóteles em nova perspectiva: Introdução à teoria dos quatro discursos, publicado pela editora Topbooks, em 1996, não foi enterrado vivo, mas prosperou e tem ganho novas edições ao longo dos últimos 20 anos de sua publicação. É um livro verdadeiramente precioso e original, cuja argumentação de que a Poética e a Retórica fariam parte do sistema lógico de Aristóteles corre em paralelo com as ideias de um outro filósofo brasileiro, Luiz Sérgio Coelho de Sampaio, cuja visão de lógica indica proximidade com esta visão filosófica de Olavo de Carvalho, e que também recebeu a amarga indiferença da academia de filósofos e cientistas sociais. Por esse paralelismo e por ser a única obra brasileira que parece dialogar com a filosofia de Olavo sobre Aristóteles, valerá a pena discorrer um pouco sobre a filosofia de Sampaio.
A obra de Sampaio pretende reestabelecer o sentido original, delineado por alguns filósofos gregos clássicos, entre eles Parmênides, Heráclito, Platão e Aristóteles, do que seria lógica como modo de pensar, não só o modo de pensar “correto”, por meio matemático ou silogístico. Inclui-se também como pensamento lógico o pensamento transcendental ou identitário, o inconsistente e o paradoxal, o sintético ou dialético, o propriamente sistêmico ou “racional”. Cada uma dessas quatro lógicas, ou quatro modos básicos de se pensar, iluminam certas áreas de um tema ou questão e se complementam, quando bem juntados e ponderados, para produzir um sentido integral da questão. Esse processo de complementação é regido por uma lógica superior, chamada hiperdialética, que é o que podemos chamar de lógica maior do ser humano. Usar da melhor maneira possível da lógica hiperdialética é o que permite uma pessoa obter uma noção mais abrangente e generosa de uma determinada questão. Generosa porque aceita que, nessa visão abrangente, há visões parciais importantes, mesmo que contraditórias, que precisam ser levadas em conta para esclarecer a questão em tela de forma íntegra. Essas ideias estão contidas no livro Lógica Ressuscitada: Sete Ensaios, publicado pela editora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 1998.
Bem, para exemplificar na prática como funciona a visão de Sampaio sobre um determinado tema, tomemos a realidade política dos tempos atuais, que serve de pano de fundo ao motivo deste ensaio. Tal como a vemos hoje no Brasil, a política e seu discurso inevitável, a ideologia, se exercem em quatro modalidades, ou vieses, para usar um termo da moda: há um modo conservador que deseja que o mundo pare ou até retroceda no tempo, ou ao menos tenha uma ordem fixa e, para muitos, predeterminada; há um modo contrário, que concebe o mundo como em eterna mudança, radicalmente anárquico ou sem direção certa, para a direita ou para a esquerda; terceiro, há um modo dialético que pretende confrontar esses dois vieses para criar uma síntese nova, como se fosse um mundo novo – o mundo teria uma ordem ainda que precária e uma direcionalidade provisória; e há o quarto modo, que pretende ordenar o mundo racionalmente, levando em conta os três modos anteriores, de um modo mais ou menos equilibrado. Esses modos podem ser identificados em atores e agentes políticos, ainda que no Brasil eles se apresentem misturados e até desordenados, como é próprio de nossa cultura conflitiva. Ninguém é puro conservador, ou puro voluntarista, seja de direita ou de esquerda, ou puro radical esquerdista, ou puro racionalista liberal – ainda que, grosso modo, seja possível identificar para onde cada agente político pende um pouco mais. A política, que é a qualidade humana coletiva de exercer o poder para decidir o que é melhor para o coletivo, se realiza numa arena de disputa ferrenha e incessante quanto mais for a divisão social entre grupos e classes sociais, e quanto mais houver carência de consensos entre os grupos. É realmente o prato cheio e apimentado ou nauseabundo que se come todo dia no Brasil.
Como o Brasil poderia encontrar um caminho que transcendesse, que fosse além de cada uma desses modos de exercer a política, reconhecendo e valorizando as qualidades que cada um tem em seu devido lugar e para as devidas e apropriadas situações?
Bem, ao ler alguns livros de Olavo de Carvalho, especialmente, mais uma vez, suas reflexões sobre os quatro discursos de Aristóteles, e confrontando essas reflexões com a história de vida do autor, que inclui uma passagem de jovem adulto pela atuação comunista, uma prolongada pedalada pelos mistérios e indefinições da astrologia, ocultismo e até islamismo e uma aderência racional pelo liberalismo filosófico, dá para entender que Olavo exercita seu potencial hiperdialético em sua busca humana por algo certamente indefinível (como quase todos nós também o fazemos) e que sua atual escolha política de cunho conservador, que já dura uns vinte anos ou mais, não desconsidera essas outras visões em sua atuação filosófica. Já sua atuação política são outros quinhentos por estar não no nível epistemológico da concepção de vida e sim no nível praxeológico, onde pensamento (sempre parcial) e atuação são necessariamente consentâneos.
O reconhecimento do talento filosófico e polímata de Olavo de Carvalho cresceu fora ou, no máximo, pelos interstícios da academia brasileira, das faculdades particulares, em especial, e alcançou um público curioso, às vezes, ingênuo, que estava talvez farto de um discurso enfarento por levar todos os temas, invariavelmente, às ideias de Karl Marx e de seus múltiplos epígonos, ideias que haviam inspirado revoltas populares de trabalhadores e revoluções socialistas ou comunistas cujos resultados, após algumas dezenas de anos, tinham se mostrado defectíveis e portanto inviáveis para sociedades humanas, conforme se via nos últimos anos as evidências da debacle dos regimes comunistas na União Soviética, nos países do Leste Europeu e asiáticos, exceto pela tríade atual de China (em toda sua dubiedade economista), Coréia do Norte e a saudosa Cuba. Hoje, Olavo de Carvalho tem um público cativo de mais de 800.000 leitores e ouvintes de suas palestras, aulas e comentários sobre os temas próprios de um polímata brasileiro, algo que não se via talvez desde os anos 1950-60, com figuras brilhantes como Mário Ferreira dos Santos, Wilson Martins, Sérgio Buarque de Holanda, Tristão de Athayde, Otto Maria Carpeaux e diversos outros. Sua bibliografia se ampliou enormemente na medida em que suas palestras divulgadas ao vivo pela mídia digital iam sendo desgravadas e transformadas em livros. São poucos os intelectuais e jornalistas que acompanham tudo que Olavo tem publicado desde o ano 2000. Olavo certamente se transformou num dos escritores mais prolíficos do Brasil de todos os tempos.
Voltando ao tema Bolsonaro e sua personalidade trágica, é curioso indagar como Olavo de Carvalho teria chegado à sua atenção. Provavelmente através de seus filhos, especialmente Eduardo, o aspirante a embaixador, que o acompanhava na mídia como aluno ou interessado, em busca de um caminho para dar alguma ordem ou sentido às ideias mal-ajambradas do pai ou ao menos edulcorar seu discurso político, o qual almeja o bem do país por uma via diferente da via mais conhecida e batida do discurso político tradicional. Pois, fica evidente que Bolsonaro, se não é louco ou psicopata, é um político com ideias insólitas, trazidas do fundo de sua alma, de sua cultura de base, e de sua experiência de tentar redimir o papel político das Forças Armadas durante o regime militar. Olavo de Carvalho viu em Bolsonaro o homem sincero e honesto, repleto de pureza d’alma, extraído como um diamante bruto da cultura de base brasileira, aquela que um dia formara a base do entendimento entre raças e ideias diversas e até opostas, e se consolidara por via da tolerante religião cristã-católica, e sob a égide de um processo político tradicional de domínio de elites estamentais que criaram um Estado nacional como uma casamata onde só entram os trajados de linho e punhos de seda, ou os treinados para limpar botas militares, ou ao menos os que sabem declamar versos altissonantes com salvas à liberdade e à glória do Brasil. Bolsonaro não é nenhum desses tipos, ainda que tenha servido sob o tacão dos militares em seus dias de tomada de consciência política. O que ele almeja é difícil de saber com certeza, mas os sinais estão por toda parte.
A imprensa, os acadêmicos e o público filopetista não se cansam de zombar e escarnecer de Olavo e Bolsonaro, os dois loucos juntos, guru e discípulo, em um abraço de afogados. Cada um de per se, evidentemente, não dá qualquer bola para isso, sabendo que as ofensas e aleivosias fazem parte do mar tempestuoso de críticas que sempre receberam, de diferentes remetentes, agora milagrosamente unidos a serviço da preservação do status quo, subitamente elevado à altura de tudo de bom e digno para o Brasil. Oh, céus!
Pelo que Olavo tanta fala e Bolsonaro raramente comenta, não há muita conversa entre os dois, nunca teria havido. Entendem-se por sinais, seriam almas gêmeas no redemoinho da política e da inteligência brasileiras. Porém, que se comunicam, que Olavo tem discípulos e admiradores dentro do governo Bolsonaro, que buscam influenciar projetos nacionais, atitudes morais e culturais e políticas internacionais, não restam dúvidas. Resta saber se essas atitudes são extemporâneas ao projeto conservador do governo Bolsonaro, fora do eixo básico formado por militares e colegas políticos, com algumas pessoas ilustres, de modo “técnico” em posições estratégicas, ou se realmente dirigem o espírito do governo e poderiam funcionar como articuladores de uma espécie de ideologia conservadora própria. A incerteza está aberta.
Seja o que for, o que bem interessa a todos é saber se Olavo é um democrata brasileiro, considerando todas as vicissitudes desse regime em nossa história republicana, ou se ele por acaso alimenta um pensamento militarista, com tendências ditatoriais, que pudesse ser aplicado na governança do Brasil. E se essa visão encontra abrigo no pensamento do presidente. Ao que sabemos, as ideias apresentadas por Olavo de Carvalho em seus textos e comentários políticos e filosóficos indicam uma expectativa democrática, seja como realidade inescapável, seja como objeto de desejo. A atitude conservadora de Olavo de Carvalho advém de reflexões que lastram na religião cristã e na civilização ocidental, tendo como base real as experiências de países como a Inglaterra e Estados Unidos que desenvolveram sociedade livres e economias à base do capitalismo, com liberdade para os indivíduos decidirem sobre suas opções de vida e com o mínimo de interferência do Estado. Por outro lado, dadas as vicissitudes da democracia brasileira, reconhecidas raivosamente por Olavo de Carvalho, tais como, a consistente manutenção do patrimonialismo, o arraigado corporativismo da classe média, o desvirtuamento de políticas trabalhistas, os inefáveis conluios de corrupção entre empresas e governos, tudo isso trabalhando em conjunto para o bem do pequeno contingente da elite econômica e o grupo mais amplo o qual ele designa pelo termo “estamento burocrático” que, em sua visão, controlam juntos o Estado brasileiro, Olavo tem feito observações um tanto cavilosas indicando que só com força política e participação popular, e quiçá até militar, é que um governo dito popular e democrático, como o seria o governo Bolsonaro, poderia realizar os seus propósitos políticos de manter o povo brasileiro coeso e cristão com possibilidades de diminuir a distância social e elevar a nação à condição de potência mundial. Com essas dificuldades internas, Olavo de Carvalho calcula que a questão democrática pode se perpetuar como um enfeite inútil, um badulaque político, se a melhoria das condições sociais e econômicas e a virada conservadora que a eleição de Bolsonaro significou não forem alcançadas e sim relegadas a segundo plano. Difícil entender até onde esse raciocínio nos pode levar na resolução de um comprometimento estritamente democrático.
O presidente Bolsonaro e seu primeiro ano de governo
Provavelmente jamais houve um governo que nos primeiros cem dias, no primeiro ano de atuação tenha sofrido tantas críticas pelas mídias, especialmente a imprensa tradicional, e tantos protestos por parte dos perdedores. Se alguém algum dia quiser compilar essas críticas vai cansar a beleza de qualquer leitor. Há matéria para todos os gostos, desde as horríveis gozações contra a ministra Damares Alves, por seu cândido relato, quando falava para um grupo de mulheres sobre qual política pública estava pensando em aplicar, de ter sido estrupada e ter-se imaginado, aos oito anos de idade, num diálogo com o próprio Jesus Cristo, em uma goiabeira. Mas também foram extremamente ridicularizados o ministro Ricardo Velez, nos três meses que ficou no Ministério da Educação, por sua visão radicalmente negativa da educação pública brasileira e pela desimportância que com que tratou as associações da casta superior universitária. Sua própria estampa pessoal parecia deslocada, como se tivesse vindo de décadas passadas, em parte por causa de seu sotaque carregado de castelhanismos da Colômbia, sua terra natal. Velez Rodrigues também carregava a pecha negativa de ter sido indicado, a pedido de Bolsonaro, por Olavo de Carvalho, que, por sua vez, logo declarou que nem bem o conhecia, mas recebera a indicação de outro colega, provavelmente o filósofo Antônio Paim. Bolsonaro, naturalmente, ficou com a brocha na mão, e, para não cair, logo o substituiu pela figura inédita de um professor de Direito que, pronto, passou a se apresentar com pantomimas esquisitas, como a que aparece personificando o ator Gene Kelly, com um guarda-chuva, como se estivesse cantando na chuva, e com postagens provocativas contra as universidade e os cursos de ciências sociais nas mídias sociais. Outro ministro que sentiu o peso das acusações foi o deputado federal por Minas Gerias, Marcelo Álvares Antônio, alçado a ministro do Turismo, aparentemente pelo pleito de agradecimento de Bolsonaro por ter sido socorrido com presteza e dedicação na ocasião da facada sofrida em 6 de setembro de 2018, em Juiz de Fora. O ministro Marcelo Antônio foi acusado pelo Ministério Público de Minas Gerais de ter usado de “laranjas”, ou seja, pessoas que recebiam dinheiro para a campanha, mas que na verdade deveriam devolver grande parte do recebido para o chefe da campanha do partido, no caso, o próprio então deputado Marcelo Antônio. O ministro sobreviveu à saraivada de críticas em jornal e continua no cargo sob a grave suspeita.
Paulo Guedes, o abrangente ministro da Economia, com Ph.D. pela Universidade de Chicago, o berço renascentista do liberalismo econômico americano e quiçá mundial, apresentou um programa novo, ousado e consistente que, de pronto, recebeu os opróbrios despeitados dos economistas de linhas diversas, cujas experiências de governo em geral tinham dado errado (os keynesianos) ou dado certo, com limites (social-democratas). Guedes propôs algo radicalmente liberal, na medida do possível para o Brasil, o que excetuava a privatização tão somente da Petrobras e de alguns grandes bancos estatais, como o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal. E olha lá! O resto deveria, em princípio, cair na malha da privatização generalizada.
Tantos são os projetos econômicos que Guedes e sua equipe apresentaram que não dá para fazer uma avaliação neste contexto ensaístico. O que vale remarcar é a sua ousadia em fazer essas propostas e sua persistente tentativa para convencer não somente o presidente Bolsonaro mas também o público brasileiro, aqueles que poderão vir a estar sob a guarda de um novo regime de aposentadoria ou de salários, bem como os políticos em geral que, com seus malfadados arranjos e contemporizações, gostariam de manter o regime de aposentadorias tal como está, favorável a si mesmos e a quem os apoia. Para eles um regime político-econômico da ordem patrimonialista continua em boa ordem pelas mesmas garantias que vem desde sempre oferecendo às classes médias superiores, ao empresariado e ao patriciado nacional. Especificamente, nenhum político que se elege à base de um discurso de garantias de preservação de direitos corporativos jamais pularia fora dessa caçamba de sustentação. A simples proposta de estabelecer uma idade mínima para a aposentadoria tem sido visto como um anátema à doutrina de direitos imprescritíveis que estariam inseridas como “cláusulas pétreas” na lápide da nossa sexta constituição republicana, já pela metade emendada.
Guedes persistiu e de certo modo prevaleceu. Certamente fez mais do que seus predecessores mais bem protegidos politicamente. E o fez muitas vezes à revelia das desditosas e vacilantes interrupções da parte do seu chefe. É certo que a estridente torcida dos contrários era para Guedes desistir, renunciar, fugir, se mandar para uma Pasárgada em Barbacena ou em Chicago, e gozar a vida à sombra de sua considerável riqueza obtida por sua sagacidade de tarimbado economista.
Já Sérgio Moro sofreu mais em sua alma, sendo homem de estirpe provinciana e personalidade discreta, dito de índole misteriosamente estratégica, e também já cheio de calos escarmentados pela algaravia odienta e rancorosa dos filopetistas quando de sua ação de magistrado. Guedes, nascido no Rio, mas de ascendência mineira, é o mineirinho quase surgido dos traços de Ziraldo, enquanto Moro podia ser uma figura nova na Turma da Mônica. E já com namorada fixa a tiracolo.
A proposta ministerial de Moro tinha duas vertentes. Uma era diminuir, ou arrefecer fundamentalmente, ou dar um choque fatal na corrupção desenfreada que vinha consumindo o Brasil, na alma e no bolso, nos últimos 20 e tantos anos, ainda que a corrupção tenha sido um dos elementos constitutivos da política nacional desde Cabral, corrupção esta que havia sido exposta em seus mínimos detalhes por sua magistratura na Operação Lava Jato, a qual lhe teria dado fama e reconhecimento. A segunda vertente de sua proposta era criar meios institucionais e instrumentos legais para o combate efetivo contra a violência brasileira, que tem causado a morte de, em média, 40.000 a 50.000 pessoas a cada ano desde o fim da ditadura militar. Esse número havia chegado a 62.000 em 2015, a partir de quando começara a diminuir com lentidão. A violência brasileira tem raízes profundas, diz respeito ao controle das populações que compuseram o contingente pobre e oprimido desde a formação da nação. Entretanto, sua amplitude tinha se estendido muito além desse controle e apontava para a organização de grupos criminosos de diversas naturezas, sobretudo o tráfico e a venda de drogas, seus agentes locais, nacionais e internacionais, e o controle de alguns serviços comerciais e infraestruturais nas comunidades e bairros pobres das grandes cidades.
Cada governo que entrava havia prometido acabar com esse flagelo nacional, mas se perdia nas leis, regras, incompetência subjacente, subterfúgios, conluios e na complexidade das relações entre o objeto do crime, os criminosos, bandidos e milicianos, os policiais e o fruto cobiçado dos crimes. Moro viera para desbaratar essa complexidade, expor suas entranhas e concatenar meios e instrumentos para dar um basta na desgraceira e vergonha nacionais. Para isso o ministro Moro e sua equipe de policiais federais, procuradores e defensores públicos, políticos e advogados elaboraram uma série de programas que teriam que serem transformados em lei, isto é, teriam que passar pelo crivo e adesão dos congressistas. Aí estava um entrave muito sério. Os programas de Moro envolviam entre os pontos mais conhecidos: mudança para 16 anos como idade mínima para prisão e processo criminal; aumento de prisão em alguns tipos de penas; endurecimento nas saídas legais de presos; diminuição de visitas íntimas, junto com distanciamento em certas visitas; distribuição de presos por periculosidade; separação de presos perigosos para prisões de máxima segurança; encarceramento imediato a partir de condenação de réu em segunda instância, e outras mais. Esta última deixou muitos políticos de cabelo em pé e, por consequência, foi rejeitada ipso facto.
As propostas foram enviadas ao Congresso Nacional logo nos primeiros meses do ano e, como era de se esperar, foram recebidas com muita desconfiança e resistência por parte de grande parte dos parlamentares, liderados na Câmara Federal pelo deputado pelo Rio de Janeiro, Rodrigo Maia, e no Senado Federal pelo inesperado e jejuno senador pelo estado do Amapá, eleito presidente do Senado com um voto a mais do que o número real de senadores, o excepcional Davi Alcolumbre. Ao longo dos meses o ministro Moro se apresentou em várias comissões da Câmara e do Senado onde era invariavelmente recebido de um modo minimamente deselegante por parte de uma hoste de deputados e senadores oposicionistas com ganas de nem permitir que as propostas apresentadas tivessem o dom de serem discutidas.
A resistência a quase todos os itens se fez presente de imediato, tanto em declarações de políticos quanto pela mídia tradicional. Os partidos que haviam sofrido condenações por corrupção e que tinham diversos membros em condições de serem presos, ou presos temporariamente, ou em vias de condenação em segunda instância chiaram muito, em altissonantes brados de indignação. Concomitantemente, estava havendo todo um conjunto de manobras por parte de ministros do STF para relaxar a prisão de diversos presos condenados por corrupção pela Operação Lava Jato. Entre eles estava o ex-presidente Lula, encarcerado nas dependências da Polícia Federal, em Curitiba, desde abril de 2018. Tudo esse processo de resistência aos propósitos de combater a criminalidade e a corrupção, bem como os projetos de lei do ministro Moro, culminaram negativamente quando o STF resolveu, por diferença de apenas 1 voto, desfazer o entendimento interno segundo o qual um condenado em segunda instância poderia, a critério do juiz da segunda instância que havia revisado a condenação original, sentenciar pena de reclusão. Fora essa decisão do STF que levara o Tribunal Regional Federal da 4ª região (TRF-4), em Porto Alegre, a sentenciar Lula à prisão. Agora, com a reviravolta decisória do STF, Lula e dezenas de outros presos por condenação em segunda instância estavam automaticamente libertos. E eis que Lula sai em 9 de novembro de 2019 clamando a população a protestar contra sua prisão e exigindo do STF que ordene novo julgamento por prejuízo de preconceito prévio do então juiz da 13ª Vara Federal, Sérgio Moro.
Em adição, eis que o presidente Bolsonaro, contra todas as explanações de seu ministro Moro, sanciona a lei que estabelece o cargo de juiz de exceção, criando mais um estágio, mais uma dificuldade na luta pelo fortalecimento das leis penais e afrontando um propósito definido por Sérgio Moro como essencial para o exercício proveitoso de seu papel de combater a corrupção e a criminalidade no país. Essa inimaginável decisão de Bolsonaro ressoou pessimamente nas hostes favoráveis ao endurecimento de leis para combater a criminalidade, especialmente de corrupção, mas foi melodia prazerosa aos ouvidos de advogados, bancas advocatícias e políticos com condenações em primeira instância ou indiciados por evidências incontornáveis de crimes, especialmente aqueles que fizeram parte dos governos prévios do PT e PSDB, o que significava uma quantidade bastante grande de deputados e senadores de diversos partidos que haviam feito parte da coalizão petista, e muitos outros que não haviam sido eleitos em 2018.
Neste mesmo final de ano de 2019 outra surpresa desagradável caiu sobre os ombros do ministro Moro vindo diretamente de seu superior Bolsonaro. Era a ideia de desmembrar o Ministério da Justiça e Segurança Pública em duas partes, ficando o titular Sérgio Moro com a Justiça, de um lado, e a Segurança Pública, de outro, com um político do interesse do presidente, sendo que a Polícia Federal ficaria neste ministério adicional. Bolsonaro e um grupo de políticos a ele ligados já vinham falando disso em conchavos, soltando notícias esparsas para testar Moro e outros ministros, especialmente os militares, que tinham muito respeito pelo trabalho de Moro. A pressão ficou grande, mas, afinal, a intenção foi dissolvida por motivos variados, não sem já ter criado um forte sentimento de desagrado e desânimo da parte do ministro Moro. Afinal de contas, não era só que o presidente Bolsonaro, que lhe havia oferecido carta-branca na nomeação e condução desse superministério, condizente com o alto prestígio auferido por Moro na opinião pública, o tivesse abandonado, se não boicotado, em relação aos projetos de lei apresentados por Moro ao Congresso Nacional, mas que, a partir de certo tempo, Bolsonaro tinha adquirido o propósito de retirar do controle de Moro a direção da Polícia Federal e dos instrumentos próprios da Segurança Pública.
Bolsonaro não é homem do tipo ameno e afável, para se dizer o mínimo. E talvez também não tenha claro em sua cabeça o quão longe ele pode ir em suas ousadias, ou o quanto ele precisa saber para recuar. Sobretudo em relação a outros homens igualmente independentes. Mas Moro engoliu em seco mais uma afronta pessoal e permaneceu no governo na entrada do ano. Talvez, afinal, Bolsonaro se desse conta de que a diminuição de 22%, em média, da criminalidade nacional no ano de 2019, vitória essencial, embora não exclusiva, de Moro, já era um produto extremamente valioso politicamente do trabalho do ministro Moro. A população brasileira estava muito satisfeita com esse feito, e o prestígio de Moro se elevara aos píncaros, em certo momento ultrapassando o do próprio Bolsonaro, de acordo com os resultados de diversas pesquisas de opinião pública. Diziam as línguas mais intrigantes que Bolsonaro não suportaria a sombra de Moro por muito mais tempo, mas isso já vinha sendo dito a cada mês em que apareciam pesquisas novas.
Enfim, 2019 foi um ano difícil, de poucas alegrias, algumas vitórias e muita intranquilidade. Jair Bolsonaro aperfeiçoara seu repertório de brincadeiras de mau gosto e soltava uma ou outra a três por dois, até para se divertir, pois em seguida arranjava uma desculpa para desmentir o impropério que havia vituperado um pouco antes. Concomitantemente, a oposição não arrefecera na sua ânsia de levar Bolsonaro ao desespero e à má governança. Políticos conhecidos, magistrados midiáticos, artistas cansados de velha popularidade, blogueiros jejunos, tuiteiros estridentes, eram muitos os que se enfileiravam para detratar Bolsonaro pelo seu governo, pelos seus ministros, pelas suas propostas, pelos seus filhos, até por sua mulher, acusada de tê-lo traído com um ministro (veja só!), as patacoadas de ministros, os acertos dos ministros, o sotaque paranaense de Moro, a fala ingênua de Damares e, acima de tudo, o espírito autoritário que estava não muito escondido no peito arfante de Bolsonaro – tudo foi motivo para escárnio, críticas e desejos de que logo se conseguissem motivos para abrir um processo de impeachment, uma retirada a camisa de força por motivo de loucura, e, da parte de um descompensado Fernando Henrique Cardoso, sequioso por obter por fim o respeito nacional, a cínica admoestação para que Bolsonaro renunciasse do cargo a bem da nação. Ora vejam!
O presidente Bolsonaro e a COVID-19
O flagelo chinês do coronavirus, caracterizado como pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e nomeada COVID-19, teria baixado no Brasil em 26 de fevereiro de 2019 (embora haja suspeitas de que já estaria circulando em janeiro) através de um portador masculino de 51 anos que voltava da Itália, onde o vírus já grassava com força crescente, e desde então já alcança cifras europeias e fatalidades espanholas. Neste 3 de maio[1], somam-se 101.147 brasileiros infectados, dos quais 42.991 já foram curados, 42,813 estão em condições amenas, 8.318 em situação crítica e 7.025 morreram– em todos os estados da União, sendo São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará e Amazonas os mais atingidos, e aumentando. Em um mês provavelmente esse número estará duplicado em todos os aspectos.
O surto começou na China, em fins de dezembro de 2019, em circunstâncias ainda não esclarecidas. A lenda mais pitoresca é que teria surgido do costume dos chineses de comer sopa de morcego, de onde vêm algumas linhagens de vírus corona. No mês de janeiro era uma epidemia que atingira cerca de 10.000 chineses da província de Hubei, cidade de Wuhan, levando 230 pessoas a óbito, e se espalhando para mais 20 países na Ásia e Europa. Em fins de fevereiro, alarme já dado, virara uma pandemia, o Brasil ainda quase imune, e a China com 79.000 infectados, 2.791 mortos. Assim começaram a prognosticar um desastre mundial de proporções incalculáveis. Alguns epidemiologistas muito respeitados projetavam cifras estratosféricas, como 2.000.000 de mortos só nos Estados Unidos. O governo Bolsonaro reconheceu em pouco tempo que a pandemia iria se alastrar pelo país e poderia fazer um estrago impressionante em vidas perdidas. Assim, declarou estado de emergência, aos 4 de fevereiro, cinco dias após a mesma declaração ter sido emitida pela OMS, em 30 de janeiro. Entretanto, visto que não havia ninguém no Brasil com o vírus, tudo parecia meio sem sentido. Os dias de pré-Carnaval já vinham rolando em blocos nos fins de semana, e a partir da sexta-feira, dia 21 de fevereiro, a festa bombou como nunca em todas as cidades, principalmente em São Paulo e Rio de Janeiro, com os novos governadores sequiosos por se exibirem e os prefeitos caprichando cheios de garra para mostrarem-se dignos da consideração de seus eleitores na eleição programada para acontecer em outubro. O festeiro governador de São Paulo, em certo momento, comemorou o Carnaval de rua como o maior do Brasil! Quem te viu, quem te vê! Até prefeitos evangélicos, como Marcelo Crivella, do Rio de Janeiro, contrário a esbórnias momescas, abriu mão de seus escrúpulos religiosos e aderiu de bom grado à efeméride e à alegria dos foliões. Ninguém falava ainda em “últimos dias de Pompeia”, por assim dizer. Não faltaram, evidentemente, foliões estrangeiros nem recém-chegados da Europa, onde o coronavirus já granjeava suas primeiras vítimas.
Depois que o coronavirus deu as caras em São Paulo, dia 26 de fevereiro, mesmo então ainda não havia grandes preocupações. Fiando-se em declarações de médicos, como o famoso Drauzio Varella, que dissera em janeiro que o vírus não iria provocar mais do que uma resfriado, o presidente Bolsonaro já fazia declarações no sentido de minimizar sua virulência e para que a população não entrasse em pânico. No dia 7 de março, com agenda marcada, Bolsonaro arribou a Miami, Estados Unidos, em uma missão de governo para um encontro de trabalho com o presidente Donald Trump, e regressou dia 11. No programa Fantástico, da rede Globo, dia 15 de março, Drauzio Varella já vê a epidemia com preocupação, recomenda cautela e considera que o vírus vai passar e provavelmente só afetará as pessoas com mais de 70 anos. Alguns dias depois, cerca de vinte pessoas da comitiva presidencial são diagnosticadas com o coronavirus, entre eles o secretário de comunicações e o chefe do cerimonial da presidência, e logo o General Augusto Heleno e o senador Davi Alcolumbre, que nem haviam ido a Miami. Evidentemente, o círculo íntimo da presidência e da alta burocracia havia sido contaminado, tendo um exame dado negativo para o presidente Bolsonaro. Menos mal.
De qualquer forma, o vírus se espalhara por Brasília e pelos lados da burocracia nacional, talvez até de suas cidades satélites. A coisa já parecia que ia ficar muito ruim. Hoje, 53 dias depois, dia 3 de maio, são 1.649 casos, com 33 mortes, no Distrito Federal (aos 13 de maio eram 3.192 infectados e 47 mortes, sendo este último índice bem abaixo da média nacional). Não se pode dizer que a comitiva do presidente Bolsonaro tenha sido o fulcro único ou principal da disseminação do coronavirus por Brasília e suas cidades satélites, mas pôde-se ter uma noção de como o vírus se espalhou, ao mesmo tempo em que fica demonstrada a capacidade de enfrentamento médico da capital da República. Não parece ter havido caso para alarme e pandemônio, visto até que tem havido aglomerações imensas de partidários do presidente em demonstrações de apoio a suas ações e em reação a inimigos reais e imaginários. Será que o vírus discrimina negativamente os partidários de Bolsonaro? A ver.
A pandemia COVID-19 paralisou o Brasil, fechou as escolas, as lojas, as empresas, as fábricas, a economia de modo geral, fez o governo mudar por completo seus projetos para este ano e se planejar para gastar bilhões de reais além do seu orçamento original, desembolsando compensações a desempregados atuais e futuros e a empresas para ajudá-las a complementar os salários de seus funcionários, sem ter que demiti-los, na medida do tempo possível. E, com certeza, tem aumentado o nível de estresse do presidente Bolsonaro, dos seus ministros e auxiliares, e de seus inimigos, que aumentam em número e efervescência a cada dia.
O fato de Bolsonaro não parecer se conformar com a paralisação da nação o tem feito se comportar de forma extremada em várias ocasiões e por motivos variados, de certo modo açulando ainda mais o fervor dos oposicionistas para derrubá-lo do governo, de algum modo. O mês de abril inteiro se passou com parte da população rancorosa pela derrota sofrida e pelo desprezo a Bolsonaro a fazer panelaços pontualmente a partir da 20:30, ao sinal de abertura do Jornal Nacional, aquele mesmo jornal televisivo tão odiado por todos. A união faz a força, dir-se-ia.
Na ânsia de quase literalmente passar por cima da COVID-19, Bolsonaro tem feito gestões de muitas maneiras para criar alternativas às medidas de isolamento vertical das pessoas, decretadas pelo próprio governo, via Ministério da Saúde, como fechamento de lojas, fábricas e todo tipo de serviço de transporte, de restaurante e lazer, inclusive passeios em praias, parques e calçadões. Nota-se nos bairros vizinhos à Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, que aves e outros bichos silvestres têm aparecido nos arredores das casas com mais frequência, como se tivessem sentido uma mudança no comportamento dos seus vizinhos humanos. As grandes cidades brasileiras ganharam ares de fantasmas, exceto, verdadeiramente, os bairros pobres, onde fervilham pessoas em lojas e em lazer, inclusive com bailes nos finais de semana.
Por umas duas ou três semanas Bolsonaro tentou de muitas maneiras convencer o Ministério da Saúde, e em especial seu ministro, o ex-deputado Luiz Henrique Mandetta, a instruir os hospitais a prescrever um composto de remédios com base na cloroquina ou no seu derivado hidroxicloroquina, junto com o antibiótico azitromicina e mais um composto de zinco, que curaria todo mundo, particularmente se fosse aplicado nos primeiros estágios da doença, já que estava sendo usado e recomendado por alguns médicos na França e no Brasil. Uma boa parte do país ouviu o Dr. Bolsonaro com atenção, porque, afinal de contas, as recomendações da OMS vinham de um chefe que nem médico era e também era ligado aos interesses chineses, que o haviam eleito cabeça dessa importante organização da ONU. Nisso o Dr. Bolsonaro copiava a fala e a angústia de seu ídolo político, Donald Trump. Já o ministro Mandetta, que estava fazendo considerável sucesso televisivo nas tardes em que aparecia para explicar a evolução da doença no Brasil, e suas possíveis progressões e comparações com outros países, foi acometido daquela conhecida ilusão que bate nos ingênuos de que ele já tinha conseguido um destaque entre os ministros e que podia “peitar” o presidente nas decisões sobre saúde, até que chegou no limite da paciência pouca do seu chefe, que prontamente o demitiu, para a consternação de seus auxiliares e dos oposicionistas que exultavam com a petulância do ministro diante de Bolsonaro.
Em meados de abril, Mandetta pelas costas e um novo ministro, sem devaneios políticos, em vista, havia 30.891 infectados, com 1.952 mortes no Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro à frente de todos. Precisamente os estados governados por políticos jejunos cujas eleições haviam dependido fundamentalmente de suas conexões com o candidato Bolsonaro, mas que desde meados do ano passado ambos haviam se rebelado frontalmente e procuravam se distinguir politicamente e em comportamento do seu prévio eleitor maior. Bolsonaro não acata desafios em posição defensiva e logo partiu para o ataque, o qual consistiu em demonstrar que a pandemia não seria tão grave, que havia a cloroquina para ser aplicada e que a economia não podia ficar parada sob o custo de falir o Brasil. Diante da figura melíflua e ciciante do governador Doria, os partidários mais intensos de Bolsonaro começaram a se movimentar para exigir uma flexibilização maior da quarentena. Assim, diversas passeatas e carreatas foram feitas em São Paulo por consecutivos sábados e domingos, as quais repercutiram em outras grandes e médias cidades brasileiras. Um frenesi de contenda política aumentou a temperatura no país ao ponto de alcançar repercussões dilatadas na imprensa mundial. O que é que está acontecendo no Brasil, afinal? Esse presidente é um louco pior do que o Trump?
Bolsonaro x Moro: Ao rei tudo, menos a honra!
A pandemia COVID-19 vai continuar por mais tempo, talvez até setembro, talvez até que surja uma vacina em massa, piorando aqui e acolá, Manaus com seu sistema de saúde em decomposição, arrefecendo aos poucos nas cidades pequenas e médias, as notícias de melhoras em países europeus augurando um novo amanhecer, a China trotando pelo mundo em empáfia de comprador de baratezas, Trump cada vez mais bisonho com seu toupé alaranjado, e as contendas da política nacional comendo fogo pelo Brasil.
Qual o quê, como se estivesse surfando em uma mar de ondas tranquilas da praia da Barra e começasse a se sentir levemente entediado, Bolsonaro volta suas baterias contra a figura sóbria e autocontida do ministro Sérgio Moro declarando em reunião ministerial que vai demitir incontinenti, amanhã, o diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, e nomear alguém de sua inteira confiança para que o mantenha ao par dos processos que lhe interessam, como de fato aparece no dia 24 de abril a exoneração de Valeixo no Diário Oficial da União e a nomeação de Alexandre Ramagem Rodrigues, seu policial federal de confiança, amigo de seus filhos. Ao meio dia, Moro envia sua carta de demissão ao Palácio do Planalto e às 14 horas faz um pronunciamento à imprensa expondo, em linguagem fria e pontuada, porém com conteúdo potencialmente explosivo, os motivos de sua demissão e denunciando os propósitos cavilosos do presidente Bolsonaro. Desponta aí uma nova crise política cujas consequências ainda não estão claras, mas certamente serão duradouras.
A demissão de Moro repercute no Brasil e no mundo, e todos se mostram perplexos diante da assombração. Agora, Bolsonaro cai, dizem uns, agora Moro foi para o espaço, dizem outros. Na verdade, os motivos para sua demissão eludem a razão e a imaginação, exceto as dos néscios, por suposto, pois estão muito intricados no coração misterioso do ex-juiz. Alguns diriam, coração sombrio. Talvez nem ele seja capaz de sopesar tudo que levou em consideração para tomar tal radical decisão, em parte em função de aspectos psicológicos que sua consciência, neste momento de sua vida, nem faz questão de saber. E é muito provável que Sérgio Moro seja do tipo de pessoa que pode até discutir as consequências de seus atos com amigos próximos, mas ao final toma suas decisões por algum ponto misterioso e indecidível que surge no horizonte de seu pensamento, não por clareza objetiva. Moro é também um ser trágico. Vê-se isso no exemplo de sua carreira prévia de juiz, nos atos realizados para desvendar os meandros da atuação da corrupção e no jogo complicado de fatores que o levaram a condenar um monte de gente que mal passava por malandro ou esperto, raramente por corrupto, aos olhos do público brasileiro. E agora vê-se estampado em sua face a sua moira, seu destino, em irresolução. Moro está entregue aos deuses e às Parcas, eles que decidirão, nós nem adivinhar podemos.
Num sentido geral pode-se dizer que Moro se demitiu porque não quis ser humilhado por Bolsonaro, seu superior hierárquico e homem reconhecidamente de valor pessoal, que o convidou para ajudar o Brasil a superar seu declínio na moral e nos bons costumes e seu desafortunado crescimento na criminalidade. Foi a cartada política mais festejada nas hostes bolsonaristas, com repercussão positiva até sobre quem não tinha votado no candidato Bolsonaro, a aceitação de Moro ao convite de Bolsonaro para integrar seu governo. Agora, com resultados expressivos no combate à criminalidade no país, com alto reconhecimento e até popularidade, Moro se viu acossado pela sanha de Bolsonaro em querer ter influência direta sobre a cúpula da Polícia Federal, contrariando seus propósitos de campanha de combate ao crime e à corrupção, e até desmoralizando seu compromisso pessoal com o ministro. Moro ainda tentou, junto com alguns ministros militares influentes sobre Bolsonaro, encontrar um meio termo. Se o problema era Valeixo, ele sairia, mas entraria alguém com eficácia e compromisso equivalente. Não, Bolsonaro queria o cargo para colocar o homem de sua confiança, Ramagem, amigo dos filhos, que iria mudar o superintendente do Rio de Janeiro. E, na madrugada do dia seguinte, está o fato consumado no DOU.
Como na peça clássica “O alcaide de Zalamea”, do dramaturgo espanhol, Calderón de La Barca, o infelicitado Pedro Crespo, ao ser confrontado pelo crime que acabara de cometer, declama, indignado, “Ao rei deve-se entregar tudo, seus bens e sua vida, menos a honra, que pertence à alma, que pertence a Deus”, foi o que restou dramaticamente a Moro fazer. Fiquemos assim com a preservação de sua honra como o motivo principal que levou Sérgio Moro a pedir demissão de seu honroso cargo de Ministro da Justiça e Segurança Pública após um ano e quatro meses de sua nomeação.
Por que Bolsonaro é uma figura trágica
Para ser trágico a pessoa não precisa estar ou fazer parte de uma tragédia. Ela própria pode ser a criadora de uma tragédia ou simplesmente a protagonista inesperada dentro de uma tragédia que acontece num mundo que está longe de ser uma sociedade estável, balanceada e com alguma clareza sobre seu futuro. Ao contrário, pode-se até dizer que o Brasil é um criatório de tragédias coletivas, continuamente condenado, como Sísifo, a rolar uma pedra ladeira acima para, ao menor vacilo de descuido, vê-la rolar ladeira abaixo atropelando o que tinha sido construído. E exclamaríamos em uníssono: Brasil, país das tragédias. Nem tanto, nem tanto.
Os gregos clássicos, em tempos de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, no século V antes de Cristo, é que criaram o gênero literário da tragédia para fazer entender aos seus compatriotas que a vida dos homens não é dirigida de modo algum pela vontade e lucidez de cada um, mas sim, que há forças acima dos homens que os levam a vencer batalhas incríveis, a realizar atos grandiosos ou heróicos para, em pouco tempo descambar do alto do pedestal em derrocada pessoal, carregando consigo a desgraça de muitos, ou a cometer em desvarios incontroláveis atos ignóbeis. O homem que sobe e que desce é sempre o mesmo.
O homem que se eleva no conceito de sua sociedade por atos extraordinários e o faz pensando que é ele o agente único de seus atos se excede em auto-satisfação e acomete daquilo que os gregos chamam de hubris (hybris), isto é, se enche de soberba, o pecado do desmesurado amor a si próprio. Quando isso acontece, na visão dos gregos, os deuses que, por trás, o estavam ajudando a realizar façanhas extra-humanas e atos heróicos, se dão conta de que esse suposto herói foi além da conta, que ele pretende, na verdade, virar um deus ele próprio. E aí os deuses antes benevolentes, se juntam ou até disputam entre si para derrubá-lo de seu alto pedestal inflamado de orgulho e vaidade. Fica claro que a explicação mitológica dos gregos não carece de qualquer enfeite psicológico, muito menos psicanalítico. Ela está muito profundamente aquém desse pântano moderno de justificativas para os atos humanos. Dizendo bem claro, e ao ponto, Bolsonaro não é um homem claramente aloprado porque no fundo sente alguma culpa por seu passado que precisa redimir ou ser perdoado.
Contudo, tampouco pode-se afirmar, sem evitar a fantasia, que Bolsonaro seja um escolhido dos deuses, nem que seja tomado de soberba. Ou pode? O que ele já alcançou a partir de sua humilde posição de caipira paulista, oficial menor do Exército, deputado federal do baixo clero, sem ideias nem liderados, tosco como o quê, ridicularizado por metade da população que o conhecia antes, e por crescente metade que o conhece agora, Bolsonaro é muito mais que qualquer bem-nascido de São Paulo ou do Ceará sonhara ser, não, tivera certeza de que um dia seria. O capitão sem meias palavras, agressivo como um pica-pau, desfazedor de mistificações políticas e sociais, quase um Sócrates expondo as inconsistências dos seus adversários e as hipocrisias dos bem-pensantes, virou MITO num átimo de tempo, num tempo mitológico, não real, tendo combatido minotauros e ciclopes, desprezando sereias e medusas encantatórias, como se fosse Ulisses arribando a Ítaca, aquela Pasárgada onde só os bem-afortunados chegam. Por que, como, por qual merecimento Bolsonaro foi aspergido por tanta graça, tanta fortuna, tanta sorte, tanto carisma para arrebatar multidões de brasileiros com esperança de que ele viria para “salvar” o Brasil de suas desgraças mais recentes – não mais fome, nem deseducação – porém o flagelo mais cruento da violência terrificante, da criminalidade fustigante e da corrupção desmoralizante para toda uma nação. E mais: a incompetência generalizada que degrada a vontade de ser correto, o preconceito aviltante contra os desfavorecidos e especialmente os remediados e os batalhadores que acordaram para exercer suas potencialidades, gente que se orgulha de ser caipira, brega, evangélica, moralista e patriota e que vem sonhando em encontrar seu espaço na civilização brasileira. Não só encontrar, mas também ajudar a modular essa civilização à sua imagem e semelhança. Será difícil para o establishment brasileiro muito ancho de si derrubar Bolsonaro batendo frigideiras por trinta minutos às 20:30 ou gritando que ele é um animal descontrolado.
Os deuses, não os grandes, mas os menores, os invejosos – é que irão desbastar Bolsonaro de sua soberba. E a hora, infelizmente, está chegando ligeira.
Os impasses trágicos do Brasil e sua luta pela superação
Bolsonaro, Moro, Lula são figuras trágicas de nosso tempo, como o foram Getúlio Vargas, Jânio Quadros e uns poucos outros na nossa história recente. Esses antigos subiram alto e caíram desglorificados. Os três primeiros estão sendo perseguidos pelas Parcas. Muitos brasileiros, no seu afã de ser vira-lata, em sua inconsequência em não se saber parte de um todo em transformação, veem o Brasil como um país trágico pelo tanto de oportunidades que ele já teria perdido. Cada qual conta sua versão em seu tempo. Tipos como Bolsonaro, na corda bamba, e, lembrando bem, para o desgosto de alguns, Brizola e Tancredo, são nossos representantes trágicos que não conseguiram levar adiante o andor da história onde deveriam ter chegado. Acabam, como diz a sabedoria popular, nadando, nadando para morrer na praia. E com eles também o Brasil parece morrer na praia.
É muito para lamentar que o presidente Bolsonaro já não conseguirá levar adiante o mínimo que ele prometera que conseguiria. Esse mínimo seria essencial para o país se dar conta de que estava caminhando por dentro de uma bruma parcialmente espargida por nós próprios, pelo suor de nossos corpos em estremecimentos doidivanos, nossa moira, ao que parece, nosso ímpeto autofágico, talvez um tanto desmiolados ou catatônicos caminhando como se fora por uma selva áspera e forte sem ter qualquer noção de onde está o caminho certo e aonde vai dar. Essa bruma não será despargida e o caminho tornado ensolarado enquanto prevalecer o predomínio de uma única visão dominante de nós mesmos, a qual é imposta e instrumentalizada pelo segmento intelectualizado das classes médias como se fora não alguma essência do brasileiro, e sim, um ideal urdido e maquinado daquilo que o brasileiro deve ser.
Os brasileiros que votaram em Bolsonaro em 2018 estão hoje nas ruas sob o perigoso risco de se contaminarem por uma doença traiçoeira e feroz porque não querem abrir mão de uma vitória que os colocou na ribalta do teatro da vida nacional, onde nunca haviam estado. Não há entre eles nenhum Shakespeare, nenhum Álvares de Azevedo, nenhum Dias Gomes, nenhum Nelson Rodrigues para construir uma tragédia como adivinhação, como premonição e como lição. Deles só se há de ouvir impropérios emotivos, versos estridentes desconjuntados, tramas de churrascos e de botequins, como os que saem da boca de seu líder. Entretanto, foram eles em grande parte que construíram o Brasil pelos espaços abertos, fixando corrutelas e arrabaldes por onde quer que passassem, tropeiros do Norte e do Sul tangendo gado e levando cargas de civilização, em busca de um Eldorado que jamais existiu. Eles creem que existirá.
Os tropeiros e assentados de outrora mandaram seus filhos e filhas para as cidades e lá estão eles crescidos buscando seu espaço de liberdade, trabalhando com dureza raramente arrefecida, por muito tempo engurujados em sua timidez e humildade de quem se sente gente de fora, mas agora já cientes de que são gente de dentro, a desafogar toda sua sentida opressão virada mágoa. Não há mais como refreá-los pela engambelação tradicional.
Do lado confortável da vida brasileira, aquele estamento social onde todos se acomodam pelo patrimonialismo, pelos direitos garantidos em cláusulas pétreas e também divinizadas, pelo espírito de corporativismo, pela parentela e pelo clã, há uma mínima minoria que, dizem os economistas, tem o poder real nas mãos, e uma maldizente classe média empoleirada a se bicar por posições mais estratégicas para servir ao poder ou a querer o poder, sem saber como adquiri-lo, sem suportar estar de fora do poder, sem deixar de se consolar olhando de cima para baixo e cagando acintosamente em que passa por baixo.
Uma nação com potencial de grandiosidade não persiste desse jeito, está evidente. A humanidade da atualidade nos olha boquiaberta e a humanidade extemporânea não nos perdoará por vivermos em picuinhas. Bolsonaro, o trágico herói, já mito em vida, sucumbirá como imolação da tragédia e, em remissão, ganhará estátua de bronze nos jardins do nosso Partenon, junto a Bonifácio, Rondon, Getúlio, e luminares como Nelson Rodrigues, Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, Luiz Sérgio Sampaio e outros, como homens que lutaram e se sacrificaram para grudar as juntas e os cacos da nação em um conjunto promissor. Talvez não agora, porém, mais dia, menos dia, isso acontecerá, o sol haverá de brilhar mais uma vez.
[1] No dia 13 de maio, eram 189.157 infectados, 78.494 recuperados, 97.584 em situações amenas, 8.318 em condições críticas e 13.149 mortos.