A Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990, “dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais”. No Título IV, que versa sobre regime disciplinar, o art. 117, inciso XII, afirma expressamente que é proibido ao servidor: “receber propina, comissão, presente ou vantagem de qualquer espécie, em razão de suas atribuições”.
O art. 132, inciso XIII, do diploma legal mencionado, estabelece que será aplicada pena de demissão ao servidor que transgredir a vedação do aludido inciso XII do art. 117. Assim, será demitido o servidor público que receber presente em razão de suas atribuições.
A referida lei não menciona natureza ou valor do presente recebido que implicará na aplicação da penalidade de demissão. Portanto, a natureza ou valor do presente são irrelevantes. A vedação alcança todo e qualquer presente.
A Resolução n. 3, de 23 de novembro de 2000, da Comissão de Ética Pública, fixa regras sobre o tratamento de presentes e brindes aplicáveis às autoridades públicas abrangidas pelo Código de Conduta da Alta Administração Federal. Esse normativo estabelece que a proibição “… se refere ao recebimento de presentes de qualquer valor”.
A Resolução CEP n. 3, de 2000, permite a aceitação de brindes, como tal entendidos aqueles: a) que não tenham valor comercial ou sejam distribuídos por entidade de qualquer natureza a título de cortesia, propaganda, divulgação habitual ou por ocasião de eventos ou datas comemorativas de caráter histórico ou cultural, desde que não ultrapassem o valor unitário de R$ 100,00 (cem reais); b) II – cuja periodicidade de distribuição não seja inferior a 12 (doze) meses e c) que sejam de caráter geral e, portanto, não se destinem a agraciar exclusivamente uma determinada autoridade.
A Resolução CEP n. 3/2000 permite a aceitação de presentes: a) em razão de laços de parentesco ou amizade, desde que o seu custo seja arcado pelo próprio ofertante, e não por pessoa, empresa ou entidade que se enquadre em qualquer das hipóteses previstas no normativo e b) quando ofertados por autoridades estrangeiras, nos casos protocolares em que houver reciprocidade ou em razão do exercício de funções diplomáticas.
A segunda hipótese prevista da Resolução CEP n. 3/2000 tem gerado intensa discussão política e jurídica em função de presentes recebidos pelo ex-Presidente Bolsonaro e pelo atual Presidente Lula. O debate parece se dar em torno da existência, ou não, de lei (ordinária) definindo o destino dos mimos recebidos pelo Chefe de Estado de autoridades estrangeiras.
Parece fora de dúvida que o Chefe de Estado não pode ser tratado como os demais agentes públicos, notadamente os servidores públicos ocupantes de cargos na Administração. A condição de representante do Estado brasileiro nas relações internacionais impõe oferecer e receber presentes como demonstrações de respeito, consideração e amizade. Esses mimos podem ser importantes instrumentos de facilitação do diálogo de interesse mútuo.
A questão verdadeiramente relevante reside na destinação dos presentes recebidos pelo Chefe de Estado. Por força dos princípios republicano, da moralidade e da impessoalidade, todos expressamente inscritos na Constituição de 1988, não é admissível que os regalos sejam incorporados ao patrimônio pessoal do mais importante agente público do Estado brasileiro. Essa conclusão é geral, não tem relação com o governante desse ou daquele momento. Vale para Lula, Bolsonaro, Temer, Dilma, Fernando Henrique, Itamar, João, Maria, Paulo ou Joaquina.
Afinal, os mimos são recebidos pelo Presidente da República, quem quer que seja ele ou ela. As autoridades estrangeiras presenteiam o representante do Estado brasileiro, independentemente do nome ou das características pessoais do mandatário ou mandatária. É fácil perceber que o presente se destina ao Brasil, seu povo e seu governo. A autoridade brasileira é um mero instrumento ou intermediário de um ato diplomático de “boa vizinhança”.
Se o servidor público não pode receber qualquer presente e, portanto, incorporar o regalo ao seu patrimônio, com mais razão o Chefe de Estado, também Chefe da Administração Pública Federal, não pode fazê-lo. Estamos diante de situação em que mesmo a força do exemplo pode e deve ser invocada. E, como diz o ditado popular: “o exemplo vem [ou deve vir] de cima”.
Deve ser lembrado o conhecido raciocínio jurídico (ou princípio de hermenêutica) de que onde presente a mesma razão, deve-se aplicar a mesma disposição ou regra de direito (ubi eadem ratio ibi eadem legis dispositio). Em outras palavras, não se consegue vislumbrar na ordem jurídica solução distinta daquela consagrada na Lei n. 8.112, de 1990. Nenhum agente público pode incorporar ao seu patrimônio presente recebido em função do exercício de suas atribuições funcionais.
Estranhamente, o Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu que não há legislação que vede um presidente da República de embolsar presentes recebidos de governos e empresas. “Por maioria, o Tribunal de Contas da União (TCU) mudou radicalmente a posição que tinha até o ano passado a respeito do recebimento de presentes de alto valor por presidentes da República. Em sessão realizada na quarta-feira passada, prevaleceu no plenário do TCU o voto divergente do ministro Jorge Oliveira, segundo o qual, ‘por falta de fundamentação jurídica’, o presidente Lula da Silva não tem de devolver um relógio de luxo, avaliado em R$ 60 mil, que o petista ganhou da joalheria Cartier numa viagem à França durante o primeiro mandato” (fonte: estado.com.br).
Consta que o Ministro Walton Alencar, do TCU, derrotado na decisão aludida, argumentou no sentido de que a impossibilidade de um Presidente da República receber bens de luxo no exercício da função é “uma questão tão óbvia que o legislador entendeu desnecessária a menção na lei”. Esse entendimento está corretíssimo. Como destaquei na modesta obra “Como Funciona o Direito da Atualidade”, a mais importante mudança paradigmática do Direito reside na força normativa dos princípios jurídico-constitucionais. Assim, os princípios republicano, da moralidade e da impessoalidade, como destacado anteriormente, aplicam-se diretamente, independentemente de intermediação legal, para proibir a incorporação de presentes recebidos pelo Chefe de Estado ao seu patrimônio pessoal. Trata-se, é fácil perceber, de uma conclusão elementar, decorrente de um padrão mínimo de moralidade imposto aos negócios públicos.
Registre-se a existência de várias decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido da inconstitucionalidade da concessão de subsídio mensal e vitalício a ex-governador que tenha exercido o cargo em caráter permanente e mesmo de pensão aos familiares mais próximos. Nesses casos, foram invocados como fundamentos jurídicos das manifestações: a) o “princípio republicano [que) apresenta conteúdo contrário à prática do patrimonialismo na relação entre os agentes do Estado e a coisa pública” e b) “os princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa [que] vedam a instituição de tratamento privilegiado sem motivo razoável”.
Portanto, a consagração de privilégios e do aumento patrimonial privado como decorrências do exercício de funções públicos, mais ou menos graduadas, não consegue guarida válida em nenhum modelo de funcionamento da Administração Pública baseado nas noções de República e de moralidade.
É salutar que o legislador defina expressamente em lei (ordinária) a vedação de incorporação de presentes pelo Chefe de Estado e sua consequente destinação ao patrimônio público. Seria a explicitação de hipótese já vedada pela ordem jurídica brasileira. Entretanto, a ausência dessa legislação não permite a consagração dessa odiosa situação de obtenção de vantagem pessoal. Com efeito, um dos maiores desafios da institucionalidade jurídica no Brasil é a eliminação dos inúmeros casos do império da triste “cultura de levar vantagem” contra tudo e contra todos.