Nos últimos tempos, tem-se observado uma estranha e absurda aceitação da barbárie como método de ação política. No Brasil e em diversas partes do mundo, atos de violência física e simbólica têm sido justificados por líderes e movimentos políticos como meios legítimos para atingir certos fins. Essa tendência é profundamente preocupante e sugere um retorno a práticas que a humanidade, em seu progresso civilizatório, deveria ter superado.
O atentado ao ex-presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump, foi o mais recente episódio de violência política de grande magnitude. “O ex-presidente e candidato republicano na corrida à Casa Branca neste ano Donald Trump sofreu um atentado neste sábado (13), por volta das 18h15 (horário local), durante um comício na Pensilvânia. Logo após o incidente, ele foi levado às pressas pelo Serviço Secreto americano para fora do palco, ensanguentado, após ter sido atingido de raspão na orelha” (fonte: infomoney.com.br). Independentemente da repulsa que se possa ter em relação às ideias e práticas do candidato Trump, não é admissível que sua derrota política ocorra por meio de um assassinato. Sequer é aceitável tomar o ocorrido como uma grande encenação sem as provas consistentes para se fazer essa afirmação.
A barbárie, assim entendida como a apologia e a prática de violência cruel e desumana, esteve presente ao longo da história da humanidade. O progresso civilizatório, representado por excelência na ideia de dignidade da pessoa humana, fez recuar consideravelmente o império da barbárie. Entretanto, observa-se um fenômeno bastante original. Vivemos um momento em que a violência encontra justificações ideológicas intensas e atraentes. Não são poucos os atores sociais, dentro e fora da arena política, que têm utilizado discursos que normalizam a violência, apresentando-a como uma resposta necessária a supostas ameaças ou injustiças.
Em boa medida, a aceitação da barbárie como método de ação política pode ser atribuída à polarização crescente em várias sociedades contemporâneas. As divisões políticas e ideológicas se aprofundaram, criando um ambiente no qual o “outro” é visto não apenas como adversário circunstancial com ideias e visão de mundo diferentes, mas como inimigo a ser destruído. Essa desumanização do oponente facilita a aceitação de medidas extremas, uma vez que a violência é vista como uma defesa legítima contra um perigo a ser evitado a todo custo.
Esse cenário aponta para algo especialmente preocupante. A violência deixa de ser um subproduto do aumento populacional, do avanço da criminalidade organizada e das desigualdades sociais. A violência decorrente desses fatores não busca legitimação no plano das ideias, não pretende ganhar corações e mentes e não persegue se estabelecer como prática social amplamente aceita.
Ademais, a propagação de informações falsas, meticulosamente elaboradas, e a manipulação midiática desempenham um papel fundamental na normalização da barbárie. Por intermédio das redes sociais e de meios de comunicação tendenciosos, notícias distorcidas e sensacionalistas ganham ares de verdade, exacerbando medos e ódios. Assim, atos de violência são frequentemente enquadrados como respostas esperadas e necessárias em contextos adredemente fabricados.
Outro elemento crucial a ser devidamente ponderado é a ampla e disseminada desilusão com as instituições democráticas tradicionais, notadamente o sistema representativo baseado no voto popular periódico. Infelizmente, cresce a percepção de que os métodos pacíficos e institucionais são ineficazes para resolver os grandes e persistentes problemas socioeconômicos. Esse desencanto leva grupos cada vez maiores de pessoas a admitirem a violência como uma forma de ação direta e eficaz. Os acontecimentos do dia 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos da América (ataque ao Capitólio) e do dia 8 de janeiro de 2023 no Brasil (ataques às sedes do Supremo Tribunal Federal, Congresso Nacional e Presidência da República) são profundamente emblemáticos.
As lideranças políticas desempenham um papel fundamental na aceitação da barbárie como método normal de ação política. Quando líderes fortemente reconhecidos dos milhões de pessoas justificam ou minimizam atos de violência, enviam uma mensagem perigosa à sociedade. Esse tipo de comportamento pode legitimar ações violentas por parte de seus admiradores, seguidores e apoiadores.
São particularmente devastadoras, no sentido de romper com os padrões mínimos de convívio civilizado, posturas políticas que apontam para: a) o armamento indiscriminado da população; b) a apologia à tortura e ao torturador (qualificado como herói); c) a aceitação da eliminação física de milhares de pessoas por divergências políticas e ideológicas e d) a impressionante redução do embate político a uma luta do bem contra o mal, que se resolve na eliminação física do “outro lado”.
A aceitação da barbárie como método de ação política também pode ser vista como um sintoma das graves crises vivenciadas pelas sociedades contemporâneas. A imensa maioria das pessoas não consegue identificar como resultantes do sistema econômico capitalista, na fase da financeirização rentista, os enormes e recorrentes problemas climáticos e a desigualdade socioeconômica crescente. Existe uma tendência, alimentada pela baixa conscientização política, de atribuir às instituições do sistema político os grandes males da atualidade. A ausência de mudanças significativas e populares, independentemente dos governantes de plantão (direita, centro e esquerda oficial), gera uma sensação de impotência e raiva que sugere ser a violência um caminho, ou o caminho, a ser trilhado.
A normalização da barbárie como método de ação política tem consequências devastadoras. Os problemas transcendem as vítimas diretas das violências físicas e simbólicas. Toda a sociedade sofre quando a violência se torna uma prática aceitável na seara política. A confiança nas instituições é minada, os laços sociais são enfraquecidos e a própria ideia de civilização é perigosamente posta em xeque. O custo humano e social é imenso. Os efeitos de médio e longo prazos, em praticamente todas as áreas das relações sociais, podem ser catastróficos. Nesse sentido, são especialmente preocupantes os aumentos de casos de assédios, de violência doméstica, no trânsito e contra as mulheres.
O contexto de avanço das diversas formas de violência, com lastro em movimentos de legitimação das respectivas práticas, exige a organização de uma ofensiva de reafirmação dos valores democráticos e dos direitos humanos. É essencial que lideranças políticas, organizações da sociedade civil, intelectuais e cidadãos em geral se posicionem publicamente e com firmeza contra a normalização da violência. A promoção do diálogo, da tolerância, da cultura da paz, da compreensão e afirmação da diversidade humana e da resolução pacífica de conflitos devem ser postos como prioridades permanentemente trabalhadas.
O processo educacional de uma forma geral, e a educação política em particular, desempenha um papel insubstituível na reversão do triste quadro de aceitação da barbárie e da violência que a caracteriza. É necessário fomentar uma cultura de paz desde a infância. Ensinar às novas gerações a importância da empatia é uma tarefa das mais nobres. O respeito à integridade física e emocional de todas as pessoas e a convivência harmoniosa com as mais diversas preferências humanas são valores a serem cultivados e fortalecidos em cada espaço e atividade social.
A construção de uma sociedade justa, livre, sustentável e solidária exige a supressão da barbárie e das violências que são próprias desse estágio primitivo de convívio social. O progresso da humanidade deve ser medido pelo afastamento contínuo em relação às diversas formas de violências físicas e simbólicas e pela afirmação e fortalecimento das práticas sociais informadas pelos valores mais nobres da cooperação, fraternidade e solidariedade.