No próximo ano, no dia 15 de março, comemoraremos 40 anos de democracia. Saímos de um regime autoritário para a implantação do Estado de Direito, governo das leis, e não dos homens.
A transição democrática sempre foi um momento de grandes desafios e perplexidade. Muitas vezes transforma ídolos em políticos destruídos; desconhecidos, em heróis. Exemplo disso foi a Espanha, na travessia de Franco para a monarquia, quando surgiu a figura de Adolfo Suárez, que fez a transição, entrando na História.
O brasilianista Ronald M. Schneider, que escreveu sobre as transições democráticas na América do Sul, disse que a mais bem sucedida foi a brasileira, que não deixou nenhuma hipoteca militar e implantou uma democracia plena, com os ventos da liberdade governando o País, em absoluta normalidade. Aqui não houve revanche, como lá, e todos foram incorporados aos novos tempos, com a anistia para os dois lados. No Chile tiveram que transformar Pinochet e outros generais em senadores e criar o Fundo do Cobre, administrado pelas Forças Armadas. Na Argentina, Alfonsín teve que enfrentar cinco revoltas; o mesmo ou algum movimento semelhante ocorreu no Peru, no Uruguai, na Colômbia, em Portugal, na Grécia e em outros.
Tivemos aqui uma tragédia com a morte do Tancredo e a agonia que antecipou seu descanso.
Quando Aluízio Alves me avisou que Tancredo, nosso grande e inigualável estadista, estava internado, eu me desloquei para o Hospital de Base, e lá estavam Ulysses, Aécio, Tancredo Augusto e toda a família. Ulysses, isolado numa pequena sala com os modestos móveis da Novacap, sem ninguém. Ao entrar, ele me disse: “Sarney, veja o que o destino preparou para nós, Tancredo terá que ser operado hoje. Teremos grandes dificuldades e perigos e não podemos cometer nenhum erro. Este é o momento mais importante da minha luta.” Eu lhe respondi: “Ulysses, você foi o grande político e herói que nos conduziu até aqui. Comande, e vamos atravessar esta dificuldade. O Dr. Renault de Matos me afirmou em uma conversa que tudo se resolverá.” Pelo tempo, não sei se estou sendo fiel às palavras do nosso diálogo. Mas o sentido é o mesmo, com absoluta fidelidade. Já repeti muitas vezes os fatos, o que, de novo, estou fazendo.
Fizeram tudo para intrigar-me com Ulysses, com quem tinha uma relação que vinha de nossos tempos na Câmara dos Deputados, no Rio de Janeiro, no Palácio Tiradentes, onde exercíamos nossos mandatos. Mas não conseguiram e se tivemos algumas divergências, nenhuma nos levou ao rompimento. Eu tinha noção de seu lugar na resistência ao regime militar, do respeito com que a Nação o via e da chefia que exercia sobre a classe política e do meu papel na articulação da vitória no Colégio Eleitoral e com o MDB.
Em seguida, Ulysses me disse: “É você que tem que assumir amanhã. É o que manda a Constituição.” Eu repliquei: “Jamais, Ulysses. Quero assumir com o Tancredo. Não tenho nenhuma ambição e não quero aparecer perante o Brasil como impostor. Você é testemunha de que só fui vice por imposição de Aureliano Chaves, que acreditava que eu seria essencial para a vitória.”
E Ulysses: “Sarney, não crie caso. Nós não podemos abrir uma brecha para o Walter Pires (então Ministro do Exército e muito contra mim). Lutamos tanto e não podemos morrer na praia.” Eu respondi: “Ulysses, eu não sou carreirista, a Constituição diz que é você.”
No fim de nossa conversa já o corredor do Hospital estava cheio: Leônidas, Ivan, Pedro Simon, Fernando Henrique, Heráclito Fortes e muitos outros.
Chegamos numa grande roda em que se discutia exatamente quem deveria assumir. Ulysses expressou seu pensamento. Eu disse que não participaria de nenhuma démarche e que Ulysses sabia minha posição. Em seguida Leônidas assumiu a execução das disposições de Ulysses e o convidou: “Vamos ao Leitão de Abreu comunicar a decisão.” Olhou em seguida para o Coronel Albérico Barroso Alves e pediu sua gravata: “Empresta-me tua gravata.” Desceram, tomaram também emprestado o carro do Heráclito e foram à Granja do Ipê.
Lá comunicaram o fato ao Leitão, que lhes replicou que o Figueiredo não me passaria a faixa presidencial.
Quando saíram, entrou o Walter Pires, que fora comunicar que iria levantar os quartéis. Leitão o advertiu: “Você não é mais Ministro. Foi exonerado no Diário Oficial de hoje.” (Já era dia 15, data da posse.)
Walter Pires, desolado, argumentou. “Não sou mais Ministro?”
Leitão respondeu: “Não”.
Walter Pires: “Está tudo perdido!”
Começava a transição. Dávamos o primeiro passo, e a Democracia nascia como o Sol. Hoje ilumina o Brasil. Ela não morreu em minhas mãos.
40 anos de liberdade absoluta. Novo Tempo. Nova República. A Constituição de 1988.
A Democracia Brasileira.