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O missionário que se fez político que se fez missionário político

Difícil encontrar quem encontre defeitos em António Guterres

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"Não vamos salvar a humanidade, vamos fazer aquilo que pudermos." A frase é do político português que aguarda a eleição formal como secretário-geral das Nações Unidas numa entrevista de 2002 à Seleções do Reader"s Digest. Acabava então de abandonar o cargo de primeiro-ministro de Portugal, na sequência de uma clamorosa derrota do PS (Partido Socialista) nas autárquicas, e de entregar o partido a Ferro Rodrigues. "Com total verdade não tenho nenhuma ambição política para o futuro", garantia, admitindo no entanto que lhe tinha custado recusar a possibilidade, que lhe foi aventada em 1999, quando estava a terminar o primeiro mandato à frente do governo, de ser presidente da Comissão Europeia – recusa que justificou com o compromisso com o país. Acabaria no entanto, mais tarde, depois de ganhar as segundas legislativas com um deputado a menos do que a maioria absoluta, por quebrar esse compromisso.

Houve quem falasse em covardia, em fuga, na incapacidade de lutar contra aquilo a que o próprio apelidou a virtualidade de "um pântano". Jorge Coelho, que entrou para o PS em 1983 através dele e o diz "uma pessoa com qualidades humanas como nunca vi em ninguém, com uma preocupação permanente com os outros, as pessoas, as medidas tomadas", considera que não havia outra hipótese: "Já não havia condições para continuar nas funções."

Difícil crer hoje, num momento de aclamação nacional, de quase beatificação, que durante anos a fio a imagem de Guterres e a sua popularidade sofreram com essa ideia de abandono – do país e do partido, que perde as eleições para o PSD de Durão Barroso, o qual, por ironia, não hesita quando recebe o mesmo convite que Guterres recusara. Há quem suspire pela troca, e acredite que caso ele não tivesse recusado a Europa podia ser hoje muito diferente. É o caso de Ana Gomes, que conheceu Guterres quando este reunia com a equipa do Ministério dos Negócios Estrangeiros (era ministro Jaime Gama) subordinada ao dossiê Timor, da qual ela fazia parte. Timor foi, aliás, o primeiro grande momento internacional do então PM português. O homem que o ex-colega de turma do Instituto Superior Técnico José Tribolet crê, apesar de "extraordinariamente inteligente", não ter sido talhado para "comandar tropas em combate", começou por, em reunião informal numa cimeira Europa-Ásia, desafiar o presidente da Indonésia, Suharto, a libertar o líder da guerrilha independentista, Xanana Gusmão, e, em público, lembrar que o problema estava longe de se ater à relação (ou falta dela) entre os dois países – era um assunto que metia a ONU, já que tratava de uma ocupação ilegal à luz do Direito internacional. E, já após o referendo patrocinado, em 1999, pelas Nações Unidas e a onda de violência que se seguiu ao sim à independência, ligou ao então presidente dos EUA Bill Clinton e pressionou-o para que houvesse uma intervenção salvadora na ex-colónia portuguesa. É Ana Gomes que lembra: "Ele não teve medo, teve a coragem de usar argumentos duros e decisivos. Disse que nós tínhamos tropas no Kosovo [integradas nas forças da Otan, que entrou em guerra com a Iugoslávia] e que os portugueses não compreendiam que não houvesse uma intervenção em Timor. Foi fundamental para que os indonésios aceitassem uma forma internacional." A ex-diplomata, que só se inscreveu no PS em 2002, após a derrota do partido nas legislativas, faz uma pausa. "Tem essas qualidades e refinou-as, aprendeu muito."

Reconhece mesmo assim que algumas podem de vez em quando ser defeitos. Outro referendo, o do aborto, em 1998, que lhe vale até hoje memórias pouco gratas das (e dos) feministas, será um desses momentos: após a aprovação, pelo Parlamento, da descriminalização da interrupção da gravidez até às dez semanas, o líder do PS combinou com Marcelo Rebelo de Sousa, seu grande amigo e então à frente do PSD, a consulta popular. "Talvez houvesse uma flexibilidade tática em que ele é magistral – ninguém é eleito para este cargo sem um voto negativo sem essa flexibilidade. E houve as convicções, claro. Ele tem convicções. Não gostei, mas respeito. E admito que ele hoje não fizesse aquilo, não entrasse no negócio em que entrou."

Convicções: José Tribolet atesta-as. "Lembro-me de que quando estava a doutorar-me nos EUA e vinha a Portugal no verão, ia ter com ele ao célebre sótão da casa dele e ele me contava que havia muitos anticorpos no PS contra ele por ser católico. Pertenceram os dois ao grupo do Técnico da Juventude Universitária Católica, e Tribolet não tem dúvidas de que em Guterres a política veio depois da ação social – ou nasceu da ação social, como o próprio já afirmou. "Ele tinha um lado missionário", diz o ex-colega que, professor catedrático do Técnico, voltou a conviver com Guterres quando este, após a saída do governo e antes de ir para o Alto-Comissariado para os Refugiados, esteve a dar aulas no instituto. Das capacidades do amigo diz o melhor, mas com a tal ressalva: "Além da capacidade intelectual impressionante, é muito intuitivo. Demasiado inteligente para ser primeiro-ministro, aliás. Espantei-me muito por o ver naquelas funções. A cabeça dele está sempre a pensar, vê uma solução mas pensa que pode haver sempre outra melhor – o que gera alguma indecisão. É uma pessoa para comando estratégico, precisa de se rodear de pessoas que construam as soluções."

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