Direito Penal

Mudar o Coaf vai na contramão do que acontece na Europa, diz pesquisadora

Mudança pode não ser bom para relação com as outras unidades de inteligência de países importantes

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Nas vésperas das festas de fim de ano, a pesquisadora Ana Carolina Carlos de Oliveira viajou de Barcelona, onde mora, para o interior de São Paulo para visitar sua família e se surpreendeu ao ler no jornal que o futuro ministro Sergio Moro pretendia mudar o Coaf (Conselho de Controle de Atividade Financeira) da pasta da Fazenda para a estrutura do Ministério da Justiça, que ele comandaria a partir de janeiro.

“Isso vai na contramão do que estão fazendo na Europa. Pode não ser bom para a relação do Coaf com as outras unidades de inteligência financeiras de países importantes”, disse.​

Mestre e doutora em direito penal pela Universidade de São Paulo e especialista em direito penal pela Universidade de Barcelona, Ana Carolina Carlos faz parte de um grupo de pesquisadores internacionais no Instituto Max Planck, da Alemanha, em um projeto que compara sistemas de prevenção de lavagem de dinheiro e fluxos de informação entre unidades de inteligência financeira na Europa.

A pesquisa compara os sistemas da Espanha, Itália, Alemanha, Suíça e Reino Unido, para identificar os pontos de possível aperfeiçoamento e correção das falhas do regime jurídico da prevenção da lavagem de dinheiro e propor reformas legislativas. “A independência do Coaf brasileiro precisa ser preservada”.

Como analisa a transferência do Coaf do Ministério da Economia para a Justiça?

Ana Carolina Carlos – Transferir o Coaf para o Ministério da Justiça aproxima o órgão das características das unidades de inteligência financeira (UIF) policiais. A grande maioria das UIFs europeias está situada em ministérios equivalentes ao que era o Ministério da Fazenda no Brasil. Ou seja, tem característica mais administrativa do que policial. Alemanha, Suíça, França e Espanha, para citar alguns exemplos, têm unidades administrativas. Isso porque essa posição institucional garante aos pares internacionais que a informação compartilhada será tratada com mais sigilo pela unidade de destino, não será diretamente transferida à polícia sem a prévia análise de inteligência financeira, preservando também do risco de vazamento de informações e a confidencialidade dos dados de pessoas que sequer são investigadas criminalmente. O Brasil está totalmente na contramão do que está acontecendo na Europa.

Então a mudança pode prejudicar a cooperação do Coaf brasileiro com unidades dos outros países?

Tradicionalmente, a cooperação internacional funciona mais harmonicamente entre unidades de inteligência financeira de características similares. As unidades policiais cooperam melhor com seus pares com características policiais e unidades administrativas cooperam melhor com as administrativas. Ocorre, no entanto, que caminhamos internacionalmente para um modelo bastante enfocado na unidade administrativa, submetida à Fazenda. Tanto é assim que a Alemanha, país que por anos manteve sua unidade de inteligência financeira submetida ao Ministério da Justiça e à polícia nacional, reformou seu sistema de prevenção de lavagem de dinheiro em junho de 2018 e transferiu sua unidade de inteligência financeira para o equivalente ao nosso Ministério da Fazenda. Um dos objetivos do país com essa mudança foi harmonizar-se com as demais unidades europeias e facilitar a cooperação internacional. Por isso, alterando o modelo brasileiro (administrativo) para um modelo mais policial (no Ministério da Justiça), estaríamos na contramão das tendências internacionais, o que possivelmente pode dificultar a cooperação de órgãos estrangeiros com o Brasil.

Mas há motivo para desconfiança só porque o órgão mudou de pasta?

A cooperação entre unidades de inteligência financeira internacionais se baseia principalmente na confiança mútua de que as informações serão tratadas com tanta imparcialidade e sigilo fora do país como seriam internamente. A maior presença de corpos policiais e do Ministério Público na estrutura das unidades tende a diminuir esse sigilo e, consequentemente, há o potencial de que órgãos equivalentes ao Coaf no exterior enviem menos informações ao Brasil.

Mas os acordos bilaterais entre países já contemplam colaboração direta.

Os acordos bilaterais servem para os ministérios públicos, servem para as polícias. Mas ele não serve para as unidades de inteligência financeira. O objetivo de unidade de inteligência financeira no mundo é não precisar de acordo bilateral. A ideia é: somos todos um mesmo órgão, temos todos a mesma estrutura, o mesmo grau de independência e confidencialidade e não precisamos ficar usando o Judiciário. Por exemplo, na Europa as unidades de inteligência financeira se comunicam diretamente por um e-mail de um servidor ultra seguro e protegido. Quando eles percebem que a unidade de um desses países está descendo no nível de confiança e autonomia, eles param o e-mail ou diminuem a cooperação. E aí é necessário voltar a recorrer à via dos acordos bilaterais. Que é, por exemplo, o que aconteceu com a Turquia, que tem uma situação parecida com o Brasil e adotou um modelo igual ao que adotamos aqui.

A mudança do Coaf para a Justiça acontece justamente quando se instala uma dúvida em torno do presidente Jair Bolsonaro por conta de um relatório que aponta movimentações financeiras atípicas do ex-policial Fabrício Queiroz, seu amigo e ex-assessor de seu filho Flávio. Como você analisa esse fator?

Sinaliza um indício de que o Coaf precisa receber muita proteção para que não seja afetada a sua independência institucional. Porque o primeiro movimento do novo governo foi tirar de uma localização administrativa, passar para outra e imediatamente substituir o diretor desse órgão. O Coaf está sendo bombardeado o tempo todo como se fosse a polícia. Porém, o Coaf não é a polícia, não é o órgão responsável por investigar corrupção. O Coaf é um órgão para investigar fluxo de dinheiro relacionado à lavagem de dinheiro. Dentro da formação do Coaf existe membro do Ministério Público, do Banco Central, da polícia, que podem identificar lavagem de dinheiro que procede da corrupção, mas o foco é a lavagem de dinheiro. Quer dizer, o Coaf não é, por exemplo, formado exclusivamente por um grupo de funcionários técnicos que prestaram concurso para o Coaf ou de indicados políticos. É muito importante ressaltar que o Coaf, independente de onde estiver, precisa ser independente. Um funcionário do Coaf deve ter autonomia para negar, por exemplo, um pedido de informações até do procurador da República, se ele achar que a informação ainda não pode ser repassada.

O ministro Sergio Moro justifica a mudança falando da necessidade de combater a corrupção.

O Coaf é um órgão de inteligência responsável por identificar operações de lavagem de dinheiro. Ele contribui identificando possíveis fluxos de dinheiro ilícito que podem vir da corrupção, mas não tem a finalidade de investigar este crime, e nem poderia, porque essa é uma atribuição das forças policiais. Assim, eu não vejo por que ele não podia usar o Coaf no modelo antigo. Porque, simplesmente, você pode fazer uma cooperação do Coaf com outros órgãos de investigação nacionais, sem retirar a autonomia e independência do Coaf. Basta, por exemplo, que o Coaf adote, internamente, uma orientação anual, proveniente do acordo entre seus membros de Conselho, assim: neste ano nós vamos investigar a lavagem de dinheiro ilícito potencialmente proveniente da corrupção, ou vamos investigar o papel dos bancos internacionais na lavagem de dinheiro no Brasil, e assim por diante. O Coaf poderia muito bem fazer isso mesmo na Fazenda. Agora, se ele está dizendo que o Coaf dentro do Ministério da Justiça é mais eficiente para combater a corrupção, então temos que questionar se o Ministério da Justiça vai efetivamente proteger a independência do Coaf.

​​E pode colaborar de maneira mais direta com a PF?

Claro. Esta pode ser uma linha de trabalho. Mas aí deve existir cuidado em manter a divisão de responsabilidades entre as duas instituições, para que não haja o risco de afetar em algum ponto a independência do Coaf. Ainda que não necessariamente seja assim, há o risco. Quando você tira a independência do Coaf ele deixa de ser um órgão confiável do ponto de vista internacional e da segurança das informações. E existe um perigo de politização deste banco de dados. Além disso, o uso integral de relatórios de inteligência financeira como prova em processos criminais pode afetar o direito de defesa, pois se trata de provas produzidas fora do contexto e das regras do processo penal.

A estrutura do Coaf é suficiente, se comparada com a das unidades similares de outros países?

O Coaf no Brasil é um órgão muito pequeno em relação às outras unidades de inteligência financeira da Europa. Ele é pequeno, tem pouca verba e ele tem poucos funcionários em relação às unidades de inteligência financeira europeias das que eu conheço. No Brasil, conforme o que tenho lido na imprensa, o Coaf tem 37 servidores. A unidade de inteligência financeira alemã, depois das mudanças que se concretizam em 2019, vai ter mais de 1.200 funcionários. Ela já tem mil. Além dos policiais, membros do Banco Central e da Receita, eles contrataram também muitos advogados, por exemplo, especialistas em direito societário, tributaristas. Para dizer assim: talvez o técnico da Receita entenda exatamente como o alguém fraudou o imposto, mas o especialista vai entender ainda melhor a estrutura societária que este cara utilizou. Aqui tem muito pouca gente para fazer essa análise. E comparado com o exterior, o Brasil é um país com pouco controle de capital. Entra muito dinheiro, sai muito dinheiro daqui.

As leis brasileiras são boas quanto à lavagem de dinheiro?

A lei brasileira deixa algumas lacunas. Para indicar exemplos de leis estrangeiras: eu estudei a fundo a lei de lavagem de dinheiro espanhola e alemã, a primeira tem 65 artigos, só de regulamento administrativo e sanção administrativa, a lei alemã tem 59 artigos. Essas leis são detalhistas em apontar o que o sujeito obrigado (instituições financeiras que tem a informar operações atípicas e suspeitas de clientes) tem que fazer, o que a unidade de inteligência financeira tem que fazer, quais são os documentos em detalhe, como se identifica o cliente, como o setor privado pode cooperar melhor com a UIF, como se protegem os dados, e as consequências detalhadas da infração dessas regras. Como que processa a sanção e quem a aplica. Nós temos uma lei de lavagem de dinheiro que tem parte penal, processo penal e administrativo em uma só. O que significa isso? Ela é uma lei muito genérica. Talvez fosse mais adequada uma lei de lavagem de dinheiro mais moderna, detalhada, que explique melhor como é que funciona o Coaf, quem faz parte do conselho consultivo, qual é a organização interna, como se protegem as informações e quais são os deveres desse órgão com a polícia e vice versa, por exemplo. Carece de uma regulamentação mais detalhada e mais potente para tanto demandar exatamente o que o sujeito obrigado precisa enviar, para regulamentar como o Coaf pode cobrar isso do sujeito obrigado, regulamentar com mais detalhes. Não é que seja ruim a nossa lei, a nossa lei é enxuta. Uma lei mais detalhada dá mais poder para o Coaf pedir mais informação, regula melhor a possibilidade de intercâmbio de dados, descreve como cuidar da base de dados, pode especificar mais qual a multa para pessoa jurídica e qual a multa para a pessoa física, dividir as infrações por classe grave, leve, gravíssima. (Folhapress)

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