De costas para a vida: o estigma social do paciente com HIV

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Após uma situação de risco, o medo se transforma em um perigoso silêncio que pode custar vidas. A espiral de preconceitos e desinformação leva muitos indivíduos a ignorar que talvez estejam infectados pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH ou HIV, em inglês), cujo diagnóstico tardio inviabiliza o tratamento adequado para impedir o desenvolvimento da Aids, sigla em inglês para a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Sida). Essa realidade está retratada nas estatísticas do boletim epidemiológico divulgado recentemente pelo Ministério da Saúde (MS), que aponta o aumento de mortes por Aids no Rio Grande do Norte: a taxa subiu 208% nos últimos 10 anos, de 1,2 em 2007 para 3,7 óbitos por 100 mil habitantes em 2017.

De acordo com Marise Reis, casos de Aids aparecem diariamente no Hospital Giselda Trigueiro (Foto: Cícero Oliveira)

Para a professora do Departamento de Infectologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Marise Reis de Freitas, essa curva crescente acontece em função do estigma social carregado pelo HIV, que causa nas pessoas o receio de descobrir o vírus em si mesmas. “Algumas têm consciência de que foram expostas a relações de risco, mas não querem saber se estão positivas para o HIV. Por consequência, passam de cinco a seis anos sem diagnóstico e buscam ajuda médica apenas quando já apresentam os sintomas da Aids”, relata a médica.

O principal desafio, portanto, é falar abertamente sobre o assunto ainda encarado como tabu em diversas esferas da sociedade. “A Aids é uma doença invisível, pois todos se escondem dela. Precisamos expor ao público as informações corretas para a população abrir a mente e entender que o HIV é controlável, há como prevenir e tratar”, defende Marise Reis. A erradicação da epidemia de Aids está entre as metas da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), cujo cumprimento depende da conscientização para que todos os que vivem com HIV recebam tratamento e, consequentemente, deixem de transmitir o vírus para outros indivíduos. Isso porque, com o uso dos medicamentos adequados, não há mais contágio por meio do contato sexual.

Diagnóstico e tratamento

A infecção pelo HIV acontece mais comumente nas relações sexuais sem uso de preservativo, mas também pode ocorrer em virtude de acidentes com agulhas ou entre usuários de drogas injetáveis (UDI). O boletim epidemiológico revela que foram identificados mais de 247 mil casos de infecção pelo vírus no Brasil de 2007 até junho de 2018, sendo 68,6% em homens e 31,4% em mulheres. A transmissão também pode ser vertical, entre gestante e bebê. Por esse motivo, a professora do Departamento de Infectologia alerta a necessidade de realização do teste na primeira consulta pré-natal para que, em caso positivo, a mãe possa iniciar o uso dos medicamentos que reduzem de 25% para 1% o risco de contágio do feto.

Hoje em dia é possível identificar a presença do HIV no corpo humano ainda no primeiro mês de exposição, cujo diagnóstico precoce é importante para o início do tratamento, por meio de substâncias antirretrovirais. Marise Reis explica que, uma vez no organismo, o vírus invade uma célula do sistema de defesa e a partir dela se espalha para células no cérebro, no pulmão, no fígado, no intestino, entre outros órgãos. Geralmente após três semanas de contágio, uma infecção aguda pode ser confundida com um quadro viral simples, parecido com os sintomas da dengue.

Passada a manifestação inicial, o indivíduo se recupera e vive um período assintomático, em média de seis anos, sem qualquer sinal de presença do HIV. Novos problemas de saúde como perda de peso, diarreias, sinusite e infecção na pele sinalizam a transição entre a fase assintomática e a Aids, doença que atinge o sistema imunológico e permite o aparecimento de infecções oportunistas, entre elas tuberculose, pneumonia, meningite e alguns tipos de câncer. Nesse momento, a ausência de diagnóstico ou a identificação tardia do problema podem levar à morte.

Uma nova perspectiva

O espelho é uma superfície geralmente plana composta de vidro e metal, que mediante a devida preparação passa a ter o singular poder da reflexão. Do ponto de vista daquele que se olha por esse objeto, o entendimento que fica é que ele transforma a perspectiva de si e das coisas ao redor. Para Edivaldo José Souza de Andrade, receber o diagnóstico positivo para o vírus HIV foi, segundo ele, “o despertar para diversos questionamentos sobre a vida”.

A descoberta se deu em um contexto de trabalho no ano de 1996, após leves complicações de saúde. Orientado por sua médica, o servidor público, à época com 30 anos de idade, recebeu a notícia que inicialmente desestruturou sua vida. Depois de um longo processo de autoconhecimento, atualmente possui uma vida regrada: acorda cedo, pratica atividades físicas, passa boa parte do dia no trabalho e toma sua medicação duas vezes ao dia.

Um dos fatores que ajudaram Edivaldo a mudar a sua perspectiva sobre a nova situação – e os paradigmas que envolviam o vírus e a AIDS em sua juventude – foi poder falar da realidade. Em Brasília, onde morava, encontrou um grupo de acolhimento para pessoas vivendo com HIV, no qual aprendeu a lidar com a situação e encontrar caminhos para sua sobrevivência.

“O HIV não é específico de nenhum grupo. Precisamos falar sobre isso”, defende Edivaldo Souza, ao citar que o vírus está presente em todas as classes sociais e orientações sexuais (Foto: Marina Gadelha)

Hoje, 22 anos depois do diagnóstico, ele dedica parte do dia a ajudar o próximo.  “Eu acho importante abrir meu diagnóstico, porque posso ser a voz das pessoas que não falam com ninguém, mas que se sentem representadas por mim” afirma, ao relatar que deixou seu número de telefone pessoal no Serviço de Atendimento Especializado (SAE), local de acompanhamento de saúde dos infectados, para que outras pessoas diagnosticadas possam entrar em contato.

Olhar através desse espelho, que redesenhou seu ponto de vista, fez Edivaldo perceber que as relações interpessoais vão mudar de uma maneira ou de outra e que, apesar de ele próprio encarar abertamente a situação, cada pessoa terá a sua forma de resistir ao fato. “O HIV traz uma série de peculiaridades e subjetividades que cada um vai ter que saber como lidar” relata. Depois do entendimento da situação, o caminho é de decisão, e o seu exemplo de vida mostra que a jornada é da busca pela saúde e pela felicidade.

Dezembro Vermelho

Há 30 anos, a data de 1º de dezembro é o Dia Mundial de Luta Contra a Aids, instituído em 1988 pela ONU e Organização Mundial de Saúde (OMS). No Brasil, a data foi adotada no ano seguinte, como intensificadora das ações de conscientização e prevenção das doenças causadas pelo vírus HIV. Mais recentemente, em 2017, entrou em vigor no País a lei de criação da campanha nacional de prevenção ao HIV/Aids e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), denominada Dezembro Vermelho.

Campanha para o Dezembro Vermelho celebra 30 anos do Dia Mundial de Luta Contra a Aids

No âmbito acadêmico, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) adere à campanha e ainda possui diversas ações no ensino, na pesquisa e na extensão focadas nessa temática. “As ações para combate das ISTs acontecem durante o ano inteiro. Em julho promovemos o combate às hepatites virais, outubro é o mês de luta contra a sífilis, mas em dezembro intensificamos essas ações”, relata Maria Angélica Gil, psicóloga e coordenadora do Programa de Aconselhamento em Saúde (PAS) da Diretoria de Atenção à Saúde do Servidor (DAS).

A testagem rápida é uma das atividades que possuem grande número de participação na DAS, onde até o último dia 30 de novembro foram realizados 678 exames apenas em 2018. Do total, 338 eram alunos, 147 servidores e 193 pessoas do público externo. O atendimento inclui pré-aconselhamento, uma espécie de roda de conversa em que são desenvolvidas ações temáticas sobre as ISTs, e posteriormente é feita a coleta de sangue para os testes de HIV1, HIV2, hepatite B e C e sífilis, cujo resultado está pronto em poucos minutos e é repassado individualmente pela psicóloga Angélica Gil. Os pacientes positivos para o HIV são direcionados para acompanhamento no SAE.

As iniciativas de prevenção, diagnóstico e tratamento acontecem em diversos setores da UFRN e por meio de parcerias com outras instituições. De acordo com Marise Reis, a universidade desenvolve desde 2009 projetos com departamentos relativos à melhoria de governança para políticas de HIV no RN e a projetos de educação permanente. Exemplo é o curso gratuito a distância sobre manejo do HIV na atenção básica, disponível no Avasus, que foi publicado há menos de dois meses e já possui mais de três mil acessos. Para acessar, clique aqui. http://bit.ly/2zRVUmh.

 

Texto: Marina Gadelha e Evandro Ferreira de ASCOM – Reitoria/UFRN

Foto: Cícero Oliveira

Fonte: UFRN

 

Notícia publicada originalmente em www.brasilcti.com.br/saude/de-costas-para-a-vida-o-estigma-social-do-paciente-com-hiv/

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