Repressão impune

Afinal, quem mente? Dilma ou os generais?

O Exército de Dilma, presidente, nega as torturas a que o Exército de Médici submeteu Dilma, guerrilheira. Reportagem de Luiz Cláudio Cunha.

acessibilidade:

O Exército, a Marinha e a Aeronáutica mobilizaram durante quatro meses seus oficiais-generais mais qualificados para desfechar o mais canhestro ataque militar dos últimos tempos no Brasil ? fuzilando o bom-senso, torpedeando a inteligência, bombardeando a memória nacional e condenando ao extermínio a verdade segregada nos campos de concentração erigidos pela mentira.

Para atender a um minucioso requerimento de 115 páginas enviado em 18 de fevereiro passado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), as Forças Armadas (FFAA)  reuniram suas tropas para produzir um monumento à insensatez e ao deboche: um palavroso, maçante, insolente, imprestável conjunto de 455 páginas de relatórios militares que não relatam, de sindicâncias  que não investigam, de perguntas não respondidas, de respostas não perguntadas e de conclusões nada conclusivas, camufladas em um cipoal de decretos, leis, portarias, ofícios e velhos recortes de jornais falecidos. Um histórico fiasco militar que passou em branco pela indolente imprensa brasileira, confinada a um registro burocrático, preguiçoso, sobre o sonso documento de resposta das FFAA. Jornais e revistas se mostraram incapazes ou temerosos de executar esta pauta obrigatória do bom jornalismo, que confronta a verdade com a mentira, a civilização com a barbárie. Enfim, uma página infeliz de nossa imprensa.

A maçaroca militar ignorada pelos jornalistas tem de tudo. Tudo para defender o indefensável, para sustentar o insustentável, para dizer o indizível na novilíngua dos generais: nunca houve tortura,  nunca aconteceu nenhuma grave violação aos direitos humanos nos quartéis nos 21 anos do regime militar imposto em 1964 pelas Forças Armadas que derrubaram o presidente João Goulart.  A fracassada sindicância das FFAA lembra, mais pela tragédia do que pela piada, a histórica charge do humorista e jornalista Millor Fernandes (1923-2012) na edição de maio de 1974 da revista Veja, que mostra um preso esquálido pendurado na parede de uma masmorra. Da fresta na porta da cela surge o comentário consolador do carcereiro: “Nada consta”. Por causa da piada, a ditadura sem graça dos generais tentou provar que era séria e endureceu ainda mais a censura sobre a revista então dirigida por Mino Carta.

Em resumo, é a pilhéria que repetem exatos 40 anos depois os militares brasileiros, diante das indagações da CNV sobre tortura e morte em seus quartéis: “Nada consta”.

Para expor esta cômica contradição em termos, que põe em dúvida até a existência da ditadura, os generais brasileiros recorreram a um arsenal de papel concentrado em 268 páginas do relatório da Marinha, 145 da Aeronáutica e 42 do Exército, um conjunto sem serventia que a Comissão Nacional da Verdade fuzilou sem dó nem piedade: “Deplorável, lamentável”, definiu com firmeza a CNV, em uma desalentada nota oficial assinada pelos seis comissários. Aturdida pela ‘completa incorreção’ da conclusão das FFAA ? apesar das claras evidências –  de que não houve tortura ou abusos nas instalações militares do País, a CNV lembrou aos generais distraídos que o Estado brasileiro reconhece desde 1995, por lei aprovada pelo Congresso, as condutas criminosas de militares e policiais durante a ditadura, “incorrendo inclusive no pagamento de indenizações por conta justamente de fatos agora surpreendentemente negados”.

Durante meses, os pesquisadores da CNV, auxiliados por especialistas da Universidade de São Paulo (USP), juntaram documentos, testemunhos e perícias para montar um consistente relatório que prova a ocorrência de graves violações aos direitos humanos nos sete endereços mais notórios da repressão coordenada pelos militares, situados no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco. São cinco quartéis do Exército, uma base da Marinha e outra da Aeronáutica, com os nomes, sobrenomes, datas, depoimentos e horrores sobre nove casos de mortes sob tortura e outros 17 presos políticos torturados.

Por recato, talvez, a CNV não incluiu entre eles o nome de uma guerrilheira que sobreviveu às torturas em um dos sete endereços que marcam a face mais terrível da repressão brasileira: a rua Tutoia, na capital paulista, sede da pioneira ‘Operação Bandeirante’ (OBAN), sucedida ali pelo sangrento DOI-CODI do II Exército, sob o comando do então major Carlos Alberto Brilhante Ustra. No início de 1970, naquele lugar listado pela CNV, padeceu durante 22 dias de suplício uma estudante mineira de 22 anos, integrante dos quadros de comando do grupo guerrilheiro Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares), onde era conhecida pelos codinomes de ‘Estela’ ou ‘Vanda’. Na ficha da polícia, ela era identificada como Dilma Vana Rousseff, ou Linhares, seu nome de casada. [LEIA BOX ABAIXO].

Passadas quatro décadas, a guerrilheira, presa e martirizada ‘Estela’ tornou-se a presidente da República Dilma Roussef. Foi investida assim, pela força da democracia, na condição de Comandante-Suprema das Forças Armadas. A torturada Dilma é, desde 2011, a chefe incontestável dos comandantes militares que hoje negam a tortura. Cria-se, assim, uma insuperável contradição ética e institucional entre a autoridade máxima do País e seus comandados de farda:

Quem está dizendo a verdade? A presidente da República ou os comandantes das FFAA?

Ou, dito de outra forma, quem está mentindo? Dilma ou os generais?

 

Al Capone e Aristóteles

Com a sutileza possível, a CNV evitou no seu relatório a pergunta direta que pressupunha a não-resposta militar de sempre: quem torturou?, quem matou?

Em vez disso, os comissários preferiram um atalho legal, buscando inspiração talvez no exemplo de investigação lateral que deu certo contra Al Capone (1899-1947), o maior gangster dos Estados Unidos que aos 30 anos, no auge da Lei Seca, faturava o equivalente hoje a US$ 1,3 bilhão anuais. Dono de um império criminoso que controlava o jogo, corridas de cavalo, clubes noturnos, bordéis, cervejarias e destilarias clandestinas, Capone sobreviveu impune à lei, até tropeçar num esperto agente do Tesouro americano, Eliott Ness, que vasculhou deslizes no Imposto de Renda que levaram o chefão da Máfia de Chicago aos tribunais e, dali, a uma pena de 11 anos de prisão. Como ‘Os Intocáveis’ de Ness, os comissários da CNV miraram a burocracia da ditadura, pedindo aos comandantes militares o “esclarecimento das circunstâncias administrativas que levaram ao desvirtuamento do fim público estabelecido para aquelas instalações militares”.

De forma elegante, a CNV admitia a generosa hipótese do ‘desvio de finalidade’ dos centros de tortura, abrindo a brecha legal para que os atuais comandantes, reconhecendo o ‘desvio’, mostrassem cabalmente que as Forças Armadas da democracia nada têm a ver ou a dever às Forças Armadas da ditadura. Uma chance preciosa para mostrar que as FFAA de 2014 de Dilma Rousseff não guardam nenhum elo com as FFAA de 1970 do general Garrastazú Médici. Até o recruta mais inexperiente entenderia a educada exceção que os comissários cravaram no ofício enviado ao ministro da Defesa, Celso Amorim: “Não se pode conceber que próprios públicos, afetados administrativamente às Forças Armadas, pudessem ter sido formalmente destinados à prática de atos tidos por ilegais, mesmo à luz da ordem jurídica vigente à época da ocorrência das graves violações de direitos humanos, objeto de investigação”, ressalvaram os comissários. Os generais, que deixaram de ser recrutas há meio século, preferiram se fazer de desentendidos ? e responderam, em um sincronizado exercício de ordem unida, que não houve desvio. Caíram assim na armadilha do silogismo de Aristóteles em que duas premissas verdadeiras levam a uma conclusão inescapável, terrível.

 

  • < i>Premissa maior:

A CNV prova que havia tortura e morte nos sete endereços militares apontados.

  • Premissa menor:

As FFAA respondem que não houve desvio de finalidade nestas instalações.

  • Conclusão:

Logo, tortura e morte eram a finalidade daqueles lugares das FFAA.

 

Foi a melancólica conclusão do jornalista Jânio de Freitas, na sua coluna na Folha de S.Paulo [‘O que as palavras dizem’, 22/junho/2014], assim expressa:

 

Se os chefes militares consideram que nessas práticas não houve desvio de finalidade, está implícita a concepção de que tortura, assassinatos e desaparecimentos são uma finalidade do Exército, da Marinha e da Aeronáutica em suas instalações. E salve-se quem puder.

 

A CNV relacionou, para a Aeronáutica, uma morte e quatro casos de tortura na sua mais famosa instalação, a base aérea do Galeão, ao lado do aeroporto Tom Jobim, no Rio de Janeiro, onde estão baseados os cinco esquadrões de transporte que operam os 23 Hércules C-130 da FAB. Resposta do tenente-brigadeiro do ar Juniti Saito, comandante da Aeronáutica, na conclusão da sindicância:

 

Encaminho a Vossa Excelência os autos da sindicância, informando não houve desvirtuamento do fim público estabelecido para a Base Aérea do Galeão, no período em questão, que pudesse configurar desvio de sua finalidade regulamentar.

 

A CNV apontou, para a Marinha, dois casos de torturas na base naval da Ilha das Flores, encravada na Baía da Guanabara. Resposta do almirante-de-esquadra Júlio Soares de Moura Neto, comandante da Marinha, na conclusão da sindicância:

 

Enfim, à luz da ordem jurídica vigente à época, não se pode falar em desvirtuamento do fim público estabelecido para a instalação em comento, justamente porque esse local foi criado com o fim específico de se constituir em estabelecimento prisional.

 

A CNV indicou, para o Exército, oito mortes e 11 casos de tortura em cinco quartéis diferentes, em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Belo Horizonte. Resposta do general Enzo Martins Peri, comandante do Exército, na conclusão da sindicância:

 

Uma vez que estes destacamentos eram órgãos oficialmente instituídos, foram formalmente instalados nos imóveis destinados ao seu funcionamento, não havendo qualquer registro de utilização dos mencionados imóveis para fins diferentes do que lhes tenha sido atribuído; portanto, não se verificou o alegado desvio de finalidade.

 

O chefe do Exército se referia sem desvios aos Destacamentos de Operações de Informações (DOI), o braço executor dos temidos DOI-CODI, a coordenação repressiva que sucedeu em 1970 a Operação Bandeirante (OBAN), criada no ano anterior em São Paulo com o financiamento de empresários e banqueiros, articulados pelo ministro da Fazenda do Governo Médici, Delfim Netto. A CNV relacionou os três DOI mais ativos da ditadura, instalados nos IV Exército (Recife), II (São Paulo) e I (Rio de Janeiro). Os próprios documentos secretos do Exército garimpados pela CNV provam, sem ironias, as finalidades sem desvio dos destacamentos de busca e apreensão montados pela repressão militar.

Os DOI paulista e carioca, os mais importantes do País, concentram nas duas maiores capitais brasileiras quase um quarto (23,8%) das vítimas oficiais da ditadura brasileira. Morreram ali, segundo documentação recolhida pela CNV, pelo menos 81 das 339 pessoas assassinadas sob tortura na ditadura ? 51 no DOI-CODI da rua Tutoia, 30 no DOI-CODI da rua Barão de Mesquita. Esperava-se que o Exército, bem mais poderoso e equipado do que a CNV, pudesse trazer dados ainda mais completos em sua sindicância, após disparar uma rajada de 10 diligências que se desdobraram em quatro ofícios para apurar os fatos.

A péssima pontaria da sindicância ? presidida pelo general de divisão José Luiz Dias Freitas e deglutida em seco pelo comandante do Exército e pelo Ministro da Defesa ?  pode ser comprovada já nos dois ofícios (DIEx números 01 e 02, de 28 de março passado) enviados aos Comandos do Leste e Sudeste (antigos I e II Exércitos), solicitando informações sobre os DOI da Tutoia e da Barão de Mesquita “no período compreendido entre 18 SET 1946 e 5 OUT 1988”. Não é preciso nenhum curso elementar da caserna para saber que o DOI-CODI foi criado apenas em 1970, tornando inúteis os 24 anos anteriores citados pelo general.

 

Um resumo infame

Apesar dos aparentes esforços, os militares parecem pouco diligentes em sua investigação. Na ‘Parte Expositiva’ de seu relatório (folha 159), o general sindicante chega a uma espantosa conclusão: “…não foram encontrados registros institucionais sobre a criação dos DOI”. Um fracasso monumental, já que o Exército alega ter realizado pesquisas em seis acervos oficiais: os do Arquivo Nacional no Rio e Brasília, a biblioteca do STM (Superior Tribunal Militar) e três centros de Pernambuco. Para sua inepta pesquisa foram feitas, diz o general, “pesquisas históricas em publicações, livros, jornais, artigos e mídia em geral”. Apesar de tanto esforço, a sindicância conseguiu não descobrir nada.

A prova suprema do enorme malogro da pesquisa do Exército, que beira a má-fé e zomba da inteligência do povo brasileiro, está expressa em uma citação mais enxuta que caberia em uma única mensagem de Twitter ? exatos 128 toques com espaço, apenas 17 palavas ? extraída com o bisturi da maldade pelo general sindicante na página de um só livro, talvez o mais importante sobre a repressão.

Dali, o Exército pescou duas míseras linhas, que nada esclarecem,  mas tudo sugerem sobre o flácido relatório da força terrestre:

 

No livro Brasil: Nunca Mais, em sua página 74, encontra-se o seguinte texto:

[…] Dotados de existência legal, comandados por um oficial do Exército, providos com dotações orçamentárias regulares, os DOI-CODis […].

 

Se o responsável pela pesquisa do Exército fosse um pouco menos desleixado, tentaria não tropeçar nas reticências salvadoras da frase acima e teria transcrito todo o parágrafo, que acrescenta oito linhas essenciais à verdade dos fatos. Eis o que diz, além da omissão medida pelas reticências, o trecho completo da página 74 do Brasil: Nunca Mais que a distraída sindicância militar esqueceu de reproduzir na íntegra de sua resposta à CNV:

 

[…] Dotados de existência legal, comandados por um oficial do Exército, providos com dotações orçamentárias regulares, os DOI-CODIs passaram a ocupar o primeiro posto na repressão política e também na lista das denúncias sobre violações aos Direitos Humanos. Mas tanto os DOPS (Departamento de Ordem Política e Social, de âmbito estadual) como as delegacias regionais do DPF (Departamento de Polícia Federal) prosseguiram atuando também em faixa própria, em todos os níveis de repressão: investigando, prendendo, interrogando e, conforme abundantes denúncias, torturando e matando. […]

 

A falha evidente não é só da transcrição incompleta, indecorosa. Faltou ao Exército a sensibilidade para dar a devida importância à sua fonte. O Brasil: Nunca Mais não é apenas um livro. É um marco de resgate histórico, um empreendimento corajoso que avança sobre a memória da repressão política no País. O Projeto Brasil: Nunca Mais vai muito além das parcas 17 palavras selecionadas com fino tato pelos ge
nerais para não melindrar os quartéis. Começou em plena ditadura, em 1979, quando um grupo de advogados começou a coletar informações e evidências de violações aos direitos humanos praticados pelo aparato repressivo do Estado. Realizaram esse trabalho justamente nos arquivos insuspeitos do Superior Tribunal Militar (STM), aproveitando o prazo de 24 horas que cada advogado tinha para a custódia provisória dos autos.

Em uma secreta operação de inteligência que faria inveja aos generais, o grupo se organizou sob a liderança em São Paulo dos respeitados comandantes de três credos distintos: o cardeal Paulo Evaristo Arns, o pastor presbiteriano Jaime Wright e o rabino Henry Sobel.  Com os recursos captados em Genebra junto ao Conselho Mundial de Igrejas – organização ecumênica de 120 países onde se espalham 500 milhões de fiéis de 340 igrejas diferentes -, o grupo alugou discretamente uma sala com três máquinas xerox em um prédio do centro de Brasília, próximo à sede do STM. Começou então o revezamento diário para retirar e vasculhar milhares de pastas de processos dos arquivos do STM. Durante mais de cinco anos, atravessando madrugadas, os advogados reproduziram pacientemente naquela sala discreta quase um milhão de páginas de 710 processos políticos que transitaram pela Justiça Militar entre 1964 e 1979. Todo o material foi fotocopiados em 543 rolos de microfilme. Era um tesouro: a história viva contada nas próprias cortes castrenses pelas vítimas da tortura e da repressão impostas pelo regime militar brasileiro ? sem desvios de finalidade ? para extrair as confissões sangradas de seus presos políticos.

Tudo isso rendeu um documento de 6.891 páginas de horrores distribuídos por 12 volumes do Projeto A, dos quais se fizeram 25 cópias para serem guardados em segurança no exterior, longe da censura do regime. O cardeal Arns, preocupado com a disseminação dessas informações para o grande público, pediu um Projeto B, um resumo da vasta pesquisa em um único livro. A edição, em espaço de texto que correspondia a 5% do original, foi realizada pelo jornalista Ricardo Kotscho e pelo frei Betto, autores do texto final de enxutas 312 páginas do livro Brasil: Nunca Mais, lançado em julho de 1985 ? quatro meses após a saída, pela porta dos fundos do Palácio do Planalto, do último general-presidente da ditadura, João Figueiredo. O livro, um sucesso editorial que já teve mais de 40 edições no Brasil, foi lançado nos Estados Unidos, um ano depois, sob o título de Torture in Brazil, pela editora Random House.

Toda essa épica aventura, de números superlativos e coragem inaudita, ganhou um infame resumo de meras 17 palavras na sindicância do Exército, que passa com cara de paisagem pelo técnico, certeiro relatório da CNV. Não há, na resposta militar, nenhuma alusão ou reação aos casos de tortura e morte alinhados pela Comissão da Verdade com minúcia de nomes, datas e locais. Se prestasse atenção pelo menos ao sumário do livro  Brasil: Nunca Mais, o Exército poderia ter notado a ênfase dos títulos, nada ficcionais, dos seis capítulos da obra prefaciada pelo cardeal Paulo Evaristo Arns:

repressao 02Se tivessem a audácia de consultar o Sumário A, com a íntegra das quase 7 mil páginas dos 12 volumes do Projeto Brasil: Nunca Mais, os generais descobririam que três volumes do Tomo V têm o mesmo título: ?As Torturas?. O volume 4 tem um tema ainda mais radical: ?Os Mortos?.

 

O Exército insubordinado

Mas, os generais nem precisariam perder tempo lendo o livro que desprezaram. Poderiam ter acessado o arquivo digital  do Brasil: Nunca Mais, no link http://bnmdigital.mpf.mp.br/, que desde 2013 dá acesso universal aos seus arquivos, em uma parceria entre o Ministério Público Federal e o Arquivo Público de São Paulo. Lá, curiosamente, os documentos não consultados pelo Exército identificam e registram os termos que o Exército não conseguiu localizar em seus registros. Basta teclar em qualquer computador com acesso à internet e o milagre se faz. Aparecem 638 indicações no acervo digital quando se busca o desaparecido ?destacamento? ? 134 entradas para a palavra ?Destacamento de Operações de Informações? e outras 504 para a dupla ?DOI-CODI?. A ilustre antecessora aparece 927 vezes quando se tecla ?Operação Bandeirante? (285 ocorrências) ou simplesmente OBAN (642 registros). Quando não há desvio de finalidade em uma pesquisa honesta, ela revela muita coisa, ou quase tudo.

O Exército deveria ter seguido a metodologia séria da CNV, que já na apresentação de seu relatório preliminar identifica as fontes principais de sua pesquisa: são documentos produzidos pelo próprio Estado brasileiro que o Exército, insubordinado, parece não levar a sério. A CNV se valeu dos processos deferidos pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e, para nomear os presos políticos mortos por torturas aplicadas por agentes do Estado em instalações militares, foram pesquisados processos aprovados pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Ali mesmo, onde dá expediente a Comandante-Suprema das Forças Armadas, que na juventude sentiu  na carne as torturas do Exército, infelizmente não registradas pelo Exército .

Não é novidade, aliás, o desprezo que as Forças Armadas da democracia dedicam aos trabalhos que visam apurar os abusos praticados pelas Forças Armadas da ditadura, que durante duas décadas montou um aparato repressivo estimado em 24 mil agentes que prenderam por razões políticas cerca de 50 mil brasileiros e torturaram algo em torno de 20 mil pessoas ? quase três a cada dia do regime militar. Os militares já tinham reagido mal, em agosto de 2007, quando o Palácio do Planalto lançou o livro Direito à Memória e à Verdade, um fundamental trabalho de 11 anos da Secretaria Especial de Direitos Humanos, iniciado ainda no Governo Fernado Henrique Cardoso (secretário José Gregori) e concluído no Governo Lula (secretário Paulo Vannuchi), reconhecendo pela primeira vez a responsabilidade do Estado brasileiro na violência oficial, com a lista de 339 mortos e desaparecidos pela repressão política.

Acintosamente, nenhum chefe militar compareceu à cerimônia solene presidida no Planalto pelo comandante-em-chefe das Forças Armadas, o então presidente Lula. Eram os os mesmos chefes militares ? o general Peri, o brigadeiro Saito e o almirante Moura Neto ? que Lula deixou como legado a Dilma e que permanecem em seus postos desde 2007, há mais tempo do que um mandato presidencial. São os mesmo chefes militares que, em maio de 2012, se mantiveram acintosamente estáticos, mãos no colo, enquanto a plateia no salão principal do Palácio do Planalto aplaudia com emoção o ato da presidente Dilma Rousseff que instalava oficialmente a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de investigar sem desvios os abusos praticados, entre outros, pelas Forças Armadas. [Veja revista Brasileiros, edição nº 78, de janeiro de 2014]

O Direito à Memória e à Verdade, um indesmentido livro-relatório de 500 páginas ? preciso pelos fatos e comovente pelos horrores que descreve ?, é acintosamente ignorado pelo Exército, que não o cita uma única vez em sua sindicância. Mas, como outros, já está disponível na internet, no portal do Governo Federal (http://portal.mj.gov.br/sedh/biblioteca/livro_direito_memoria_verdade/), com todos os dados que o Exército não conseguiu encontrar em seus registros. O DOI, por
exemplo, aparece em 683 citações quando é teclado por militares ou paisanos. A dupla DOI-CODI surge 283 vezes no arquivo digital. A OBAN ou Operação Bandeirante, outras 46 vezes. Palavras inequívocas como ‘tortura’ (523 citações), ‘torturador’ (47) e ‘pau-de-arara’ (21) aparecem na pesquisa digital sempre associadas aos DOI e às instalações militares que, sem desvio de função, eram administradas e operadas pelas Forças Armadas.

Os dados que o Exército estranhamente não conseguiu descobrir em seus próprios arquivos ou não procurou nos acervos abertos do próprio Governo foram  encontrados pelo mesmo Exército em duas ‘obras literárias’, na maliciosa expressão pinçada pela sindicância militar para definir ‘literário’. Segundo o paisano Dicionário Houaiss, o adjetivo traduz, no seu sentido figurado, “uma imagem artificial da realidade”.

 

Miopia e amnésia

A primeira fonte ‘literária’ é um livro insuspeito, Rompendo o Silêncio, do coronel reformado de Artilharia Carlos Alberto Brilhante Ustra, por acaso o criador e primeiro comandante do DOI da Tutoia, o endereço mais letal do Exército e que, por conclusão de seus comandantes, nunca teve o “alegado desvio de finalidade”. A segunda é A Ditadura Escancarada, do jornalista Elio Gaspari, que sustenta boa parte de sua autópsia em quatro volumes da ditadura nos alentados arquivos do general Golbery do Couto e Silva, cérebro da conspiração que levou à derrubada de João Goulart. Só ali o desatento Exército brasileiro conseguiu afinal garimpar a secreta Diretriz Presidencial de Segurança Interna que o general Garrastazú Médici inventou, em março de 1970, para unificar a repressão sob o comando da força terrestre. Dali nasceriam seis meses depois, na primeira quinzena de setembro de 1970, os DOI, “todos sob a coordenação do próprio Comandante de cada Exército”, como registra o sagaz coronel Brilhante Ustra. Alguém precisa apresentar os arquivos do mais notório comandante do DOI da Tutoia aos atuais chefes militares, que aparentemente não estão lendo as coisas devidas.

O Exército justifica sua estrábica pontaria alegando que não existem nos seus arquivos os documentos das décadas de 1960 e 1970 classificados como sigilosos. Mais do que miopia, o caso aqui envolve amnésia coletiva. Nenhum oficial com estrelas no ombro parece ter lembrado de recorrer a um acervo precioso, e até hoje intocado: os arquivos do Centro de Informações do Exército (CIE), o serviço secreto da força, o braço operacional que está na linha de frente da repressão à esquerda armada. Os nomes mais afamados dos DOI, como os coronéis Brilhante Ustra (II Exército) e Paulo Malhães (I Exército) eram egressos do CIE. Os registros do Centro de Informações certamente dariam o conteúdo que falta à sindicância do Exército porque, afinal de contas, o CIE mais do que fazia.

O CIE, por dever de ofício, sabia.

O general sindicante, que diz pouco saber, confessa que não conseguiram encontrar nenhum registro sobre a destinação administrativa e o uso dos imóveis destinado ao DOI no Rio e no Recife. E dá a razão: “Tal fato se deve ao caráter sigiloso dado aos documentos que tratavam sobre Segurança Interna à época. Salienta-se que essa documentação foi legalmente destruída, bem como os eventuais Termos de Destruição, tudo devidamente apurado por meio do Procedimento Investigatório”.

Traduzindo o militarês: os documentos que poderiam detalhar o uso de instalações transformadas em centros de tortura e morte foram despedaçados e os documentos que permitiram esse abuso de lesa-memória também foram destroçados. Simples assim.

Não são apontados os nomes dos responsáveis por essa dupla destruição e as razões que privam o País, agora, de conhecer detalhes escabrosos de seu passado recente. Do sangrento DOI de São Paulo, o único documento que sobreviveu a este apagão burocrático não é militar, é civil. Conforme a sindicância, sobrou apenas o Memorial Descritivo da prefeitura de Paulo Maluf, de agosto de 1971, formalizando a concessão de uso ao então Ministério do Exército, ‘a título precário’, do imóvel que tornaria notória a esquina das ruas Tutóia e Tomás Carvalhal, no bairro paulistano de Vila Mariana.

Derrotado em seu hercúleo esforço de busca e apreensão de documentos úteis que pudessem atender à CNV, o Exército chega a esta opaca conclusão:

 

Portanto, infere-se que, do ponto de vista administrativo, os DOI constituíam órgãos de segurança interna, criados e instalados legalmente, de modo a permitir-lhes o exercício de suas atividades, conforme previsto na Diretriz Presidencial de Segurança Interna. Nesse sentido, no acervo pesquisado não foram encontrados registros formais que permitam comprovar ou mesmo caracterizar o uso de suas instalações para fins diferentes dos que lhes tenham sido prescritos.

Para responder à intrigante questão sobre a alocação de pessoal para estas “instalações afetadas às Forças Armadas e utilizadas para perpetração de graves violações de direitos humanos”, conforme o título do relatório preliminar da CNV, o general dá uma resposta intrigante. Diz o Exército:

 

O termo Destacamento, adotado pelo Exército Brasileiro, caracteriza parte de uma força, separada de sua organização principal, destinada a cumprir missão em outra região, com efetivo normalmente reduzido e organização variável, dependendo da situação. Coerente com tal definição, os DOI não possuíam constituição fixa.

Em decorrência disso, os militares das Forças Armadas eram passados à disposição para desempenhar atividades temporárias, os quais eram oriundos de diversas Organizações Militares (OM) do País; tal qual ocorria com policiais civis, policiais militares e integrantes do Departamento de Polícia Federal. Destaca-se que o ato de passagem à disposição de militar para o Destacamento, visando o cumprimento de missão ou atividade temporária, prescindia de registro.

 

Os ‘doutores’ e suas ferramentas

A inusitada confissão do Exército à CNV sugere uma bizarra liberalidade do Alto Comando da época sobre a linha de frente da repressão. Dá a imagem assustadora de uma tortuosa cadeia de comando que estimulava ações encobertas e ilegais e garantia, no futuro, o anonimato e a clandestinidade, premissas básicas da impunidade que ainda hoje protege os agentes da ditadura. É no mínimo estranha a noção de uma corporação fundada na lei, na ordem e na hierarquia, como é o Exército, convivendo com um Destacamento de segurança interna caracterizado como ?parte de uma força separada de sua organização principal? e sem limitação de fronteiras.

Pior ainda. Pela sindicância do Exército, o DOI era ?parte de uma força … destinada a cumprir missão em outra região com efetivo normalmente reduzido e organização variável, dependendo da situação? (sic). Na prática, essa elástica e imprecisa definição confirma os depoimentos de ex-presos e sobreviventes da ditadura sobre o braço longo e ilimitado do DOI-CODI, um aparato nada estático e muito errático, de ?atividade temporária?, que juntava militares das três Forças Armadas, policiais civis, homens da Polícia Militar e agentes da Polícia Federal agindo  de forma coordenada e combatendo onde fosse necessária a repressão ? “destinado a cumprir missão em outra região?.

Entende-se, daí, que comandos do DOI da rua Tutóia, baseado no II Exército de São Paulo,  pudessem agir sem qualquer restrição geográfica ? por exemplo, no Rio de Janeiro, onde está baseado o DOI do I Exército, instalado na rua Barão de Mesquita. E vice-versa. Apesar de atuar na p
rimeira trincheira de combate à luta armada, o efetivo de ferro e fogo alistado pelo DOI do Exército em vários quartéis e organismos de segurança do país não tinha cara, nem nome, nem posto, nem identidade, já que estranhamente essa tropa tão lancinante e variada ?prescindia de registro? (sic) .

A imprevista derrapada do general sindicante, nessa expressão de renúncia explícita à identidade,  reconhece  oficialmente que o Exército engajado na repressão tinha o anonimato como opção preferencial para sua tropa. Era uma conduta esquiva reforçada nos torturadores pelo disfarce dos codinomes (o coronel Brilhante Ustra era o Dr. Tibiriçá no DOI do II Exército em São Paulo, o coronel Paulo Malhães era o Dr. Pablo no DOI do I Exército no Rio de Janeiro) ou camuflada pelo uso sistemático do capuz nos torturados, nos momentos mais terríveis do ?pau-de-arara?, da ?cadeira-do-dragão?, do choque elétrico da ‘pimentinha’, da palmatória, das sessões de afogamento nas masmorras.

torturas 01

Os encobertos agentes do DOI, que ali atuavam sem o ?alegado desvio de finalidade?, na palavra oficial do Exército, acabariam contaminando pelo menos uma instância da própria Justiça Militar com sua obsessão pelo encoberto, pelo oculto, pelo escondido.  Aconteceu em novembro de 1970, na 1ª Auditoria Militar do Rio de Janeiro, justamente com uma vítima do DOI paulistano, o centro de torturas da rua Tutoia. Uma guerrilheira do grupo VAR-Palmares, ?Estela?, codinome de Dilma Rousseff, então com 22 anos, aparece em uma foto no momento em que era ouvida pelos juízes militares.

O flagrante em preto e branco resgatado pelo jornalista mineiro Ricardo Amaral para seu livro, A vida quer coragem,  é a imagem mais emblemática de uma época cinzenta conhecida pelo chumbo quente da tortura, que a literária sindicância do Exército não registra.  O que chama atenção na foto não é a jovem guerrilheira em primeiro plano, uma Dilma quase menina, já sem as marcas dos 22 dias de tortura sofrida dez meses antes no DOI sem desvios que o Exército não registra em seus arquivos. O que avulta na foto são os dois personagens em segundo plano,  juízes fardados da Corte militar, cobrindo o rosto para não serem identificados.

Na falta de um capuz, os magistrados,  bem mais velhos do que a jovem à sua frente, usam as mãos para ocultar o rosto diante do fotógrafo. Os dois  julgadores, em uma impiedosa inversão de papéis, escancaram  ali a dolorida consciência de que podem até condenar, mas  não serão absolvidos pelo juízo inapelável da História. Pela desonra da imagem, eles é que parecem ser os réus, apequenados diante de uma julgadora implacável. Pelo inusitado da cena, os dois juízes que se escondem se assemelham aos anônimos beleguins que atuavam nos DOI, como eles prescindindo de registro ? principalmente fotográfico.

O homem à esquerda é um capitão, o da direita exibe nos ombros os galões de major. Fora da foto, quase em frente à jovem, senta-se o presidente do tribunal, um coronel. Na outra ponta da bancada acomodam-se mais dois juízes militares, os vogais. O fotógrafo anônimo, por alguma razão, estava ali autorizado pelo coronel para fazer o registro da audiência e os dois juízes flagrados por sua lente sabiam do perigo iminente da foto. Por isso, trataram de esconder suas identidades, na esperança de que essa tentativa de fuga à responsabilidade lhes assegurasse o pleno anonimato e a eterna impunidade. Livraram  a cara e deixaram seus nomes na clandestinidade, como era hábito e licença entre os agentes do DOI.

Assim, contudo, delataram na cena muda das mãos a verdadeira face do regime que representavam naquele tribunal de exceção armado por militares para julgar civis, marca distinta de todo regime autoritário que não se desvia de suas finalidades. Não atentavam para um profundo pensamento marxista, que ensina: “Justiça militar é para a justiça o que música militar é para a música”, pregava Groucho Marx (1890-1977), perigoso comediante estadunidense, líder da ativa organização anarquista conhecida no cinema como ‘Irmãos Marx’.

 

O inseparável DOI-CODI

A resposta do Exército à CNV é contraditória, quando afirma que o DOI é uma ?força separada de sua organização principal?. A Diretriz Presidencial de Segurança Interna do general Médici, de 1970, nega esta separação, como enfatiza o próprio comandante do DOI da Tutoia, coronel Brilhante Ustra, curiosamente citado na sindicância militar com este trecho incisivo, extraído da página 125 de Rompendo o Silêncio:

 

De acordo com essa Diretriz, em cada Comando de Exército, que hoje se denomina Comando Militar de Área, existiria:

– um Conselho de Defesa Interna (CONDI);

– um Centro de Operações de Defesa Interna (CODI);

– um Destacamento de Operações de Informações (DOI); todos sob a coordenação do próprio Comandante de cada Exército.

Este Grande Comando Militar, quando no desempenho de missões de Defesa Interna, denomina-se Comandante de Zona de Defesa Interna (ZDI).

 

É o mesmo trecho que o general sindicante do Exército cita e  extrai do Tomo 1, página 136, de uma obra literalmente de fôlego, com quase seis mil páginas  e 10 kg de peso: a Historia Oral do Exército. 1964 ? 31 de março: o movimento revolucionário e a sua história, organizada pelo general de brigada Aricildes de Moraes Motta. A edição de 2004 da História Oral, publicada em 15 volumes, continua sendo publicada pela insuspeita Biblioteca do Exército, a Bibliex, que tem o seu conselho editorial presidido justamente pelo general Aricildes.

A confortável versão que define o DOI como ?uma força separada de sua organização principal?, como sustenta o relatório do Exército de 2014, não expressa o que pensava o Exército de 1975, no auge da repressão militar. No DOI-CODI mais funesto do País, o do II Exército na rua Tutoia, duas mortes de repercussão internacional em menos de três meses provaram que, de acordo com a Diretriz Presidencial de Segurança Interna ordenada em 1970 pelo general Médici, os DOI-CODI  estavam “sob a coordenação do próprio Comandante de cada Exército”, como lembra até o coronel Brilhante Ustra.

Às 8h da manhã de 25 de outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura de SP, ingressou no prédio da Tutoia, convocado no dia anterior para prestar depoimento. Sete horas e muitas torturas depois apareceu morto na cela do DOI, enforcado com o cinto do macacão que seus carcereiros esqueceram de retirar, para inflar a tese de ‘suicídio’.  Em março do ano passado, a mentira de 37 anos foi desfeita pela Justiça que, a pedido da Comissão Nacional da Verdade, mandou refazer o atestado de óbito de Herzog, agora reconhecido como morto “em decorrência de lesões e maus tratos sofridos durante interrogatório em dependências do II Exército (DOI-CODI)”.

Em um primeiro momento,  o general Ednardo D’Ávila Mello, comandante do II Exército, sobreviveu ao ‘suicídio’ de Herzog. Menos de três meses depois, outro ‘suicídio’ abreviou a carreira do general. Ao meio-dia de sexta-feira, 16 de janeiro de 1976, o metalúrgico Manoel Fiel Filho foi preso na fábrica e levado por dois agentes do DOI-CODI. Lá aguentou longas 25 horas. Uma nota oficial do II Exército anunciou que, às 13h de sábado, 17 de janeiro, o operário era a mais nova vítima do surto de ‘suicídio’ da ditadura. Dessa vez, na falta de um cinto, tinha se enforcado com as meias, dizia
a nota, embora calçasse chinelos sem meias na hora da prisão. Na contagem do jornalista Elio Gaspari, que o general sindicante não lembrou de citar, “Manoel Fiel Filho fora o 39º suicida do regime, o 19º a se enforcar”. Era o mesmo DOI-CODI que, afirma o Exército hoje, não tinha desvios de finalidade.

Apesar de ser uma “força separada de sua organização principal”, conforme a inovadora definição lava-rápido do Exército, o DOI e sua peste de ‘suicídios’ geraram na época um tremendo desarranjo entre os generais da “organização principal”. Preso na sexta 16, o operário morreu no sábado 17. Na segunda 19, sem qualquer consulta ao general Sylvio Frota (ministro do Exército), o general Ednardo foi demitido do comando de São Paulo por ato sumário do general Ernesto Geisel, o chefe supremo de todos eles.

No mesmo dia da demissão, Frota convocou a Brasília os 14 generais de quatro estrelas que integravam o Alto Comando para uma tensa reunião de duas horas realizada na quinta, 22 de janeiro. Os comandantes de Porto Alegre (Oscar Luís da Silva, do III Exército) e do Recife (Moacyr Barcellos Potyguara, do IV Exército), bufaram contra a demissão de Ednardo. Até o chefe do Estado-Maior do Exército (Fritz Azevedo Manso), o número 2 da força, assoprava no balão da rebeldia. O comandante do Rio (Reynaldo Mello de Almeida, do I Exército), com o apoio de outros quatro generais, botou água na fervura, lembrando que o Alto Comando não tinha competência para discutir a decisão sumária de Geisel.

Três dias depois, o ministro da Justiça, Armando Falcão mandou um relatório secreto a Geisel, com base em conversa com o general Reynaldo. O relato de Falcão mostrava que o general Sylvio Frota estava agitado demais para um ‘suicídio’ de rotina em uma ‘força separada de sua organização principal’. Diagnóstico de Falcão: “O Ministro [Frota] está nervoso. Sabe-se que teve um ligeiro desmaio em Brasília. Não consegue dormir direito”.  O documento em duas páginas, com manuscrito de Geisel  ?”Do Falcão. Conversa com Reynaldo” ? , acabou exilado no baú de preciosidades do general Golbery do Couto e Silva.

Uma semana depois da reunião do Alto Comando, o próprio Geisel, que não via o DOI-CODI como uma força separada do Exército, resolveu separar outro comandante da força:  exonerou o general de brigada Confúcio Danton de Paula Avelino da chefia do Centro de Informações do Exército (CIE), o serviço secreto da corporação.     

Perdigão, falecido em 1997, é um nome mitológico na repressão brasileira. Circulava pelo DOI da Barão de Mesquita, no Rio, e na ‘Casa da Morte’ de Petrópolis sob o codinome de ‘Dr. Nagib’. Frequenta a ‘obra literária’ do Brasil: Nunca Mais como notório torturador. Em 30 de abril de 1981, quando aconteceu o frustrado atentado do Riocentro, estava lotado justamente na Agência Rio do SNI. O general Newton Cruz, chefe da Agência Central do órgão no Governo Figueiredo, admitiu que Perdigão lhe falou do atentado horas antes que ele ocorresse. A bomba planejada pelo SNI e armada pelo DOI-CODI carioca explodiu minutos antes ainda no estacionamento, dentro do Puma onde estavam dois agentes do DOI do I Exército. Matou o sargento do DOI Guilherme Pereira Rosário, que a levava no colo, e feriu gravemente o motorista ao seu lado, o capitão do DOI Wilson Machado.

Em 2011, 30 anos após o atentado, o repórter Chico Otávio, do jornal O Globo, localizou a pequena agenda telefônica que o sargento Rosário – um especialista em explosivos do DOI – levava no bolso de trás da calça na hora da explosão e que o Exército, desatento, não registrou na sua resposta cheia de desvios à CNV.

Lá estavam os nomes reais, não codinomes, de 107 integrantes do ‘Grupo Secreto’, organização paramilitar de direita que desencadeou uma série de atos terroristas na tentativa de deter a abertura política. O bando reunia desde oficiais graduados a soldados, de delegados a detetives, com os contatos do sargento do DOI em setores estratégicos, como o Estado-Maior da PM e a chefia de gabinete da Secretaria de Segurança do Rio, além de amigos ligados a setores operacionais, como fábrica de armamento e cadastros de trânsito. Na letra P da agenda, depois de Prieto, Pedroso, Paulinho, Pena, Paulo e Pedro Rosa, perfilava-se o nome dele, o ubíquo Perdigão.

O Exército perdeu a oportunidade, agora, de esclarecer à CNV e ao Brasil se a agenda e o ‘Grupo Secreto’ do explosivo sargento do DOI caracterizam ou não um ‘desvio de finalidade’ do DOI. O desastrado atentado do Riocentro, que o Exército nunca assumiu nem como desvio de conduta,  só não se transformou em uma tragédia nacional por conta da incompetência dos terroristas. No final de abril passado, a Comissão Nacional da Verdade apresentou ao País outro documento que o Exército, absorto, não deve ter lido. É a pesquisa Riocentro: Terrorismo de Estado contra a população brasileira, também disponível no site da CNV. Lá, com todas as letras que evitam desvios, os comissários concluem que o atentado foi “um minucioso e planejado trabalho de equipe realizado por militares do I Exército e do Serviço Nacional de Informações (SNI) e o que o primeiro inquérito policial militar (IPM) sobre o caso, aberto em 1981, foi manipulado para posicionar os autores diretos da explosão apenas como vítimas”. Para o coordenador da CNV, Pedro Dallari, o caso Riocentro foi o último de uma série de 40 atentados ocorridos entre janeiro de 1980 e abril de 1981, “que visavam dificultar a abertura política iniciada em 1979 e dar uma sobrevida ao regime militar”.

O almirante Júlio de Sá Bierrenbach, que depôs na CNV sobre o caso, era ministro do Superior Tribunal Militar (STM) quando o inquérito policial militar sobre o Riocentro chegou ao tribunal para ser julgado. O caso já veio arquivado da auditoria militar onde tramitou e o militar da Marinha foi o único a votar contra o arquivamento do processo e pedir que o capitão Machado continuasse como investigado e a apuração, retomada.

Para Bierrenbach, “o IPM (do Riocentro) foi uma vergonha e isso é facilmente demonstrável”. Ele afirmou considerar absurdas a absolvição e a promoção até coronel que Wilson Machado, co-autor do atentado, recebeu na carreira. “Vítimas, uma ova! Eles fizeram o atentado. O capitão vai ao Riocentro com uma bomba, a bomba explode. O colega morre. E ele é promovido. Isso é um absurdo!”, torpedeou o almirante. Ao contrário do que seria previsível num  país sério, a explosão não implodiu a carreira do militar sobrevivente. O capitão terrorista do Riocentro, apesar de seu estrondoso fracasso, é hoje general reformado do Exército.

Segundo o relatório da CNV, apresentado pelo gerente de projetos Daniel Lerner, cerca de 20 mil pessoas estavam no Riocentro na noite de 30 de abril de 1981 para assistir um show organizado por Chico Buarque de Hollanda para o Dia do Trabalhador. O grupo que planejou o atentado conseguiu até que a Polícia Militar recebesse uma ordem para não realizar policiamento dentro do espaço onde ocorria o show.

 

Aa morte da MPB

Os dois militares terroristas do DOI-CODI ? o sargento morto e o capitão socorrido com as vísceras de fora ? não foram as únicas baixas da ditadura. A evisceração do regime foi ainda mais notável nos meses seguinte. O general João Figueiredo infartou na presidência, o general Golbery do Couto e Silva demitiu-se da Casa Civil, o general Octávio Aguiar de Medeiros (chefe do SNI) implodiu como virtual candidato a uma sexta presidência fardada e o regime militar definhou até morrer, sem choro nem vela, no remanso do Colégio Eleitoral que sagrou Tancredo Neves como primeiro presidente civil desde 1964.

Naquela noite, data do maior ‘acid
ente de trabalho’ da escalada terrorista do DOI-CODI do Exército, o número de mortos e feridos do atentado poderia ser muito maior. Além da bomba que explodiu no estacionamento, outro artefato explodiu na casa de força do Riocentro. O objetivo era o corte de energia que impedisse o show e causasse tumulto, mas o artefato não causou o efeito desejado. Depoimentos apontam que duas bombas sob o palco foram retiradas do local antes de serem detonadas e testemunhas afirmam que havia outras duas bombas no Puma do DOI-CODI, que foram retiradas da cena do crime.

O tumulto previsível de explosões coordenadas em recinto fechado, com as portas de saída criminosamente trancadas com cadeados, certamente provocaria uma tragédia amplificada na platéia de 20 mil pessoas. E as bombas sob o palco, detonadas no momento esperado do encerramento, quando todos os artistas se reúnem para a apoteose final do show, produziriam uma hecatombe na Música Popular Brasileira. Junto com Chico Buarque, lá estavam 30 dos mais famosos e carismáticos astros da MPB. Entre eles, Paulinho da Viola, Luiz Gonzaga e o filho Gonzaguinha, Cauby Peixoto, Clara Nunes, Gal Costa, Ivan Lins, João Bosco, Alceu Valença, Elba Ramalho, Djavan, Fagner, Moraes Moreira, Ângela Ro-Ro, Simone, Zizi Possi, MPB-4 e Beth Carvalho.

?A ditadura militar fez isso. Ia matar todos nós, artistas?, lembrou Beth Carvalho.

Traduzindo: a missão do DOI-CODI naquela noite também mataria a MPB. O Exército infelizmente não esclarece, na resposta à CNV, se o eventual sucesso de seu braço terrorista naquele atentado meticulosamente planejado poderia ser enquadrado como uma finalidade sem desvios do DOI-CODI.

O Exército que não consegue ver a essência do DOI-CODI, em sua precária sindicância, deveria ter o método de trabalho e a seriedade de gente como o pesquisador Pedro Estevam da Rocha Pomar, que em 2000 descobriu uma preciosidade no acervo do DOPS paulista, hoje depositado no Arquivo Público do Estado de São Paulo. É o RPI 06/75, o Relatório Periódico de Informações do II Exército, reconhecendo a morte de 50 presos no DOI-CODI da rua Tutoia, de 1969 até fevereiro de 1975. O registro, classificado como ‘confidencial’, foi produzido dias depois, em março de 1975, e as 23 páginas do RPI são rubricadas pelo ‘Gen d’Ávila’. É o nome do comandante do II Exército na época, o general Ednardo d’Ávila Mello, que acabaria exonerado um ano depois por Geisel, após o ‘suicídio’ de Manoel Fiel Filho no DOI-CODI.

O RPI 06/75 rubricado pelo general Ednardo reconhece 47 mortos entre os “presos pelo DOI” e outros três mortos “recebidos de outros órgãos”. O repórter Mário Magalhães, da Folha de S.Paulo, que revelou a descoberta de Pomar há 14 anos, fez uma arguta observação sobre o documento: “Os 47 mortos (não há descrição de nomes e das condições das mortes) são um subitem do item ‘presos pelo DOI’, e não um item à parte. Pela lógica, foram presos e, depois, mortos. […] Os três mortos entre os ‘recebidos de outros órgãos’ reforçam a impressão de que morreram na rua Tutóia, a não ser que o DOI-CODI recebesse cadáveres”.

Apesar dessas provas documentais, o criador e comandante do DOI da Tutoia em seus primeiro quatro anos, coronel Brilhante Ustra, insiste na tese da finalidade sem desvios abraçada pelo Comandante do Exército e pelo Ministério da Defesa: ?No meu comando, meu senhor doutor Fonteles, ninguém foi morto lá dentro do DOI. Todos foram mortos em combate. Os que o senhor diz que foram mortos dentro do DOI, não é verdade. Eles foram mortos pelo DOI em combate, na rua. Dentro do DOI, nenhum!”, gritou Ustra irritado, socando a mesa, diante da pergunta do ex-procurador-geral da República e então comissário da CNV, Cláudio Fonteles, na audiência pública realizada em maio de 2013 em Brasília.

Um bom exemplo da disparidade entre a Comissão Nacional da Verdade e as Forças Armadas, na busca da verdade e dos fatos, está no método utilizado por uns e outros para cumprir sua missão legal e ética diante da Nação brasileira. A CNV atua de forma aberta, transparente, direta, sem desvios. As FFAA, não. O pedido formal de informações sobre a ‘ocorrência de graves violações de direitos humanos em instalações administrativamente afetadas às Forças Armadas’ foi apresentado pela CNV em sessão aberta, em 18 de fevereiro passado, com a distribuição do texto do relatório preliminar, detalhando fatos, nomes e testemunhos de 11 ocorrências de tortura e de 8 casos de morte, incluindo fotos e croquis dos quarteis e bases militares utilizados para o ‘alegado desvio de finalidade’.

 

A pátria de coturno

A CNV fez mais, e fez melhor, ao contrário das FFAA. Apresentou sua demanda em uma entrevista coletiva de imprensa de 72 minutos, transmitida pela internet e disponível no site da comissão. Lá, a certa altura, o comissário e ex-ministro da Justiça de FHC José Carlos Dias ensinou: “Temos o direito de exigir informações. É obrigação das autoridades buscar a verdade”. O comissário Paulo Sérgio Pinheiro enfatizou o absurdo da situação criada pela ditadura: “Havia um arquipélago de centros de tortura em instalações do Estado brasileiro, em todo o território nacional, à custa do contribuinte. Era uma violação sistemática, contínua, rotineira. Imaginem a cena! Enquanto havia gente numa sala batendo à maquina, fazendo seu trabalho burocrático, na sala ao lado tinha um pessoal usando o pau-de-arara nos presos”.

E como reagiram as FFAA? Mal, muito mal. Gastaram quatro meses para produzir sua oca sindicância de indulgência plenária, que nega qualquer abuso com o requinte de não responder a nenhum dos casos concretos laboriosamente levantados pela CNV. E algum espírito malicioso da equipe do ministro da Defesa deve ter escolhido a dedo a data de entrega do material, em junho passado. Não optou nem pela segunda-feira 16, nem pela quarta 18. O ministro Celso Amorim preferiu exatamente a estratégica tarde de terça-feira, 17 de junho, para mandar um emissário entregar a resposta dos chefes militares. Para quem não lembra, era a tarde em que 200 milhões de brasileiros, todos juntos, formavam aquela corrente pra frente de olho grudado na TV para assistir ao empate em zero do Brasil contra o México em Fortaleza, o segundo jogo da seleção no Grupo A da Copa do Mundo. A ardilosa pátria de coturno esperou que a distraída mãe gentil, a pátria de chuteiras se dedicasse à bola redonda da seleção torcida verde-amarela, sem desviar sua atenção para o quadrado pacote de documentos remetido à CNV. Uma tática que, aparentemente, funcionou. Mais fascinada pelo goleiro mexicano Ochoa que travou o ataque de Neymar & cia, a imprensa canarinho de olho fixo no jogo em Fortaleza não deu pelota para a bola fora do esquadrão de Amorim em Brasília.

E ninguém deu cartão vermelho para as botinadas do time brucutu das FFAA na equipe de verdade da CNV.

Na entrevista de quatro meses antes, em fevereiro, Paulo Sérgio Pinheiro tinha dito que as sete instalações militares escolhidas pontualmente pela CNV eram “uma pequena amostra’ da estrutura de Estado montada para torturar e matar. Não era uma licença poética. Dois meses depois, a CNV foi além dos sete locais malditos. Apresentou a lista e o endereço de outras 17 ‘casas da morte’, centros clandestinos de tortura espalhados por casas, chácaras e sítios particulares cedidos à brutalidade sem constrangimentos da repressão. É um criterioso trabalho de pesquisa da CNV coordenado pela historiadora Heloísa Starling, da Universidade Federal de Minas Gerais e, como sempre, solenemente ignorado pelo generalato. A CNV mapeou a cadeia de comando de sete desses centros, mostrando como operavam sob ordens de altas patentes do Exército e da Marinha. Foram localizados, com nomes e fotos, os locais de quatro Estados:
três em São Paulo (fazenda 31 de Março, Itapevi e Ipiranga), um em Belo Horizonte (Casa do Renascença), um no Pará (a ‘Casa Azul’, o QG da repressão à guerrilha do Araguaia) e dois no Rio (‘Casa da Morte’, de Petrópolis, e a casa de São Conrado, bairro nobre da Zona Sul do Rio). Os outros centros, deliberadamente ocultos até da legislação de exceção e agora sob investigação da CNV, se espalham por oito Estados.

As duas instalações clandestinas mais letais da lista eram operadas justamente pelo Centro de Informações do Exército (CIE), o serviço secreto que pairava acima dos DOI-CODI, sobre os quais o Exército diz não ter nenhum registro.

A ‘Casa da Morte’ – um simpático sobrado de dois andares em estilo alemão no bairro Caxambu, no pé da serra em Petrópolis, Rio de Janeiro – foi emprestada ao Exército pelo dono, o empresário Mário Lodders. Entre 1971 e 1974, com os desvios imagináveis, foi administrada pelo DOI-CODI do I Exército e pelo CIE. É muito estranho que o general sindicante não tenha localizado nada sobre ela, já que a casa é reconhecida até pelo general Adyr Fiúza de Castro no denso depoimento que deu a Maria Celina D’Araújo e Gláucio Ary Dillon Soares, para o livro Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão (ed. Relume-Dumará, 1994, pp. 35-80). Fiúza, expoente da linha dura do regime, foi um dos criadores do CIE em 1969, quando ainda coronel chefiava a Divisão de Informações (D2) do ministro do Exército, Aurélio de Lyra Tavares. Em 1974, como braço-direito do general Sylvio Frota no comando do I Exército, assumiu a chefia do DOI-CODI do Rio de Janeiro. Ele chama docemente de ‘aparelho especial não oficial’ o que a CNV rotula, sem desvios, como clandestino.

A versão de Fiúza:

Nós [do CODI] cedemos umas dependências na Barão de Mesquita ao CIE para eles fazerem uma espécie de ‘cela preta’ que aprenderam nos Estados Unidos e na Inglaterra. Mas o CIE tinha autonomia para trabalhar em qualquer lugar do Brasil. Eles tinham aparelhos especiais, não oficiais, fora das unidades do I Exército, para interrogatórios (…). Como a casa de Petrópolis.

 

O modess da ditadura

 

No seu relato, Fiúza descreve o procedimento inicial no DOI na chegada do preso, com as fotos, impressões digitais e primeiras perguntas de praxe sobre nome, filiação, origem. O general descreve uma repartição  que, acima do do terror e do medo, tinha obsessão literal pela higiene, pela limpeza.

Fala Fiúza:

 

[…] Eles não podiam ficar com a roupa que estavam, porque podiam esconder qualquer coisa. Então, eram mandados se despir, e era fornecida uma roupa especial, uma espécie de macaquinho. Para as moças, também era dado imediatamente um modess, porque a primeira coisa que acontece com a mulher quando ela é submetida a essa angústia da prisão é ficar menstruada. E fica escorrendo sangue pela perna abaixo, uma coisa muito desagradável. Em seguida, tomavam um banho, trocavam a roupa. O [Sylvio] Frota fazia questão de que cada cela tivesse roupas de cama limpas [….]

[…] Normalmente, o camarada que ‘cai’, ou seja, foi preso, entra num estado de pânico e de perturbação muito forte. Só aqueles mais estruturados, mais seguros é que mantêm o domínio de si mesmos. O restante, vamos dizer 90%, a primeira coisa que faz é ter uma disenteria brutal, de escorrer pelas pernas abaixo. Qualquer homem que já leu algum relato de combate sabe que, quando o sujeito é submetido a um bombardeio, suja as calças. Porque os esfíncteres não seguram os excrementos quando se está submetido a um medo muito grande. Então o medo é realmente um fator muito favorável ao interrogatório quando este é feito logo que o camarada ?caiu? […]

[…] o medo é um grande auxiliar no interrogatório […] tirando a sua roupa, fica-se muito agoniado, num estado de depressão muito grande. E esse estado de desespero é favorável ao interrogador.

O Frota não concordava muito com isso, mas usava-se. É uma técnica praticamente generalizada. E também por uma questão de limpeza, porque o prisioneiro se suja, suja o chão… É impressionante. Não se pode parar um interrogatório e convidar: “Vamos mudar a roupa?”. E o cheiro fica terrível. Interrogando o preso despido, é mais fácil qualquer limpeza […]

 

Na ‘Casa da Morte’, mais do que no higiênico DOI de Fiúza, a limpeza extrema devia ser proporcional ao terror, ainda maior. Lá desapareceram para sempre ao menos 14 militantes da esquerda, segundo a CNV. É o inferno onde viveu durante terríveis 96 dias a única sobrevivente do lugar, Inês Etienne Romeu, dirigente do mesmo grupo guerrilheiro de Dilma Rousseff, a VAR-Palmares. Acusada de participar do sequestro do embaixador suíço Giovanni Bucher em 1970, foi presa no ano seguinte e condenada à prisão perpétua, pena depois reduzida a oito anos. Nos três meses de suplício na casa, entre 8 de maio e 11 de agosto de 1971, Inês Etienne foi torturada, estuprada, injetada com pentotal sódico (o chamado ?soro da verdade?) e, depois de cada uma de suas duas tentativas de suicídio, medicada para recuperar as forças e receber novas sevícias. Dois de seus torturadores mais graduados na casa, apesar dos codinomes, foram identificados pela CNV. O Dr. Roberto era o major Freddie Perdigão, o Dr. Teixeira era o major Rubens Paim Sampaio, hoje tenente-coronel na reserva.

As dores de Etienne:

 

[…] Fui conduzida para uma casa […] em Petrópolis […] O Dr. Roberto, um dos mais brutais torturadores, arrastou-me pelo chão, segurando pelos cabelos. Depois, tentou me estrangular e só me largou quando perdi os sentidos. Esbofetearam-me e deram-me pancadas na cabeça […] Fui várias vezes espancada e levava choques elétricos na cabeça, nos pés, nas mãos e nos seios. A certa altura, o Dr. Roberto me disse que eles não queriam mais informação alguma; estavam praticando o mais puro sadismo, pois eu já havia sido condenada à morte e ele, Dr. Roberto, decidira que ela seria a mais lenta e cruel possível, tal o ódio que sentia pelos ?terroristas? […] Alguns dias depois […] apareceu o Dr. Teixeira, oferecendo-me uma saída ?humana?: o suicídio […] Aceitei e pedi um revólver, pois já não suportava mais. Entretanto, o Dr. Teixeira queria que o meu suicídio fosse público. Propôs então que eu me atirasse embaixo de um ônibus, como eu já fizera […] No momento em que deveria me atirar sob as rodas de um ônibus, eu me agachei e segurei as pernas de um deles, chorando e gritando. […] Por não ter me matado, fui violentamente castigada: uma semana de choques elétricos, banhos gelados de madrugada, ?telefones?, palmatórias. Espancaram-me no rosto até eu ficar desfigurada. […] O Márcio invadia minha cela para ?examinar? meu ânus e verificar se o Camarão havia praticado sodomia comigo. Esse mesmo Márcio obrigou-me a segurar seu pênis, enquanto se contorcia obscenamente. Durante esse período fui estuprada duas vezes pelo Camarão e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos mais grosseiros e obscenidades […].

 

Outros craques da repressão no time barra-brava daquela casa infernal, que o Exército nem lembrou de citar em sua sindicância como ‘desvio de finalidade’,  eram  o tenente da reserva Antônio Fernando Hughes de Carvalho, codinome Alan, e o então capitão Paulo Malhães, o Dr. Pablo. Em fevereiro passado, o coronel da reserva Armando Avólio Filho contou à CNV ter visto Hughes pulando sobre o corpo de um preso torturado na carceragem do DOI da Barão de Mesquita, em janeiro de 1971. O preso er

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