Escárnio

Acusada de matar adolescente ilustra peça institucional em Alagoas

Ré no Caso Davi da Silva virou garota propaganda de Renan Filho

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Nayara Andrade na peça do GovernoA nova peça publicitária do Governo de Alagoas tem o objetivo de reforçar o discurso do governador Renan Filho (PMDB) sobre uma “nova atitude” para a pacificação do Estado. Mas foi ilustrada com a imagem de uma policial militar denunciada pelo Ministério Público Estadual por tortura, assassinato e ocultação de cadáver de um jovem negro e pobre desaparecido na periferia de Maceió há mais de dois anos.

Nayara Andrade é a única mulher ré na ação penal que processa quatro militares pelo mais emblemático caso de violência policial dos últimos anos: o sumiço de Davi da Silva. O jovem morava em um conjunto de casas populares do Benedito Bentes e foi levado na mala de uma viatura da Radiopatrulha, aos 17 anos de idade, após ser flagrado com uma bombinha de maconha, na manhã do dia 25 de agosto de 2014, na companhia de outro jovem.

A peça publicitária sobre os investimentos do governo alagoano na segurança pública, veiculada em emissoras de TVs abertas desde segunda-feira (3), deu destaque à imagem de Nayara Andrade, dentro de uma viatura, trabalhando normalmente. Mas foi retirada do ar após o Diário do Poder questionar a Secretaria de Comunicação de Alagoas (Secom) sobre o critério de escolha da policial para a propaganda.

Além de Nayara, os policiais Eudecir Gomes, Carlos Eduardo Ferreira e Vitor Rafael Martins foram denunciados pelo MP de Alagoas em 5 de agosto de 2015. E a ação penal tramita na 14ª Vara dos Crimes contra a Criança, o Adolescente e o Idoso.

Veja a peça publicitária:

FORA DO AR E DAS RUAS

O Governo de Alagoas, por meio da pasta da Comunicação, encaminhou ao Diário do Poder uma nota garantindo que “as imagens de policiais em ação, são obviamente, de arquivo, simuladas para filmagens, em vários momentos, com participação de muitos integrantes das corporações”.

“Não houve intenção de expor ninguém. A Secom entende a delicadeza do quadro e já  interrompeu a divulgação do vídeo, providenciando que seja reeditado de forma que a mensagem original, cidadã e informativa, seja veiculada corretamente”, disse a Secom.

A Comunicação do Comando da Polícia Militar de Alagoas (PM) afirmou à reportagem que todos os quatro militares réus na ação penal estão atuando em atividades administrativas, apesar de nenhuma das medidas judiciais cautelares ter determinado a saída dos policiais dos serviços nas ruas.

Em resposta à pergunta sobre a existência de algum processo administrativo disciplinar sobre o resultado do inquérito policial e a ação penal que tramita na Justiça, a assessoria do Comando da PM disse que foi aberta uma sindicância e esta ainda está em fase de diligências, após mais de dois anos da ocorrência e mais de um ano depois de os militares serem denunciados.

Maria José da Silva, mãe de Davi (Foto: Ricardo Ledo)O CRIME

Com base em provas técnicas da quebra de sigilo telefônico que indicam a presença dos militares no local do crime e no relato da mãe de Davi, Maria José da Silva, e da testemunha que sobreviveu à abordagem, o Ministério Público concluiu que o crime de tortura se configurou com emprego de violência e grave ameaça, causando sofrimentos físicos e mentais nas vítimas – Davi da Silva e seu colega também adolescente –, em plena via pública, onde algemaram Davi, colocaram-no dentro do camburão, sequestrando e torturando até a morte.

O MP divide a culpabilidade igualmente entre os quatro réus, quanto à tortura. Mas Nayara teria sido protagonista de um momento importante do ato violento, de acordo com o relatório policial, tendo reagido violentamente ao nervosismo de Davi, quando o jovem deixou cair a maconha.

O jovem era gago não teria conseguido se explicar à policial, que ainda se ofendeu com a droga no chão, segundo o relato da testemunha sobrevivente.

A denúncia também tem como base os dados de Estações Rádio Base (ERBs), que rastreiam e indicam local e horário do uso dos telefones celulares dos acusados.

Veja trechos da denúncia do MP:

“Os denunciados queriam que os adolescentes confessassem ser [traficantes] ou informassem onde poderia ser encontrado o ‘Neguinho da Bicicleta’, um traficante procurado pela polícia, que atuava na região. Davi da Silva, nervoso, derrubou a droga e foi repreendido pela policial e indiciada SD PM Nayara, que se sentiu ofendida e perguntou-lhe se achava que ela era uma ‘cachorra’.

A materialidade e os indícios de autoria podem ser constatados suficientemente através dos depoimentos da vítima [amigo de Davi], a qual relata claramente as agressões físicas sofridas por ele [agredido nas partes íntimas] e a intimidação psicológica que infligiram sobre o adolescente Davi Silva, culminando com a sua morte, somando aos demais elementos informáticos colhidos pela diligente delegacia.

Nota-se que, pela dinâmica dos fatos, que a morte da vítima Davi Silva deu-se a título de culpa, já que a intenção dos indiciados era torturar para obter informações dos traficantes da região, sendo o caso de crime preterdoloso”.

Preterdoloso é o crime que ocorre quando se pratica uma conduta dolosa, menos grave, como a tortura, mas chega-se ao resultado danoso mais grave do que o pretendido.

A DEFESA

O advogado de Nayara Andrade e dos outros três militares, Napoleão Júnior, disse ao Diário do Poder que o ponto central da defesa é a demonstração de que os jovens não foram abordados pela guarnição Radiopatrulha, com base nos dados das ERBs.

“Observando essas informações das ERBs levantadas pela Polícia Civil, verificamos que os horários em que falam que os militares estavam no local da abordagem está desconexo da realidade. As ERBs, na verdade, não apontam o horário específico. E a gente se baseia também pelos depoimentos contidos na fase de investigação. Não houve abordagem alguma, porque os horários não batem, são conflitantes. A própria mãe do Davi, ouvida em termo na sindicância da PM, diz um horário diferente daquele apontado nas ERBs pela Polícia Civil. Com isso, a gente consegue provar que eles não estavam no local. E, se não estavam no local, logo, não abordaram”, argumentou o advogado dos militares.

Ele afirma ainda que uma perícia técnica forense dentro da viatura não conseguiu detectar nenhum resíduo capaz de provar serem pertencentes a nenhuma das vítimas. “Não foram encontrados fio de cabelo ou resíduo de sangue dentro da viatura. E está provado nos autos do processo”, complementou Napoleão Júnior.

De acordo com o Mapa da Violência 2016 – Homicídios por armas de fogo no Brasil, em Alagoas, 12 de 13 vítimas de violência letal são negras. O pesquisador Julio Jacobo Waiselfisz relaciona o fato ao fenômeno sociológico que criou a figura dos “matáveis” no Brasil e em Alagoas, materializada no caso do jovem negro Davi da Silva, pertencente ao grupo dos que podem ser mortos “sem nenhum problema” para a sociedade.

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